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CAPÍTULO 2 MODERNIZAÇÃO, URBANIZAÇÃO E LIÇÕES DE CIVILIDADE

2.3 A INSEGURANÇA SOCIAL E A QUESTÃO DO TRABALHO

O novo contexto da industrialização atraía a população para os centros urbanos, trazendo os problemas que acompanham o acúmulo do capital nas mãos de poucos. Essa temática foi salientada nas histórias da Coleção. Os textos mostravam as angústias das populações das cidades em franca expansão, as quais precisavam conviver com situações adversas, como o crescimento da violência urbana e a busca pelo trabalho.

As evidências de insegurança social foram mostradas com destaques nos textos em que ladrões invadiam casas, eram capturados, assustavam moradores. (CASASANTA, pré- livro, 1969, p. 58-70, 81; intermediária, 1969, p. 123-137). A preocupação com a segurança do patrimônio aparece nas cenas em que são mostrados vigias armados em permanente estado de alerta, policiais em ação, cenas de caçadas aos foras da lei e o incentivo ao armamento da população.

A Figura 14 mostra o tipo físico que era considerado um perigoso marginal. Forte, usando camiseta listrada, com boina, barba por fazer e pelos nas mãos. Ele entra,

aparentemente, sem muita dificuldade na casa luxuosa, pulando a janela. A cena demonstra que, apesar do crescimento da insegurança nas cidades, muitas famílias mantinham hábitos próximos do estilo rural, uma vez que, altas horas da noite, a janela ou estava aberta ou tinha trancas frágeis, e a vigilância fora confiada ao louro da família.

Figura 14 Um vigia diferente

Fonte: CASASANTA (pré-livro, 1969, p. 81).

Num contraste interessante, a imagem seguinte (Figura15) mostra uma casa modesta, mas também com a questão da insegurança social presente. Afinal, nota-se um cão de guarda armado em atitude vigilante, portando uma espingarda com grande naturalidade.

Figura 15 - Um guarda feroz

Fonte: CASASANTA (intermediária, 1969, p. 39).

À medida que se dava o desenvolvimento econômico, diminuía a exclusão social, mas não a desigualdade (GOMES, 2013). O êxodo rural que levava as pessoas em busca de

melhores condições de trabalho nos centros urbanos inchava as cidades. A população, sem acesso à proteção social do Estado, lutava pela subsistência. Esses desafios fizeram parte da trajetória da própria autora, conforme relatado por Souza (1984). As constantes dificuldades financeiras enfrentadas pela grande maioria nas cidades que cresciam foram abordadas em diversos textos, refletindo as carências de alimentação, de vestuário, de moradia e passando pelos desafios de conseguir um trabalho que possibilitasse suprir, pelo menos, essas necessidades básicas. De acordo com vários autores os anos de 1950 foram de muito progresso na economia do país, mas a grande maioria da população estava alijada dessa política econômica que beneficiava a industrialização. As transformações alteraram o consumo e o comportamento apenas de parte da população que habitava os grandes centros urbanos (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2014; BASTOS; FONSECA, 2012; GOMES, 2013; BOMENY, 2016; KORNIS, 2016).

O desafio para garantir a sobrevivência, daqueles que não tinham acesso ao conforto produzido pela industrialização, foi traduzido no impresso, através da temática da sorte grande. Ela alimentava a esperança e o sonho de uma vida melhor, era constante e atravessava diversas histórias (CASASANTA, pré-livro, p.7-31; leitura intermediária, p.9-28; primeiro livro, p.111-114; segundo livro, p. 7-13, 17-19, 60-63; terceiro livro, p.58-62, 84-85, 139-141, 151-156, 158-170; quarto livro, p.72-75).

Em vários textos, foram retratadas famílias que viviam na miséria, e os pais doavam os filhos para não os ver morrer de fome. A justificativa apresentada era a dificuldade do pai em garantir a subsistência da família, em razão da falta de oportunidade de se conseguir trabalho. Acuadas, sonhava com a solução dos problemas financeiros de forma mágica, ou por meio de recompensa por algum feito heróico.

