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A INTERAÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS COM O MERCADO

2 A ECONOMIA SOLIDÁRIA E O MERCADO

2.3 A INTERAÇÃO DOS EMPREENDIMENTOS ECONÔMICOS SOLIDÁRIOS COM O MERCADO

Antes de adentrar na questão de como estão organizados e quais são as características dos EES, importa refletir sobre o que é preciso para que a economia solidária fortaleça-se a partir da sua iteração com o mercado e quais os desafios inerentes ao desenvolvimento de sua atividade econômica.

Dentro das particularidades próprias da economia solidária, alguns desafios apresentam-se, especialmente nos EES, desafios estes muitas vezes estruturais, de modo que sua resolução está para além do mero esforço individual de uma pessoa ou de um

empreendimento. Devido a isso, o que se busca ao discutir-se sobre a economia solidária e o mercado, não é meramente a inserção ou não dos empreendimentos no mercado; a proposta deve passar pela construção de outra forma de mercado, ressignificando o seu papel na sociedade. Os empreendimentos devem disputar o poder econômico decorrentes dos fluxos de valor que tem por trás da construção social da oferta e da demanda. O debate do mercado, portanto, não pode estar dissociado da soberania alimentar, da garantia do trabalho associado, do acesso à terra, da reinvenção do controle social de organismos de regulamentação do mercado, dentre outras questões inerentes à construção de novas relações de produção e consumo e consequentemente de novo desenvolvimento social.

Muito se especula acerca de como deveria ser a interação da economia solidária com o mercado, sobretudo o mercado capitalista. Esse debate, no entanto, é superado quando se entende que a relação do empreendimento com o mercado seja fruto de sua própria ação – principalmente considerando que a economia solidária caracteriza-se pela pluralidade. A relação com o mercado capitalista passa a ser um problema, considerando o que a economia solidária propõe, apenas quando o empreendimento passa a existir para agir somente em tal mercado, não buscando construir formas de superação da desigualdade provocada pelas relações comerciais existentes.

Note-se que, tal qual dito em outros momentos, esse movimento, mesmo que de modo ainda modesto, parece buscar formas de gerar trabalho e renda de forma coletiva e solidária, a fim de superar o monopólio capitalista nas relações econômicas e de mercado, entretanto sem colocar-se fora do sistema econômico capitalista (ao menos em um primeiro momento, mesmo porque o atendimento à materialidade necessária para milhares de trabalhadores da economia solidária pressupõe o atendimento a necessidades elementares do ser humano). Com isso não se quer dizer que estas condições somente são conseguidas por meio do mercado capitalista, pois não necessariamente; tampouco se quer cair aqui no equívoco, tal qual Adam Smith, de naturalizar as trocas como sendo algo possível somente dentro da lógica mercantil. Para realizar tal afirmação deve-se analisar o contexto de cada empreendimento e as relações que o cercam.

Não é necessário isolar-se da economia dominante capitalista para desenvolver novas formas de distribuição e posteriormente de produção. Alguns estudiosos estão inclusive convencidos de que o mercado seja essencial, mesmo na perspectiva da economia solidária, enquanto estágio para se chegar ao socialismo (SINGER, 1998 a apud CASTILLA CARRASCAL, 2011).

Singer (2002 b), por sua vez, afirma que a economia solidária constitui um modo de produção que, ao lado de diversos outros modos de produção13, compõe a formação social

capitalista; isto porque, para o autor, o capitalismo não somente consiste no modo de produção hegemônico, mas também molda a superestrutura legal e institucional de acordo com os seus valores e interesses. Já Mirian Nobre (2003) afirma que, embora o modo ―solidário‖ de produção e distribuição parece à primeira vista um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadoria, na realidade constitui uma síntese que supera ambos.

O que se pode concluir é que, de acordo com os argumentos aqui colocados, uma vez que se está inserido no capitalismo, deve-se, em alguma medida, dialogar com ele; os empreendimentos estão ―dentro‖ deste sistema, o que faz com que sua interação com ele seja necessário.

Assim, para que a economia solidária transforme-se de paliativo dos males capitalistas a competidor deste, ela terá de alcançar níveis de eficiência na produção e distribuição de mercadorias, tal como ocorre no capitalismo. A lógica capitalista de produção introduz requisitos cada vez mais exigentes de competências, inovação e desempenho competitivo, aos quais os consumidores adaptaram-se. Logo, a economia solidária deve continuamente possuir uma capacidade de responder aos requerimentos de eficiência - não somente econômica, mas sistêmica – e de inovação (SINGER, 2002b; GAIGER, 2007).

