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2.2 O TEATRO NO ENSINO BÁSICO DA REDE ESTADUAL

2.2.1 A inserção do Teatro na escola, breve retrospectiva

É possível afirmar que as primeiras inserções do Teatro em ambiente escolar ocorreram ainda no período colonial, sob a responsabilidade dos jesuítas, especialmente o padre José de Anchieta, autor de vários autos, escritos em língua portuguesa e também em língua Guarani. Conforme afirma Sábato Magaldi, “as primeiras manifestações cênicas no Brasil cujos textos se preservaram são obra dos jesuítas, que fizeram teatro como instrumento de catequese.” (MAGALDI, 1978, p.16). Com os jesuítas, foram amplamente utilizadas a dramatização e a criação de peças com fins catequéticos e educacionais, provavelmente a primeira experiência de teatro com fins pedagógicos inaugurada no Brasil. “A moral religiosa católica era passada pelas teatralizações, que, interpretadas pelos próprios índios, buscavam facilitar a assimilação da nova cultura de forma vivenciada.” (CARVALHO, 1989: 169-170) (grifo do autor). Apesar de Santana (2001) e Koudela (2000) destacarem que os fins de tais encenações se limitavam à catequização, estes podem ser considerados como os auspícios do uso instrumental do Teatro em ambiente educacional.

De fato, os jesuítas acabaram sendo fortes influenciadores da educação brasileira, que ainda preserva aspectos da escola tradicional, herança advinda dos tempos da colonização, quando mantinham um ensino dogmático - baseado apenas na visão da Igreja - trabalhado numa perspectiva linear, tendo como referência os pressupostos de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Mesmo o ensino não sendo mais uma exclusividade da Igreja Católica, nem esteja mais sob a orientação jesuítica, alguns estabelecimentos mantêm sua credibilidade como heranças desse período, tendendo a permanecer tradicionais em alguns aspectos. Na cidade de Salvador, ainda hoje muitos são os colégios religiosos que mantêm o ensino privado, por meio de instituições, como Maristas, Sacramentinas, Salesiano e Antonio Vieira, apesar de escolas laicas terem ganhado espaço no meio educacional.

14. Ressalto que não há o propósito de traçar aqui uma breve evolução da inserção do Teatro e das artes em ambiente escolar, mas sim, de destacar pontos importantes na história que possam favorecer a compreensão do momento atual.

Por muito tempo, no campo do ensino das artes, os currículos valorizaram apenas o ensino de Artes Visuais, prática implantada oficialmente no Brasil no início do século XIX, com a chegada da Missão Francesa, e da criação da Escola Nacional de Belas-Artes (BARBOSA, 1978, p. 16), portanto carregado ainda de uma visão colonialista de importação dos saberes europeus.

The genesis of the artistic teaching happened formally in 1816, with the creation of the School of Sciences, Arts and Employment Profession, and The Imperial Academy of Fine Arts, both in the city of Rio de Janeiro. The literature points out to the prejudices that the artists had to face at that period and the characteristics that marked their teaching practice – on one side the “artist-teachers” ignored the culture that was being unfolded and, on the other hand, they themselves didn’t have the same prestige granted to poets and writers. From that moment on, drawing teaching became relevant in some way in the elementary school, talking for granted the methods that would not take into consideration the native culture and the baroque tradition that was still enduring for two hundred years. (SANTANA, 2001, p. 1-2).15

Tal situação é de predominância das Artes Visuais, que perdurou, mesmo que tenham sido levadas a cabo iniciativas esporádicas no campo do ensino da Música ou do Teatro. Foi somente a partir da década de 1930, com a difusão dos ideais da Escola Nova, da criação das Escolhinhas de Arte do Brasil e com a experiência da Escola Parque da Bahia, que as artes se inserem efetivamente no ensino primário da escola pública. Durante este período, deu-se de modo espontâneo, e de forma isolada em alguns estabelecimentos de ensino, a prática do Teatro na escola, de acordo com relato de professores e estudantes do citado período, quando passaram a ser comuns em alguns ginásios e colégios as aulas de Arte Dramática.