Nas narrativas, em que os desafios da subsistência eram resolvidos utilizando desses artifícios citados, a produção da riqueza estava dissociada do trabalho do homem nessa relação. As pessoas conseguiam melhorar a condição financeira, sem uma conexão entre trabalho e riqueza. Tornar-se rico era decorrência de qualidades de caráter, como a bondade e a honestidade; uma questão de mérito. A história de Saca Manim mostra que ele era um homem bom e honesto e, por isso, as fadas da floresta gostavam dele. Um dia, ao atravessar a floresta, uma delas lhe deu um vaso mágico. O homem não precisava realizar qualquer esforço, pois era só emborcá-lo e a vasilha começava a fabricar caramelos deliciosos. O texto

segundo livro, 1969, p. 44).

era uma criança ou um adulto classificado como um bobo. Quando o enriquecimento estava associado a algum tipo de ação concreta, era um golpe de sorte que possibilitava a sua concretização. Uma única ação, realizada por alguém que geralmente era social e historicamente inferior, permitia a mudança da condição de pobreza para a riqueza. Esse fato ocorreu com Epaminondas (Figura 16), que, em virtude da situação humilhante em que se encontra, carregando um burro nas costas, consegue fazer uma menina rir e é gratificado pelo pai dela com uma bolsa de dinheiro (CASASANTA, segundo livro, 1969, p.119 - 122).

Na ilustração da história, o pai da menina foi retratado elegantemente trajado, assim como a filha em seu vestido delicado. Eles contrastam com o vestuário simples de Epaminondas e, principalmente com os pés, calçados numa botina grosseira, visivelmente destacada pelas calças curtas, que remete ao vestuário caipira. Motivo de chacota, o rapaz é mostrado como sendo inferior, inclusive ao burro, que olha para ele com expressão de estranhamento.

Figura 16 - Um ato heroico diferente

Fonte: CASASANTA (segundo livro, 1969, p. 121).

As representações sobre a espera da sorte grande se misturam com a defesa do trabalho e a forte crítica à vadiagem. Este comportamento foi reprovado juntamente com o desestímulo à boemia. Como sabemos, desde os tempos do Estado Novo, buscava-se converter a figura do malandro no operário de fábrica exemplar. Independentemente do tipo de atividade exercida, se intelectual ou manual, amar o Brasil era trabalhar (VELLOSO, 1993). As demandas da tecnologia e a melhoria das comunicações exigiam outra lógica no sentido de estimular a aquisição de hábitos do ofício, uma vez que o país necessitava de um

novo tipo que fosse ágil, eficiente e diligente. Se até uma enxadinha trabalha bem, todos os dias, por que o brasileiro não poderia fazer o mesmo?

A enxadinha Minha enxadinha trabalha bem; corta matinhos num vai-e-vem. Minha enxadinha Vai descansar, Para amanhã Recomeçar. Adeus, rocinhas! Adeus, trabalho! A vós, plantinhas,

O doce orvalho. (FARIA NETO, apud CASASANTA, primeiro livro, 1969, p. 16).

Assim como era ensinado o valor da rotina de trabalho no poema citado, na história s três porquinhos (texto base para a alfabetização), o herói é representado como aquele que trabalhava e, por essa razão, foi bem-sucedido. As historietas foram utilizadas para reforçar a lógica do esforço e desestimulavam o ócio. Na construção das próprias casas, o porquinho Palhaço escolhe palhas, um recurso de fácil acesso no campo; assim como os paus, da casa de Palito. Eles tiveram preguiça para investir na escolha dos materiais, optando pelos mais acessíveis. Sem o trabalho árduo agregado, foram castigados ao terem a casa destruída pelo lobo (CASASANTA, 1969).

Essa temática se estendeu para a diferenciação entre o trabalho intelectual e o manual. O primeiro tipo era representado na figura de Pedrico. Simbolicamente, sua figura é um contraponto ao trabalho manual e ao ócio, estes dois últimos retratados na figura dos outros dois irmãos, Palhaço e Palito. Em razão de suas escolhas não estarem relacionadas ao conhecimento livresco, foram considerados menos inteligentes, preguiçosos, adeptos da lei do menor esforço. Na ilustração da história, um dos porquinhos lava vasilhas na pia, enquanto o outro caminha sorridente pela casa, aparentemente sem nenhuma atividade. Pedrico, de óculos, lia um livrão grosso , separado dos demais, isolado na sua biblioteca (Figura 17).

Figura 17 - Trabalho intelectual e manual

Fonte: CASASANTA (intermediária, 1969, p. 20).

No decorrer da narrativa, Pedrico foi o único dos três porquinhos apresentado como valente; os outros dois não receberam esse adjetivo. É possível inferir que não cultivavam os hábitos de estudo e, por esta razão, não liam e não demonstravam proatividade, ficando à sombra do irmão. Da mesma forma, não sabiam tudo, pois não aprenderam nos livros. Para acentuar a diferença entre os dois e o irmão leitor, o modo de vestir foi diferenciado, num estilo mais informal conforme a Figura 17. A expressão corporal e os trajes que o intelectual utiliza demonstram que estava realizando um trabalho nobre, valorizado e superior às tarefas dos seus irmãos.