Por tal motivo, é inevitável que os EES busquem a implantação de relações sociais de produção que atendam a critérios mínimos já presentes no mercado, como o preço, a qualidade de produção e atendimento, dentre outros. Neste sentido, quanto mais competitivo o mercado em que a cooperativa está inserida, mais exigências e critérios de eficácia são impostos para que o empreendimento seja viável. Neste sentido ,os EES devem também buscar atender a uma ―competitividade‖ no mercado (CARNIATTO, 2005; PATEO, 2012; WELLEN, 2008).

Nesta mesma linha de pensamento, Gaiger (2002) afirma que os EES precisam lidar de forma madura com a interação com o mercado capitalista para assegurarem sua reprodução; mesmo porque, na economia solidária, há uma carência de intercâmbios econômicos dentro do próprio movimento.

Os valores ou a forma com que um EES conduz a sua comercialização são muito importantes para a construção de novas relações econômicas e novas relações no mercado. Isto porque os EES precisam chegar a um nível de produção semelhante ao de muitas

13 Como o modo de produção capitalista, a pequena produção de mercadorias, a produção estatal de bens e serviços, a produção privada sem fins de lucro.

organizações capitalistas – principalmente no que diz respeito a sua qualidade e variedade – ao menos no aspecto custo-benefício. Somente assim o consumidor terá possibilidade de escolher entre produtos representantes de duas lógicas distintas de economia, optando pelo que considera melhor (para si e para a sociedade).

No entanto, essa igualdade de condições (que favorecerá liberdade de escolha ao consumidor) ainda não se verifica na grande maioria dos EES, devendo ser gradativamente construída. Cabe lembrar que os EES normalmente emergem de iniciativas populares sub- capitalizadas ou de empresas falidas e, portanto, já iniciam suas atividades com um padrão de produção bastante abaixo, sobretudo se comparado ao que seria socialmente necessário para ―sustentar a concorrência nos mercados-alvo de seus produtos‖ (TAUILLE et al, 2005, p. 157 apud PÁTEO, 2012, p. 93) Essa falta de recursos iniciais dificulta a aquisição de equipamentos e insumos, além do baixo grau de escolaridade, fazendo com que o EES tenha dificuldades com a própria gestão (CARNIATTO, 2005)

No ―jogo‖ do mercado, os EES ainda têm que lidar com ambientes nos quais a variável preço tem importante peso na escolha por determinados produtos, já que a prática do consumo responsável é tímida enquanto prática, além do fato de que boa parte da população brasileira opta por produtos com menor preço por uma questão de necessidade. Com isso, a maioria dos empreendimentos, exatamente por falta do respaldo institucional para otimizar sua interação com o mercado, não consegue ter preços baixos para competir com as grandes empresas (PÁTEO, 2012).

Mesmo dentro de todo este cenário desfavorável narrado, os EES apresentam aspectos vantajosos com relação às empresas. É o caso, por exemplo, das condições de trabalho as quais, segundo alguns autores, seriam melhores nos grupos autogestionários. Esta superioridade dar-se-ia por dois motivos:

Na fábrica capitalista os empregados têm de produzir lucros proporcionais ao capital investido, obrigação que os cooperados não têm, o que lhes permite se auto-explorar menos; além disso, os cooperados têm a liberdade de escolher quando e como trabalhar para tornar sua empresa competitiva, ao passo que os trabalhadores assalariados têm de obedecer a determinações da direção (PÁTEO, 2012, p. 92)

Quanto a este aspecto, de fato a forma de organização autogestionária confere maior flexibilidade ao grupo. No entanto, o fato de os trabalhadores definirem seu ritmo de produção não necessariamente torna seu trabalho menos estressante ou com menor pressão; isto porque o trabalhador de uma empresa tem a garantia do salário ao final do mês, enquanto que no EES é necessário que haja uma determinada produção e escoamento. Ainda assim, há EES que não possuem problemas de demanda por seu produto e/ou serviço, optando por uma

carga horária que preserve o bem-viver do trabalhador; nestes casos, a vantagem existe. Devido a todas estas dificuldades relatadas na interação com o mercado, muitos empreendimentos buscam alternativas. Uma delas é a prática de outra comercialização – a solidária –, ou de comércio – o comércio justo e solidário14. Tanto a comercialização solidária como o comércio justo e solidário são definidos como uma nova relação comercial que fomenta a produção sustentável e não tolera nenhum tipo de exploração e discriminação (contra a natureza, mulheres, criança, grupos minoritários, etc.), estabelecendo relações éticas, solidárias e transparentes entre todos os elos da cadeia produtiva. Essas relações pressupõem livre acesso à informação, a prática do preço justo para quem produz e para quem consome e a eliminação de atravessadores desnecessários. Assim, o próprio ato de comercializar constitui-se através de processo formativo e de empoderamento dos trabalhadores (produtores, comerciantes e consumidores) e a oferta e demanda são construídas em conjunto, visando o bem estar da população15.

