• Nenhum resultado encontrado

A influência dos sistemas produtivos sobre as formas de trabalho

Capítulo I Introdução

2.1 A influência dos sistemas produtivos sobre as formas de trabalho

Dialeticamente, as trajetórias do homem foram sendo influenciadas pelas transformações no mundo do trabalho. O retrato disso se evidencia ao se observar o quanto as mudanças nos sistemas de produção e de trabalho alteram significativamente as relações que o indivíduo estabelece dentro e fora do trabalho. No século XX, com o Fordismo, Henry Ford influenciado pelas ideias da Organização Científica do Trabalho de Taylor, apresentou um novo sistema de produção, diversificado em inovações tecnológicas e organizacionais, que serviu de modelo para a sociedade, influenciando instituições como Igreja e Família. O modelo previa a racionalização das operações do trabalho, criando-se rígidas linhas de produção e padronização de peças, a fim de tornar o trabalho humano parcelado em tarefas simples e rápidas, o que aumentou a alienação do homem em relação ao processo produtivo. O intuito era reduzir a complexidade do trabalho, controlando o tempo de produção e minimizando o desperdício e assim, reduzir os custos e o preço do produto. Com o aumento da procura no mercado, haveria uma maximização dos lucros da empresa (Gounet, 1999). Portanto, ao homem que no passado criava e transformava a sua realidade restava, nesse momento, a mera submissão. A situação em que se viu, roubado em sua humanidade e fazendo parte das engrenagens do sistema de produção capitalista, foi retratada com brilhantismo em 1936 no filme “Tempos Modernos”, de Charles Chaplin.

No Brasil, a partir do governo desenvolvimentista de J. Kubitscheck [1956-60], iniciou-se uma grande abertura ao capital estrangeiro e à internacionalização da economia (Rocha & Nunes, 1994). Na análise de Antunes (2006), o padrão de acumulação industrial brasileiro mantinha-se sempre estruturado no tradicional processo de superexploração da força de trabalho, articulando salários baixos, prolongadas jornadas e intensificação do trabalho. Porém, no fim da década de 50, as contradições do sistema capitalista anunciavam que o Fordismo entrava em crise. Assim, aquele padrão acumulativo de produção tornava-se incompatível com a retração do consumo, algo que só acentuava a taxa decrescente de lucro (Antunes, 1999/2005). Ademais, somaram-se nesse cenário um aumento dos movimentos

sociais em 1968, nos países industrializados e que rapidamente alastraram-se pelo mundo, questionando referenciais como o valor da liberdade, o uso do corpo, o sentido do trabalho. Neste período, a confiança nas instituições do Estado e da Igreja, cada vez mais abalada, fomentava a discussão acerca do aspecto sagrado do trabalho, tão cultivado pelo pensamento cristão e que sempre sustentou o modo de produção capitalista.

Os movimentos operários na Itália, na década de 70, ganharam destaque internacional, e como resposta surgiram novas políticas sociais introduzindo mudanças na Legislação do Trabalho, no que se refere à saúde e à segurança do trabalhador. Já nos Estados Unidos, a crise do Fordismo era agravada por questões envolvendo a Guerra do Vietnã e o aumento da pobreza, como também pela recuperação gradativa dos países da Europa Ocidental e do Japão que, com seu mercado interno saturado, buscavam saídas na exportação (Harvey, 2001). Concomitantemente, iniciava-se um processo de transferência de indústrias para os países do Terceiro Mundo, incluindo o Brasil. Tais países, devido à crise do petróleo e à recessão mundial, buscavam o desenvolvimento econômico a qualquer custo, estimulando a vinda de indústrias que gerassem divisas. No Brasil, o período de 1964 a 1974, iniciado com o golpe militar, foi considerado a fase do “milagre econômico”, quando se observava que, paralelamente ao crescimento da economia, ocorria um forte arrocho salarial dos trabalhadores e um massacrante controle do movimento sindical. Nesse cenário, as condições de saúde dos trabalhadores eram tão graves que, no início da década de 70, o país foi considerado o recordista em acidentes de trabalho. A partir de 1974, no país, se iniciou uma grande crise interna que, associada à crise internacional (do petróleo), trouxe consequências como a queda nas exportações e o aumento das grandes greves (Rocha & Nunes, 1994). Foi nesse palco de crise mundial que o sistema Fordista, a partir da década de 1950, progressivamente foi substituído por uma reorganização da produção e do trabalho, muito favorável à ideologia neoliberalista - o Toyotismo - que, como salienta Antunes (1999/2005), era apenas uma solução superficial para combater a crise, já que propunha uma mutação no padrão de acumulação do capital e não uma transformação no modo de produção. O modo de produção capitalista deu início a um

