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A indústria do embelezamento e suas ditaduras: apontamentos sobre um percurso do

Não só Sant´Anna (1995), Courtine (1995; 2013) e Certeau (1982) nos advertem da essencial visão histórica para a compreensão do significado e sentido que assume o corpo para cada sociedade. Porter (1992) nos fala que a história do corpo tem sido negligenciada e as causas estão aparentemente tanto em componentes clássicos como judaico-cristãos de nossa herança cultural, mas que irrompem sempre na mesma dinâmica: há uma visão fundamentalmente dualista do homem, entendido como uma aliança "muitas vezes ansiosa da mente e do corpo, da psiquê e do soma; e ambas as tradições, em seus caminhos diferentes e por razões diferentes, elevaram a mente ou a alma e denegriram o corpo" (PORTER, 1992, p. 292). O corpo aparece como “objeto de saber” na virada do século, quando a questão da carne pode ser restaurada e aprofundada. “O século XX, de fato, teoricamente inventou o corpo” (COURTINE, 2013, p. 13) que foi “religado ao inconsciente, colado ao sujeito e inscrito nas formas sociais da cultura” (COURTINE, 2013, p. 14). São nas transformações políticas e sociais dos anos 1960 e 1970 que o corpo irrompe como uma preocupação científica e “em grande parte à obra foucaultiana que se deve o enraizamento inicial do corpo no discurso das ciências humanas” (COURTINE, 2013, p. 17).

Diversos são os estudos e compreensões do homem que a partir dessas duas tradições dão ao mental, ao espiritual ou aos ideiais uma prioridade quase automática sobre questões puramente materiais, corpóreas ou sensuais. Escrevendo sobre metodologias usadas para pensar a história do corpo, Porter (1992, p. 301) fala: "a busca da história do corpo não é, portanto, somente uma questão de triturar as estatísticas vitais sobre o físico. Nem apenas um conjunto de métodos para a decodificação das 'representações'. É antes um chamado para a compreensão da ação recíproca entre os dois". Mais à frente, pensando o papel do historiador na construção da história do corpo, Porter (1992, p. 308) reforça que o corpo não se reduz ao biológico, advoga, ao contrário, ser visto a partir das mediações dos sistemas de sinais culturais. "A distribuição da função e da responsabilidade entre corpo e a mente, o corpo e a alma, difere extremamente segundo o século, a classe, as circunstâncias e a cultura, e as sociedades freqüentemente possuem uma pluralidade de significados concorrentes”.

É o século XII que vê instalar-se firmemente o sistema de controle corporal e sexual. A derrota do corpo é completa e o ser humano é dividido, partido entre aquilo que é da ordem do superior, de cima – a razão e o espírito – e o que é da ordem do inferior, de baixo – o corpo, a carne. Tal separação – e qualificação – de tais âmbitos, não deixa de lançar as garras sobre o lugar simbólico do homem e da mulher que desde já paga o tributo mais pesado e nunca deixa de ser devedora dessa conta. O homem está em cima, a mulher, logicamente, embaixo. A mulher, portanto, está do lado da carne, do irracional, do corpo, daquilo que deve ser controlado, reprimido e abafado sob a pena da danação do pecado.

O privilégio da mente – como algo superior, iluminado, mais próximo de Deus, inclusive fisicamente, já que a mente “fica” na cabeça, parte mais alta do corpo - em relação às partes baixas do corpo – que inclui aquilo que é da ordem do não racional, do sexual, do bestial, do sujo, ou seja, do essencialmente orgânico – foi também problematizada por Bakhtin (1996). Se dentro dessas duas tradições de nossa herança cultural de que fala Porter (1992), a clássica e a judaica-cristã, a hierarquização do corpo em relação à mente degrada o corpo, entendido como a prisão da alma, Bakhtin nos diz que é sobretudo no carnaval que a ordem se altera. O baixo toma o lugar do alto e temporariamente a ordem de valores se inverte. “O carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” (BAKHTIN, 1996, p. 8).