A partir do golpe militar, em 1964, a prática do Teatro passa a ser considerada perigosa. A censura se fez presente em diversos níveis, motivo pelo qual algumas escolas foram fechadas e seus professores aposentados, como diz

15. A gênese do ensino artístico aconteceu formalmente em 1816, com a criação da Escola de Ciências, Artes e Ofícios e da Academia Imperial de Belas Artes, ambos na cidade do Rio de Janeiro. A literatura aponta para os preconceitos que os artistas tiveram que enfrentar naquele período e as características que marcaram sua prática de ensino - de um lado os "artistas- professores" ignoraram a cultura que estava sendo desenvolvida aqui e, por outro lado, eles próprios não tinham o mesmo prestígio concedido a poetas e escritores. A partir desse momento, o ensino de desenho tornou-se relevante, de alguma forma no ensino fundamental, consolidando métodos que não levavam em consideração a cultura nativa nem a tradição barroca que perdurava por cerca de 200 anos. (Tradução própria.)

Marli Bonome, pesquisadora brasileira do Teatro na Educação, em entrevista concedida a Ricardo Japiassú:

Com a repressão imposta pelo golpe militar de 1964, os movimentos renovadores foram interrompidos. O teatro ficou rotulado como perigoso inimigo público e as aulas de artes dramáticas, nessas escolas, mesmo na década de 70, não eram ignoradas pelo regime militar – que exigia que os textos teatrais trabalhados nessas escolas fossem previamente encaminhados ao Departamento de Censura Federal. Em 1968, escolas foram “invadidas” e “fechadas” e muitos professores aposentados com base no Ato Institucional nº 5 e na Lei de Segurança Nacional. (JAPIASSU, 2001, p. 49-50).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5.692, publicada em 1971, instituiu a Educação Artística como matéria obrigatória do ensino básico, considerada como atividade, uma vez que não havia a atribuição de notas, mas, de contagem da frequência dos alunos, sendo necessário o mínimo de 75% de participação nas aulas para se obter a aprovação. A ideia da Educação Artística era ampla e integrava diferentes modos de expressão, fosse o Teatro, a Música, as Artes Visuais, a Dança, o Artesanato, etc., em uma só disciplina. Assim, foi instituída a polivalência, o que significava que um único professor teria que ter o domínio das diversas linguagens, para dar uma iniciação artística generalizada aos alunos em todas elas (PCN-ARTE, 2000, p. 29), situação que perdura ainda em grande parte das escolas da rede pública, apesar das importantes transformações, inclusive legais, ocorridas posteriormente.

Foi nesse contexto [com a adoção da Lei nº 5.692] que o ensino de arte entrou em cena oficialmente na educação brasileira, com o advento da Educação Artística para o ensino de 1º e 2º graus e do curso de Licenciatura em Educação Artística para o ensino superior, nos formatos de duração curta e plena [...] Isso se deu quer pela concepção pedagógica equivocada - a de fusão polivalente das linguagens artísticas, "conceito" que tentava abrigar um ensino pretensamente "interdisciplinar" das artes cênicas, plásticas, música e desenho, ministrado por um mesmo professor, da 1ª a 8ª série do 1º grau - , quer pela inadequação física das escolas ou então pela necessidade que se impôs quanto à improvisação de professores, provenientes das demais disciplinas, para preencher as lacunas criadas pela nova atividade escolar, já que não havia professor qualificado para tal. Formou-se, assim, uma verdadeira confusão que passava pela questão da competência profissional, do enfoque teórico- metodológico, das técnicas e materiais didáticos, como pelo próprio preconceito dos professores das outras disciplinas quanto à incompreensão

da arte como forma de conhecimento, o que infelizmente perdura até hoje. (RIBEIRO, 2009, p. 89).

A partir da década de 1980, com os congressos universitários, os encontros das associações de arte-educadores no Brasil e a ampliação do ensino e pesquisa na área do ensino das artes nas grandes universidades brasileiras, a visão integracionista (junção de diferentes manifestações artísticas em uma única disciplina e por um único professor) passa a ser duramente criticadas como modelo para o ensino das artes.