[...] processo de reorganização das suas formas de dominação societal, não só procurando reorganizar em termos capitalistas o processo produtivo, mas procurando gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade. Fez isso, por exemplo, no plano ideológico, por meio do culto de um subjetivismo e de um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social (Antunes, 1999/2005, p. 48).

O Toyotismo substituiu os clássicos padrões de acumulação, criando métodos mais flexíveis, compatíveis com a realidade japonesa que necessitava de um modelo que atendesse tanto necessidades e limitações do país, como também a demanda do mercado internacional. Em resposta à retração do consumo, a produção não era realizada em massa, ao contrário, era variada e heterogênea, sendo principalmente determinada pela demanda. Outra característica do modelo se relacionava com o fato de o trabalho não ser individualizado e, portanto, uma equipe operava um sistema ainda mais automatizado. O trabalhador, não mais desqualificado deveria ser polivalente, pois operava várias máquinas e diferentes sistemas do processo. Os salários, entretanto, não se mostravam compatíveis à qualificação do profissional (Antunes, 1999/2005; Gounet, 1999).

O Toyotismo, segundo a análise de Gounet (1999), só permitiu uma exploração ainda maior dos trabalhadores através da intensificação do trabalho, fruto da sobrecarga máxima de cada operário, já que este se dividia entre várias máquinas diversificadas ao mesmo tempo. Do trabalhador cobrava-se imensa agilidade e a redução dos “tempos mortos” (just-in-time), além das tarefas de controle de qualidade da produção e de manutenção das máquinas (sistema kanban). Somando a essa configuração de máxima exploração dos trabalhadores, os salários tornavam-se mais reduzidos e a proteção social nas fábricas mais degradada devido à introdução da terceirização. Sobre as condições sociais nas pequenas fábricas terceirizadas, Gounet (1999) critica serem ainda piores, pois dividem os trabalhadores, dificultando-lhes a organização de luta por melhores condições de trabalho.

Foram às custas da reestruturação do controle da produção e do trabalhador e da intensificação da jornada de trabalho, a partir da segunda metade da década de 1980, com a recuperação parcial da economia, que houve a ampliação das inovações tecnológicas, com a automação e a microeletrônica, algo que traria novas repercussões às condições de vida do trabalhador. Conforme os sistemas tecnológicos foram avançando e influenciando as formas de organização dos trabalhos, maior se tornou a alienação do trabalhador, na análise de Antunes (2006). Assim, a partir de 1990, o receituário toyotista estava consolidado: subcontratações, terceirização da força de trabalho, descentralização das indústrias, rebaixamento dos níveis salariais, caracterizando-se um processo que passou a ser denominado como liofilização organizacional por Juan José Castilho (Antunes, 2006). Diante de transformações tão avassaladoras nos modos de viver e trabalhar, o homem se viu preso a uma cultura da sobrevivência (Harvey, 1993; Lasch, 1983).

Contribuindo, portanto, para caracterizar a era atual como inconsistente, fluida, de extrema instabilidade, nomeada pós-modernidade, ou modernidade líquida como sugere Bauman

(2001), o mundo do trabalho no século XXI é um cenário em constante mutação dos processos de produção e organização, sempre acompanhando as reestruturações do sistema de mercado. Ganham importância as tecnologias de automação e informação e os processos da mundialização e flexibilização das economias.