Analisando a obra de Rabelais, Bakhtin (1996, p. 16) fala da predominância da vida material e corporal, em que aparecem “imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais e da vida sexual. São imagens exageradas e hipertrofiadas”. Imagens que constituem o que o autor conceitua como “Realismo Grotesco”, cujo traço marcante é o rebaixamento, ou seja, “a transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato. […] O princípio material e corporal é o princípio da festa, do banquete, da alegria, da ‘festança’” (BAKHTIN, 1996, p. 17). Esse rebaixamento é como uma corporificação, não mais a negação da carne – ou ainda a revanche do corpo contra o ascetismo como advogam alguns autores – mas uma degradação que permite uma comunhão com a vida, com tudo que é próprio das funções vitais, que é da ordem do ciclo da concepção, nascimento, vida e morte. “A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo, negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao mesmo tempo negação e afirmação” (BAKHTIN, 1996, p. 19). Esse baixo não é um nada, é um baixo produtivo, aquele que na mulher – também ela própria rebaixada – liga-se à concepção, à gravidez e ao nascimento. “O realismo grotesco não conhece outro baixo; o baixo é a terra que dá vida, e o seio corporal; o baixo é sempre o começo”. O grotesco da cultura popular, corporifica o homem “reintegra-o por meio do corpo à vida corporal (diferente da aproximação romântica, totalmente abstrata e espiritual)” (BAKHTIN, 1996, p. 34). Mas o corpo grotesco é um contramodelo. O modelo é o corpo civilizado (ELIAS, 1990). “Se o corpo é de tal forma privilegiado na definição de boas maneiras, é, sem dúvida, para manter à distância e controlar suas manifestações naturais e funcionais, propriamente corporais” (ARASSE, 2012, p. 581). O homem civilizado tem um corpo sob o qual ele tem controle. Um corpo dominado, normatizado, controlado é um corpo civilizado. A repetida queixa das elites da “falta de civilidade” dos pobres talvez venha daí, dessa não sujeição completa às regras das “boas maneiras”, de usar o corpo com maior liberdade e menos sujeito à regras feitas pelo que vem de cima. Um uso do corpo que os aproxima dos animais, e – naturalmente – da expressão das paixões e sentimentos. O consumo do melodrama, por exemplo, pode ser interpretado como o resultado desse modo de usar o corpo e sua consequente falta de controle das emoções, o que libera os sentimentos para serem livremente

expressos – os gritos e aplausos no meio do espetáculo nos palcos melodramáticos do século XIX, que causavam horror às elites cultas.

Porter, nos diz que sendo o corpo essa prisão da alma, ele ofende facilmente, mas justo por ser sua natureza verdadeiramente imperfeita - sexual, bestial, irracional - pode, exatamente por isso, no mesmo instante, ser perdoado. A carne é fraca afinal, mas é possível vencê-la, controlá-la com o poder da mente. Tais ideias aparecem em um rápido passeio pelo Instagram, a rede social de compartilhamento de imagens, que nos oferece inúmeros exemplos práticos dessa sujeição do corpo ao controle da mente – “Que os nossos cansaços não vençam nossas metas” (dicasdasemana); “Quis comer a banana, agora bora queimar. Treino de hoje, ok. E vocês? Nada de preguiça” (embuscadocorpoperfeito). Lugar estratégico da disseminação de ideias sobre prática de exercícios e alimentação para “transformar o corpo”, o Instagram é o reduto das “musas fitness”, e lá mostram suas práticas cotidianas em busca da boa forma que precisa ser conquistada – “Coisas boas vem para quem acredita, coisas melhores vêm para quem é paciente, já o sucesso só aparece para quem não desiste. Insista, persista e nunca desista” (jessicavalitutto) –, o que inclui uma específica rotina alimentar – “Cocaína e açúcar: qualquer semelhança não é mera coincidência” (blogdadebs) – e a prática de exercícios físicos por vezes extenuantes – junto a uma foto de pesada malhação em academia, thaismassa coloca a legenda: “pagando os pecados do mês na @competitionsp [perfil no Instagram da academia que frequenta] com o @profleandrocarvalho [preparador físico]. To com crédito para xingar minha mãe por uns três meses. Morri”. As mensagens motivacionais, do estilo “eu posso e você também”, aparecem sem grande procura e têm fortíssima tônica do “no pain, no gain”, ou seja, sem sofrimento, não há recompensa. Rotina recheada de sacrifícios em nome do “sonho” de ser magra e atlética. Em alguns casos, de transformarem radicalmente seus corpos, indo da obesidade à prática do body-builder, como simplynathalia, que em uma das centenas de imagens disponíveis em seu perfil na rede social, nas quais está fazendo atividades físicas ou mostrando partes esculpidas do corpo, diz “A obesidade levou 5 -10 anos da minha aparência, levou meu sorriso e meu desejo de abraçar meu lado feminino. A saúde e o fitness me deram tudo de volta!! Minha confiança em Deus me deu forças para lutar, tirou minha opressão e me deu alegria ilimitada”. Os perfis das “musas fitness” não se cansam de mostrar “pessoas reais” que mesmo enfrentando todas as adversidades – como serem mães, trabalharem, terem enfrentado aumento de peso em suas gestações – que poderiam transformarem-se em reais impedimentos para alcançarem o “sonho”, o “desejo” do corpo perfeito saem, ao contrário, vitoriosas nessa luta da mente