Muitos chamam este novo mercado de um ―mercado solidário‖ atuante principalmente no território16, podendo manifestar-se de diversas formas. É possível inclusive encontrar mercados com princípios de solidariedade, aliados com as lutas sociais através de critérios não-capitalistas.

Um bom exemplo destes espaços são as feiras de economia solidária, em que há um espaço natural de interação entre consumidores e produtores, sendo que os consumidores participam do processo de construção coletiva e conjunta destes espaços. Por essa peculiaridade, as feiras podem tornar-se espaços de potencialização da comercialização para fora do território, já que são realizadas em diversos âmbitos (municipais, estaduais, nacional). Nas feiras há uma enorme expressão da solidariedade entre os trabalhadores, onde todos se ajudam e muitas vezes comercializam produtos uns dos outros; além disso, possuem ar militante de retomada e utilização do espaço público e de visualização para a economia

14 Estes dois princípios se confundem muitas vezes, porém o entendimento aqui é que a comercialização solidário é a própria ação de comercializar do EES. Este termo é próprio da ação da economia solidária no Brasil. Enquanto o comércio justo e solidário é um conceito ainda em disputa, que extrapola os limites geográficos do Brasil, e vem sendo construída aqui com base no Decreto que institui o Sistema Nacional do Comércio Justo e Solidário, no Brasil. De todo modo ele dialoga sobretudo com os princípios da relação comercial e da construção do produto, envolvendo toda a cadeia produtiva, indo além do ―simples‖ processo de troca e venda da comercialização solidária.

15 A prática dos princípios do comércio justo e solidário não é aplicada unilateralmente quando se trata de critérios relacionais, ou seja, que regem a forma de se relacionar com os membros (que podem ser chamados de parceiros) da cadeia produtiva. Porém, há princípios que os EES podem exercer por si só, como os relacionados a aspectos produtivos. Essa divisão entre princípios relacionais e produtivos é importante, pois destaca exatamente a presença de uma economia plural e com um forte indício de reciprocidade, não pautada apenas no materialismo.

16 Aqui se entende o termo território como o lugar do qual a pessoa ou grupo sente-se parte, e não a um local delimitado geograficamente; é, portanto, é relativo à subjetividade de cada grupo e/ou pessoa.

solidária, vez que nelas são realizadas campanhas de sensibilização e divulgação das propostas dos EES (CABALLERO, 2011; PÁTEO, 2012). Essa nova forma de comercialização tem caráter multidisciplinar e relaciona-se com outros grandes campos de luta, a exemplo da agroecologia e do feminismo.

Para que se tenha uma ideia do potencial destas feiras, a Feira Nacional da Economia Solidária, que ocorre anualmente em Santa Maria-RS, teve início há vinte anos com a Feira do Cooperativismo e desde então tomou proporções continentais. Na sua última edição (2013) que ocorreu junto com o II Fórum Mundial da Economia Solidária, houve mais de 100 (cem) oficinas e palestras, das quais participaram pessoas de 28 (vinte e oito) países de todos os continentes. No Brasil, havia 27 (vinte e sete) estados brasileiros e mais de 530 (quinhentos e trinta) cidades representadas; ao todo, mais 200 (duzentas) Entidades e Organizações, Movimentos Sociais, Pastorais Sociais, Sindicatos, Entidades de apoio da Igreja, Universidades, veículos de comunicação, dentre outros; e mais de 1.000 (mil) empreendimentos expuseram na feira com uma variedade de cerca de 10.000 (dez mil) produtos. Estima-se ainda, segundo a Brigada Militar da cidade, que cerca de 200.000 (duzentas mil) pessoas passaram pelo evento17.

A partir do contexto relatado neste tópico, nota-se que há necessidade de uma profunda transformação no Estado, a fim de que possa responder a esse novo momento e aos anseios de ao menos parte da população (MORAIS; BORGES, 2010).

2.4 AS CARACTERÍSTICAS GERAIS E A REALIDADE DOS EMPREENDIMENTOS