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CAPÍTULO III: A TEOLOGIA DA GRAÇA NA PARTE CENTRAL DA CARTA AOS

3.2. Inabitação Trinitária

3.2.2. A inabitação na Tradição

Até a Escolástica a graça foi entendida principalmente como inclinação amorosa de Deus que nos admite na sua comunhão266 e, de facto, nos primeiros séculos do cristianismo, os Padres da Igreja abordam a questão da graça sob a vertente da graça incriada, afirmando que o Espírito Santo é o dom incriado. Em Paulo, a graça: “consiste na doação do Espírito Santo, que é derramado como graça nos corações para realizar a unidade”267, ou seja, como

264 Cf. R. MORETTI, “Inhabitation”, DSp VII/2 (1971), col. 1740. 265 Cf. L. LADARIA, Teologia del pecado original y de la gracia, 246. 266 Cf. G. MÜLLER, Dogmática, 810.

83 participação gratuita na vida divina e fruto do puro amor de Deus. Assim, Pseudo-Barnabé fala da nossa justificação como de uma nossa recriação que acontece através da inabitação de Deus em nós268. Santo Atanásio escreve: “do mesmo modo que nós somos filhos de Deus por causa do Verbo que está em nós, assim seremos nós no Filho e no Pai […] por causa da presença em nós do Espírito, que está no Verbo, e ele mesmo está no Pai”269. Noutro texto, escreve ainda: “o Espírito virá a nós, assim como vieram o Filho e o Pai, e eles habitaram em nós. Porque indivisível é a Trindade, e uma a divindade”270.

Em relação à inabitação do Espírito Santo, Ecumenio e Orígenes também escrevem comentários sobre a carta aos Romanos. O primeiro comenta Rom 5,5 afirmando que Paulo: “bem diz que: ‘foi derramado o amor Deus’, que é o dom do Espírito […] é conhecida a inabitação do Espírito”271 e Orígenes, no comentário de Rom 8,11, afirma que o Espírito de Cristo inabita no homem: “cada uma das coisas que Cristo tem, quem as possui está seguro de ter em si o Espírito de Cristo e pode esperar que o seu corpo mortal seja vivificado pela inabitação nele do Espírito de Cristo”272.

O pensamento dos Padres gregos pode ser sintetizado deste modo: é porque recebemos o Espírito Santo que somos santificados, sendo assim, mais do que uma coisa, a graça é uma Pessoa. Os Padres gregos concentram-se mais sobre o dom incriado como inabitação no justo, para depois falar dos efeitos deste (graça criada). Os escolásticos, porém, mais de matriz agostiniana, preocupados mais com a antropologia da graça, dizem que somos santificados pela graça criada pela qual recebemos o Espírito Santo. Passa-se assim da graça incriada para a criada273.

Para perceber a inabitação trinitária é preciso, porém, recorrer a S. Agostinho e a S. Tomás de Aquino e aos seus desenvolvimentos trinitários que estão na base da antropologia filosófica274. De facto, com S. Agostinho, na controvérsia com Pelágio sobre a graça e a

268 Cf. PSEUDO-BERNABÉ, Epistola Catholica, XVI, 8: PG 2,774:776; J. DE BACIOCCHI, “Grace”, Cath

V (1963), col. 160.

269 ATANÁSIO, Oratio III contra Arianos, 3, 25: PG 26,376. 270 ATANÁSIO, Epistolae III Ad Serapionem, 3,6: PG 26,633 C.

271 ECUMENIO, Comment. In Epist. Ad Rom., 5,2: PG 118,409A: 412 A. 272 ORÍGENES, Comment. In Epist. Ad Rom., 6,13: PG 14, 1099B:1099C.

273 Cf. B. SESBOÜÉ, Jesús Cristo el único Mediador, vol. I, 235; P. TIHON, “Grace”, DSp VI (1967), col.

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84 liberdade, se há uma separação da soteriologia da doutrina da graça, a questão vai ser dirigida para a relação entre graça-liberdade e natureza-graça. Com a escolástica, introduzindo a filosofia aristotélica, juntamente com o pensamento agostiniano, começa-se a fazer uma distinção entre graça incriada e graça criada. O ponto de partida é que o homem é uma criatura que está chamada à comunhão com Deus, porém, este fim é superior às suas forças. Deste modo, precisa de um auxílio que o faça elevar-se acima da sua própria condição de criatura. A questão gira em torno do facto de que o Espírito Santo precisa antes de tornar o homem justo e só depois poderá inabitar nele, produzindo nele um habitus para que possa receber a graça de participar na comunhão da vida divina. Criando um efeito criado no homem, criando nele aquilo que Deus ama, transformando-o e elevando-o. Na evolução da escolástica, a possessão da graça habitual tende a separar-se da presença do amor de Deus no homem e, assim, torna-se, de algum modo, o pressuposto da aceitação da criatura por parte de Deus, chega a antepor a graça criada à graça incriada. Ou seja, a graça criada chega a ser o pressuposto da graça incriada275. No entanto, S. Tomás refere que, tal como S. Agostinho, o que possuímos na graça é o Espírito Santo e não apenas um dom distinto d’Ele276. Porém, é progressivamente, com o facto de se ter qualificado o Espírito Santo como a graça que “torna agradáveis a Deus” e com o realçar cada vez mais da graça criada, ou seja, como qualidade e hábito inerente à alma que determina o seu estado de graça, que se passará da graça como ato de Deus para a graça como posse do homem277.

O Magistério mais do que uma vez se expressou sobre a inabitação trinitária. Na Divinum illud munus de Leão XIII, o Papa afirma que Deus reside pela sua graça dentro da alma do justo, como dentro de um templo, de uma forma íntima e especial, e esta admirável união chama-se inabitação (cf. DS 3329-3331). Também Pio XII, no 1943, na Mystici Corporis, fala da inabitação do Espírito Santo nas almas dos justos, afirmando que tal inabitação é comum a toda a Trindade (cf. DS 3814).

275 Cf. J. FARIAS, Antropologia e Graça, 34-58; L. LADARIA, Teologia del pecado original y de la gracia,

166-170; G. MÜLLER, Dogmática, 810-811.

276 “No próprio dom da graça santificante tem-se o Espírito Santo que habita no homem. Assim, o próprio

Espírito Santo é dado e enviado.” TOMÁS DE AQUÍNO, Summa Theologica, I qu.43 a.3, in Suma Teologica, vol. II, 3º ed., Edicões Loyola Jesuítas, São Paulo, 2014, 682; Cf. AGOSTINHO, De Spiritu et Littera, 21, 36: PL 44,222; IDEM, epistolae 187,35: PG 33, 845: 846.

277Cf. R. CANTALAMESSA, Vem, Espírito Criador!: Meditações sobre o Veni creator, Secretariado nacional

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