contra o corpo, “mantenha o foco e a disciplina e vença essa batalha” (blogdadrika). São processos de absoluta mudança corporal, onde o grande valor é a gestão de si, o que cada um é capaz de fazer com seu corpo a partir da força de vontade própria. Um corpo que antes era desprezado e desprezível vira o foco fundamental dessa gestão e da busca da felicidade e embelezamento. Freire Filho e Leal (2015) dizem que é possível observamos a continuidade do ideal de beleza como uma das exigências para uma mulher ser considerada feminina, Wolf (1992) também deixou clara a questão, mas os autores falam de uma “ampliação de suas justificativas”, ou seja, junto às preocupações de caráter estético, as alegações em nome da saúde física e psicológica não param de ofertar-se e o “cuidar de si” deixa de ser apenas uma adequação a padrões estéticos, “mas uma forma de proteger o ‘bem mais precioso’: o corpo” (FREIRE FILHO; LEAL, 2015, p. 16). Esse “cuidar de si” marca uma ruptura no que diz respeito à identidade, “mais do que nunca esta identidade se reduz hoje ao próprio indivíduo, sua presença, seu corpo” (VIGARELLO, 2006, p. 181).

A mente, por outro lado, é cobrada em sua racionalidade, organização e segurança e deve estar acima de toda a desordem corporal, das traições do corpo, das vicissitudes da fraqueza corpórea, das armadilhas do desejo. “A mente (o ego, o desejo ou a alma), ao contrário, devido ao seu ofício mais nobre, é obrigada a ascender acima de tal desordem, de tal ‘guerra civil’ interna; se implicada, a vontade, idealmente livre e nobre, parece ainda mais culpada de ofensa” (PORTER, 1992, p. 304). A dinâmica entre vergonha e honra, desejo e controle, desejos e deveres, desordem e ordem entre nossa matéria, considerada tão fraca e a mente tão poderosa “tem sido crucial para a avaliação do homem como um ser racional e moral no interior de sistemas de teologia, ética, política e jurisprudência, tanto teóricos quanto práticos” (PORTER, 1992, p. 304). A mente é superior e guardiã do corpo, que deve ser submisso, vassalo, criado da mente. Quando esse corpo transgride não é ele que é culpado, mas a mente que deveria controlá-lo. “É um fato que cria profundas tensões para todos os sistemas de controle pessoal (por exemplo, regimes de educação ou punição)” (PORTER, 1992, p. 303).

Mattos (2006, p. 166), analisando a obra de Taylor (1997), explica como a dualidade corpo/alma difundida pelo cristianismo é vigente até hoje, “servindo de base para classificar e, portanto, discriminar pessoas”. O que nos distinguiria dos animais seria justamente nossa habilidade de controlar as pulsões e os desejos do corpo, ou seja, “de nos voltarmos para nossa alma ou nosso espírito, fonte de racionalidade, expressividade, enfim, das virtudes tidas

como centros do bem-viver, de uma noção de boa vida” (MATTOS, 2006. p. 166). O auto- controle está no centro dessa “boa vida”, a ideia é que o princípio da dignidade relaciona-se com o auto-controle, o cálculo racional e controle do corpo, e os atributos ligados à sexualidade, emoção, virilidade, espontaneidade “devem ser dominados e passam a servir de critério classificador das pessoas no mundo moderno” (MATTOS, 2006, p. 166). Essa dicotomia será central ainda para a compreensão da base de oposição entre os gêneros. A divisão do trabalho entre intelectual e manual fortalecendo a cisão entre as classes insere-se aí, bem como a divisão de gêneros que coloca o homem ao lado do auto-controle racional, enquanto as mulheres podem ser melhor compreendidas pelas “virtudes ambíguas” relacionadas às emoções, sensualidade e corporalidade. Como dissemos antes, há uma dimensão pré-reflexiva e opaca que opera por trás das relações de gênero, e a dualidade corpo x mente encontra-se no vértice da questão. Dito de outra maneira: razão X emoção. Mata (1996, p. 70) falando sobre a fala feminina que não é valorizada, explica que sua ausência de valorização pública está ligada à presença desse elemento de emoção, ao fato de que tanto tematicamente quanto enunciativamente é uma fala equiparada a um “falar” menor,