Entre recentes e antigas questões que alarmam os debates e estudos da área, destacam-se cada vez mais a fragilização e a precarização das relações de trabalho (Antunes, 1999/2005, 2005; Antunes & Alves, 2004; Pochmann, 2004), sempre aliada à inexpressividade das forças sindicais. No outro extremo, identificam-se a necessidade da hiperqualificação e flexibilização do profissional, cada vez mais impulsionada pelas exigências do mercado competitivo e pelo enxugamento das vagas de emprego (Pochmann, 2004, 2006). Observou-se também um deslocamento do perfil de doenças e morbidades causadas pelo trabalho, sendo as doenças profissionais clássicas substituídas pelas “doenças relacionadas com o trabalho”. Entre elas, Dejours (2007) destaca as patologias de sobrecarga (burn out, karôshi, disfunções musculoesqueléticas), as patologias pós-traumáticas, as patologias de assédio, as depressões e tentativas de suicídio.

As análises psicossociais constantemente se remetem às elevadas taxas de desemprego e ao crescimento desenfreado da informalidade, do subemprego e da terceirização (Antunes, 2005; Pochmann, 2004, 2006) o que gerou grande impacto nos trabalhos e nas carreiras que se tornam cada vez mais heterogêneas, fragmentadas e menos coletivas (Ribeiro, 2011). Entre os grupos sociais mencionados como aqueles que mais têm sofrido os impactos da precariedade e da vulnerabilidade psicossocial envolvidas nas relações com o trabalho, destacam-se os jovens que, com base nas políticas públicas brasileiras, têm sido divididos em três faixas etárias: adolescentes de 15 a 17 anos, jovens de 18 a 24 anos e jovens adultos de 25 a 29 anos (OIT, 2009). Por “vulnerabilidade” entende-se a situação de “exposição potencial maior a riscos de diversas naturezas – sociais, econômicas, políticas, culturais, entre outras – que implicam o enfrentamento de diversos desafios” (Camarano, Mello, Pasinato, & Kanso, 2004).

Carreteiro (2009), estudando a população jovem, ao final do Ensino Médio, de famílias com escassez de recursos financeiros, identificou a situação desses jovens como de desamparo, uma vez que se sentem cobrados por seus pais a enfrentarem o desafio de conciliarem trabalho e estudo e, por outro lado, ainda são pouco incentivados pela escola pública, que não lhes oferece mecanismos eficientes para ajudá-los no enfrentamento da transição escola-trabalho. É conveniente ressaltar que, ações governamentais, em termos de planejamento e de implantação de políticas públicas, visando ao atendimento da população juvenil (entre 15 e 24 anos de idade) apenas passaram a ganhar relevância no cenário brasileiro a partir do fim da

década de 90, quando se evidenciou que este segmento se encontrava em situação de extrema vulnerabilidade diante das transformações na ordem capitalista mundial (Velasco, 2006).

Em pesquisa com jovens à procura do primeiro emprego, Wickert (2006) observou que estes têm se “agarrado” a qualquer atividade como forma de inserção no sistema de trabalho frente à ausência de chances de escolha, renunciando a qualquer sonho de realização profissional. Segundo Wickert (2006), estes jovens muitas vezes se culpabilizam por se sentirem desqualificados ou por terem formação insuficiente ou inadequada. Por outro lado, Pochmann (2004), salienta que, à medida que o nível de escolaridade da população de baixa renda aumenta, observam-se indicadores cada vez mais expressivos de desemprego. Ademais, diante da escassez de vagas de trabalho e do excedente de mão-de-obra, o que acaba se evidenciando é, em primeiro lugar, a discriminação da população de baixa renda.

Diante desse contexto, Ribeiro (2011) está entre os autores que alertam que o quadro atual, por ter instaurado uma situação de vulnerabilidade psicossocial para uma parcela considerável da população economicamente ativa, fez com que o valor de centralidade do trabalho perdesse muito de sua potência estruturante. Entretanto, é difícil pensar que o trabalho deixará de ser central no modo de produção capitalista, onde esta atividade gera sobrevivência e quando se instiga tanto que o tempo livre do trabalhador seja ocupado pelas mais diversas formas de consumo (Antunes & Alves, 2004). Reconhece-se, no entanto, a importância do trabalho para as trajetórias pessoais, sobretudo porque, instalado na área intermediária entre indivíduo e sociedade, o trabalho pode ainda oferecer experiências sociais de troca que proporcionam significado de existência ao “si mesmo”, sustentando a saúde mental, um viver criativo e, mais amplamente, a construção da sociedade (Dejours, 2004; Veronese, 2006).