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2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS E A INSERÇÃO DOS

2.2 A concepção contemporânea dos direitos humanos e o ordenamento

2.2.2 A indivisibilidade, interdependência e inter-relação dos direitos humanos e

Conforme já abordado, o nascimento dos direitos humanos ocorre de forma gradual, como um reflexo dos valores universais existentes em cada momento

histórico e, normalmente, como consequência das lutas contra o poder. Em decorrência disso, direitos essenciais à pessoa humana, de naturezas díspares, passaram a integrar o texto dos tratados internacionais.

A percepção da existência dessas diferenças entre os direitos concebidos em períodos históricos distintos levou a doutrina a classificar os direitos humanos em diversas gerações. A classificação dos direitos humanos em “gerações” pode dar margem a uma incorreta interpretação de que os direitos de gerações mais recentes viriam a substituir os de períodos anteriores. No entanto, essas diferentes dimensões19 são na verdade complementares, ainda que, em alguns casos, aparentem ser contraditórias.

Observa-se, na verdade, uma subsistência conjunta de direitos de diferentes gerações, sem que exista uma contradição entre eles, o que poderia ocorrer por causa da heterogeneidade de sua concepção. Portanto, nos dias atuais, diante das características da indivisibilidade e interdependência da concepção contemporânea dos direitos humanos, indubitavelmente, tais direitos devem sempre conviver em harmonia, formando um unidade indivisível e interdependente.

Essa ideia da unidade de direitos humanos de distintas gerações, também existe no ordenamento jurídico de cada país, visto que as diversas normas presentes na ordem interna estatal constituem um sistema e como tal devem sempre conviver em plena sintonia, como um todo indivisível e interdependente. No entanto, há a necessidade de saber qual a melhor maneira de se garantir essa coexistência pacífica e coordenada entre as normas que compõem esse sistema.

Atualmente, não há mais dúvida de que a Constituição é o instrumento adequado para garantir a coerência entre os elementos existentes no sistema jurídico de cada Estado, o que ocorre, principalmente, em razão da sua atual força normativa, decorrente do processo de constitucionalização do direito, na medida em que todas as normas passaram a ser lidas e interpretadas sob o foco do texto

19 Ingo Wolfgang Sarlet (2011, p. 45), no mesmo sentido de Cançado Trindade, critica o termo

gerações, optando por utilizar a expressão dimensões no seu livro “A eficácia dos Direito Fundamentais”, explicando que “aludiu-se, entre nós, de forma notadamente irônica, ao que se chama de ‘fantasia das chamadas gerações de direitos’, que, além da imprecisão terminológica já consignada, conduz ao entendimento equivocado de que os direitos fundamentais se substituem ao longo do tempo, não se encontrando em permanente processo de expansão, cumulação e fortalecimento”.

constitucional. Ao tratar do assunto, Simone Goyard-Fabre (2007, p. 115-116) aduz que:

A teoria constitucionalista, ao ordenar todas as regras de direito sob a Constituição do Estado num todo substancial, [...] caracteriza-se necessariamente por sua homogeneidade e sua unidade lógica. Logo de saída, isso significa que nenhuma lei, e, de modo geral, nenhuma regra de direito, pode ser definida em si e para si, isto é, isoladamente: ela pertence à organização institucional do espaço estatal.

Além da força normativa, para assegurar a indivisibilidade e interdependência entre as normas do ordenamento jurídico brasileiro, é imprescindível também a existência de uma harmonia na ordem jurídica- constitucional. Esse equilíbrio é alcançado com a aplicação do princípio da unidade à própria Constituição, inclusive aos direitos humanos de diferentes gerações nela consagrados como fundamentais.

O princípio da unidade da Constituição vem, desse modo, transferir para os direitos fundamentais, no plano nacional, as características da concepção contemporânea dos direitos humanos, no sentido de que deve existir sempre uma convivência harmônica entre todas as normas constitucionais, inclusive e principalmente os direitos fundamentais, mesmo aqueles com titularidades distintas.

No entanto, diversamente do sistema jurídico como um todo, a aplicação ao texto constitucional do princípio da unidade requer a observância da premissa de que inexiste hierarquia entre normas constitucionais, seja formal ou material, sendo, portanto, incompatível com o sistema brasileiro de Constituição rígida a declaração de inconstitucionalidade de uma norma constitucional.

Neste sentido, não existe possibilidade de hierarquia nem mesmo quando houver uma suposta tensão entre uma cláusula pétrea, que pertence ao núcleo imodificável da Constituição (artigo 60, &4o, CF), e uma norma constitucional considerada axiologicamente “inferior”20, haja vista que a proteção conferida pelo texto constitucional às cláusulas pétreas serve como limite ao poder de emendar do

20O atual Ministro do STF, Luís Roberto Barroso, é favorável ao reconhecimento da “existência, no

Texto Constitucional, de uma hierarquia axiológica, resultado da ordenação de valores constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões entre duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios” (2009, p. 209-210).

constituinte derivado, evitando a destruição dos direitos básicos dos seres humanos, em virtude da total impossibilidade de sua abolição21.

Como consequência da inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais, o princípio da unidade da Constituição deve sempre garantir ao máximo a eficácia de todos os direitos previstos constitucionalmente, mesmo na hipótese de aparentes tensões entre eles, ganhando, assim, segundo lição de Canotilho (2003, p.1223), “relevo autónomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as suas normas”.

Ademais, como princípio interpretativo, o princípio da unidade normativa da Constituição impõe ao intérprete o dever de assegurar a convivência harmônica de todas as normas constitucionais, cabendo a ele a difícil tarefa de, no momento de sua concretização, “buscar a conciliação possível entre proposições aparentemente antagônicas, cuidando, todavia, de jamais anular integralmente uma em favor da outra” (BARROSO, 2009, p. 204).

Portanto, o princípio da unidade da Constituição, juntamente com as características da indivisibilidade, inter-relação e interdependência da concepção contemporânea dos direitos humanos, constituem a base teórica sobre a qual toda e qualquer interpretação dos direitos fundamentais deve ser conduzida. Por esta razão, torna-se evidente a importância mister da interpretação constitucional para que os direitos humanos, implementados como direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, sejam efetivamente aplicados.

21 George Marmelstein (2013, p.279) ressalta que “é possível que uma emenda constitucional,

eventualmente, altere o conteúdo de algum dispositivo constitucional considerado cláusula pétrea, desde que não prejudique, de forma desproporcional, a principiologia básica (essência) dos valores protegidos pelo constituinte originário”.