A que se desenvolve no espaço doméstico e nas suas extensões e cujos referentes se situam na esfera privada: a temática familiar, afetiva e pessoal. […] Uma fala cuja desvantagem remete à existência de outro falar valorizado, que nomeia os temas públicos, conectados com a razão, o poder e o saber socialmente legitimado e cujos âmbitos de realização são os foros que cada sociedade reconhece como cenários de construção da opinião, das normas, das decisões (MATA, 1996, p. 70, tradução nossa) . 59

Aos homens, o domínio público. Às mulheres, o privado. Aos homens o discurso “racional, público e especulativo” atribuído exclusivamente a eles, mas que “dissolvidas as marcas de gênero, será assumida como a língua que garante toda a comunicação entre sujeitos sociais autônomos” (MATA, 1996, p. 71, tradução nossa) . Às mulheres, o íntimo e 60

doméstico, afetivo e prático. Essa separação deixa claro que os homens, simplesmente por serem homens, são dotados de capacidades como autodomínio, racionalidade e competitividade, logo estão “naturalmente” aptos ao trabalho público, às instituições de governos, políticas, polícias, leis. E as mulheres estariam “naturalmente" mais inclinadas aos

La que se despliega en el espacio doméstico y sus extensiones y cuyos referentes se sitúan en la esfera privada: 59

la temática familiar, afectiva y personal. […] Un habla cuya minusvalía remite a la existencia de otro hablar valorado, que nombra los temas públicos, conectados con la razón, el poder y el saber socialmente legitimados y cuyos ámbitos de realización son los foros que cada sociedad reconoce como escenarios de construcción de la opinión, las nomas, las decisiones.

Borradas las maras del género, se asumirá socialmente como la lengua garante de toda comunicación entre 60

cuidados privados de uma casa, de crianças, dos idosos e até dos homens adultos. Como dissemos antes, Scott (1995, p. 88-92) deixa claro que o gênero é um meio pelo qual o poder é articulado, inclusive a alta política, que garante seu funcionamento à custa da exclusão das mulheres.

É essa divisão entre corpo/alma, entre as pessoas que são repositórios de virtudes do corpo, como não se distinguindo muito dos animais, já que se movem segundo instintos, pulsões e desejos, e, portanto, tendo um menor autocontrole ou autodomínio, que está na base da constituição intersubjetiva da baixo auto-estima feminina (MATTOS, 2006, p. 170).

Sendo o corpo um rebelde, em que impera a irracionalidade, é necessário estar sob controle, policiado. O policiamento sobre o corpo, desde aquele auto-imposto, ligado à educação e às disciplinas familiares, até o exercido pelo estado, em políticas higienistas e de 61

controle das diversões públicas, por exemplo, ou pela igreja, por meio de ameaças morais e religiosas, traz no fundo uma questão comum a todas as estruturas de controle: o policiamento do corpo esteve sempre associado a uma suposta melhor ordem social e moral-religiosa, como se o dualismo mente/corpo pudesse ser renomeado sem ser reconceitualizado, em limpeza/ sujeira, controle/descontrole, saúde/doença, virtude/profanação, seriedade/jocosidade.

Machado (2011), Courtine (1995; 2011; 2012) e Martín-Barbero (2001) nos alertam sobre esse policiamento feito pelas elites (no alto, organizados, limpos, mentais, sérios) do popular, do que está embaixo, do que é desgovernado, bestial, sujo. E da intenção, pouco disfarçada, de colocar sob controle seu modo de viver, de consumir, seus divertimentos e sua sexualidade. Desde o século XIX (1865) até a Primeira Guerra Mundial – médicos e sanitaristas empenharam-se duramente em uma cruzada contra a “degenerescência”, “como se fosse moda degenerar: degenerava-se devido a doenças, por intoxicação e maus costumes, degenerava-se em razão de certos climas, pela consanguinidade, devido à misturas de raças, e, em breve, se tornaria famosa a acusação de uma arte degenerada” (SANT’ANNA, 2001, p. 78), como foi denominada pela Alemanha Nazista a Arte Moderna, condenada pelo governo