Com a imagem de Pedrico e seu livrão, a criança ainda no início da alfabetização era educada por meio dos textos e das ilustrações, para a valorização do trabalho, resultante do conhecimento científico e associado à escola e à cultura livresca. O livro era visto como ícone da aprendizagem e ligado a esse espaço. Representava conhecimento adquirido e estava à mostra nas prateleiras, espalhado sobre as mesas e nas mãos do porquinho, sugerindo acesso fácil. Nesse ato, estava evidenciado todo o universo simbólico elucidativo da cultura da sociedade do período, que expressa a supremacia conquistada por aqueles que revelam uma intimidade com seus rituais e objetos.

Pedrico tinha muitos livros em casa e estava preparado para resolver todo tipo de problema, porque esses objetos davam essa garantia. Essa representação foi reforçada pela

loba, que, ao ver a biblioteca da casa, Pedrico é

mais valente do que o lobo, ele sabe tudo, ele aprende tudo nos livros

para aprender a ler, para aprender tudo nos livros (CASASANTA, leitura intermediária, 1969, p. 20). Nessa lógica, a escola, simbolicamente representada pelo livro, tornar-se-ia o caminho

de acesso para a mobilidade social.

No imaginário de muitos grupos sociais do período, quem não gostasse de trabalhar deveria ser rejeitado socialmente. Práticas eram estabelecidas para lidar com o ocioso. No pré- livro essa representação era claramente defendida, ao mostrar a rejeição sofrida pelo gatinho Minau, conforme demonstrado na Figura 18 e no texto. Em virtude dessa condição, a personagem recebeu a alcunha de malandro, além de ficar evidente que, por esta razão, era vista como uma persona non grata pelos demais animais (CASASANTA, 1969).

Figura 18 - Um vigia feroz

Fonte: CASASANTA (pré-livro, 1969, p. 71).

Eu sou o Plutão.

Eu não gosto do gatinho Minau. Minau é um gatinho malandro. Ele não caça ratos.

Ele só bebe leite e come carne. Eu não sou malandro.

Eu tomo conta da casa dia e noite (CASASANTA, pré- livro, 1969, p. 71).

É interessante ressaltar a expressão atenta e feroz do cão trabalhador, que serviria para inibir qualquer comportamento que tendesse para a preguiça. Esse personagem literalmente ocupa a cena enquanto o gatinho se encontra ausente do cenário. A única informação dada sobre Minau são algumas sílabas do seu nome que aprecem numa casinha. Há uma continuidade da história mostrando uma cabrinha e seu filhinho olhando para o gatinho de forma reprovadora, enquanto ele fica surpreso e confuso com a animosidade da qual é alvo

(Figura 19). A história deixa claro que a cabrinha, que gosta de trabalhar, também não gosta

do Minau, (CASASANTA, pré-livro, 1969, p. 71). O filho

imita a atitude da mãe assumindo o mesmo comportamento de reprovação em relação ao preguiçoso.

Figura 19 - A cabrinha e o filho recriminam o gatinho preguiçoso.

Fonte: CASASANTA (pré-livro, 1969, p. 72).

A temática do trabalho manual em comparação ao intelectual é retomada na história do porquinho preguiçoso que saiu de casa para procurar um trabalho mais fácil. Ao final da narrativa, após várias tentativas sem sucesso, percebeu que os demais trabalhos que ele tentara realizar, eram muito difíceis por exigirem esforço mental. Esse tipo de tarefa era para aqueles que desenvolvessem a disciplina. O porquinho, sentindo-se incapaz de adotar essas condições, decidiu voltar para casa, e cuidar de suas flores e verduras (CASASANTA, 1969).

Nesse texto, fica implícito que a vida rural era vista de forma romantizada, numa harmonia entre o homem e a terra. Há um entendimento de que as atividades nesse espaço exigiriam pouco esforço para sua realização e consideradas mais fáceis, se comparadas com a atividade intelectual. A personagem foi estimulada a reconhecer que sua aptidão natural era para o trabalho braçal. Seu destino foi selado na atitude de descrédito do professor, que observava confortavelmente instalado no seu ambiente natural citadino a performance desajeitada do seu aluno do campo (Figura 20).

Figura 20 - Um violinista desajeitado

Fonte: CASASANTA (segundo livro, 1969, p. 130).