Não é intenção desta tese ignorar o papel do higienismo, das “razões higiênicas”, na história de como

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significamos e usamos nossos corpos ao longo da história. Tais razões, à medida que os saberes vão se secularizando, vão servindo, por exemplo, de ferramentas para manter o controle sobre os impulsos e emoções, para manter o sujeito “civilizado” (ELIAS, 1990). As mesmas razões higiênicas vão reorganizando os saberes e os usos do corpo ao longo de todo o Antigo Regime, do século XIX e da contemporaneidade (CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges, 2012; 2011). Atualmente, as razões higiênicas são confundidas e hibridizadas com o discurso da saúde, e servem de argumento fundamental para as práticas de submeter o corpo a rotinas exaustivas de exercícios e planos alimentares absolutamente severos.

do Terceiro Reich. As obras eram consideradas decadentes e essencialmente não-germânicas, pois não se encaixavam na estética aprovada pelo regime.

A classe operária, apertada em teatros populares, entre gritos, gargalhadas, choros e aplausos gozava do prazer exacerbado dos melodramas nos palcos do século XIX e início do XX, enquanto às elites cabia o ascetismo e o controle das palmas contidas e apenas nas horas certas dos dramas do teatro clássico. Falando sobre os primórdios do cinema que reunia espetáculos derivados de diversas formas populares da cultura, como o circo, o carnaval, a magia, a prestidigitação, as feiras de atrações e aberrações, Machado (2011, p. 77) nos conta sobre a prática da masturbação durante a exibição de imagens pornográficas nos “cinemas” anteriores ao advento do cinema narrativo, aquele que em princípios do século XX, apoia-se no modelo do romance e do teatro oitocentistas: “a masturbação na sala escura acabou por se converter em prática regular e disseminada, verdadeiro ato de provocação coletiva, que resistiria a todas as formas de policiamento”. Antes até, Bahktin não nos deixa esquecer, na Idade Média e no Renascimento, a festa oficial (da elite, organizada, séria) trai a natureza essencial da festa humana e a desfigura, pois enquanto aquela consagra a imutabilidade, a estabilidade e a perenidade das regras que organizam a vida, na festa humana, no carnaval, reinava uma “forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados pela vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, sua idade, sua situação familiar” (BAHKTIN, 1996, p. 8).

A elite (a mente), o que vem de cima, busca o controle daquilo que se situa embaixo (o corpo), da diversão popular. “A cultura da elite não parece ter subjugado tanto a cultura popular como dela se separado, desenvolvendo sua própria linguagem corporal, seus rituais e seus refinamentos distintos, desmaterializados e expressivos” (PORTER, 1992, p. 314-315). Os teatros "poeiras" nos primeiros anos do século XX, lembra Sklar (1975), eram da gente do povo e mesmo o nome do tipo de teatro já traz em si as marcas indeléveis da diferença entre o alto e limpo e o baixo e sujo. Os costumes populares acabaram sendo permissivos à doutrinação vinda de cima, mas não em absoluto. Resiste no popular, o apelo por tudo aquilo que causa desconforto na elite. Mas mesmo uma contracultura carnavalesca do corpo, lembra Porter (1992, p. 311), cada vez mais ficou “sujeita à vigilância sistemática e repressão efetiva, através dos instrumentos dos julgamentos das bruxas, das cortes eclesiásticas e da confissão intensificada pela Contra-Reforma, além de incutir uma nova moralidade sexual, subordinada ao casamento e à legitimidade”. Porter nos fala sobre uma sujeição e obliteração do

carnavalesco ainda antes da era vitoriana (1837 a 1901), a do recato por excelência e ascensão do puritanismo, mas é razoável afirmar: não estamos hoje menos soterrados por padrões corporais a serem seguidos em que o desvio da regra é duramente repreendido e estigmatizado, como nos diz Sibilia (2004; 2010; 2014). Ainda que historiadores contemporâneos possam afirmar que o alastramento da lógica capitalista tenha relaxado a severidade da ênfase “protestante” sobre o corpo disciplinado, é urgente reconhecer que “o imperativo recentemente havia mudado da ‘mão’ produtiva e disciplinada tipo máquina, para o corpo como consumidor, cheio de deficiências e de necessidades, cujos desejos devem ser