Também como consequência do processo de redemocratização do país iniciado desde os anos 80 do século XX, é que se estrutura a luta dos arte- educadores para a substituição da LDB nº 5.692/71, por uma outra, com novas regras para o ensino das artes em todo o nível básico. Professores e pesquisadores passam a influenciar, então, os novos posicionamentos, orientações e fundamentação para as propostas de ensino-aprendizagem nas diferentes linguagens artísticas.

A partir de Congressos Nacionais e Internacionais sobre Arte e Educação, organizados pelas Universidades e pela Federação Nacional dos Arte- Educadores do Brasil – FAEB (criada em 1987), passou-se então a discutir questões sobre cursos de Arte, nas diversas linguagens artísticas, da pré- escola até a universidade, incluindo a formação de profissionais educadores que trabalhem com Arte. (PCNEM, 1999, p. 170).

Conforme esclarece José Mauro Ribeiro em seu texto Políticas públicas para e o ensino de Arte no Brasil, um longo período de discussão e negociação antecedeu a promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a de número 9.394, em 1996, na qual é instituída, em seu Artigo 26, parágrafo 2º, a obrigatoriedade do ensino da disciplina Arte.

A construção deste árduo e belo caminho firmou-se através de lutas, debates, experimentações artísticas, pesquisas e, principalmente, pelo movimento organizado dos arte-educadores, iniciado na década de 1980, marcado por inúmeros encontros nacionais, ampliadores de um debate até então restrito às agências formadoras, conselhos, secretarias de educação. (RIBEIRO, 2009, p, 90).

Instaura-se ainda a busca pelo ensino das especificidades das linguagens artísticas, e o reconhecimento da Arte como uma forma de conhecimento humano, fortalecendo a ideia, cada vez mais difundida nas universidades, da importância de um ensino artístico com qualidade e “no mesmo patamar de igualdade com as demais disciplinas da educação escolar” (BRASIL, 1999, p. 170). A referida lei é o instrumento legal de gerenciamento do atual sistema educacional brasileiro.

O ensino de Arte e o empenho pelo respeito aos conteúdos e fundamentos específicos da disciplina têm também como suporte os Parâmetros Curriculares Nacionais, os chamados PCNs, que destacam como principal corrente metodológica no que diz respeito ao ensino das Artes a criação, a apreciação e a compreensão de quatro linguagens artísticas, a saber: a Dança, o Teatro, as Artes Visuais e a Música. O Teatro, assim como as demais linguagens, está presente no currículo como um modo de educação artística e estética do educando, visando ao seu desenvolvimento expressivo, estético e cultural (BRASIL, 1999 e 2000).

Importante perceber que a grande problemática que se verifica após a entrada em vigor, já há mais de dez anos, desta "nova" LDBEN, é que nem todos os seus objetivos e ideais, especialmente os que regem o ensino da Arte, foram ainda alcançados ou sequer colocados em prática. Todavia, são exatamente as contradições e as dificuldades que acentuam a distância existente entre o que é proposto legalmente e o que, de verdade, tem acontecido nas escolas que se pretende explorar, debater e descrever nesta tese. Ao apresentar os dados da pesquisa que delineiam um mapeamento do ensino da Arte-Teatro, nas escolas públicas em Salvador, serão abordados aspectos legais e práticos, e levantadas problemáticas secundárias que podem também ser similares e pertinentes à realidade do ensino público em outros Estados brasileiros no que diz respeito à inserção das atividades teatrais nas escolas de ensino médio.

Portanto, hoje é possível dizer que o Teatro é reconhecido como uma forma de expressão e conhecimento humano, característica que lhe é intrínseca desde os primórdios da sua evolução, que existe na sociedade e por isso deve existir na escola. Ao longo das últimas décadas, diferentes justificativas fundamentaram a inserção das artes e do Teatro no ambiente educativo. Autores como Carminda

André (2011), MauraPenna (2001) e Arão Santana (2000) já traçaram uma revisão desses fundamentos, o que é também encontrado nas as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006). Neles há o reconhecimento de muitas justificativas para a inserção do Teatro na escola, que variaram com o tempo e de acordo com as correntes educacionais (seja tradicional, tecnicista, escolanovista, etc.), e que consideraram como relevantes os aspetos mais psicológicos ou sociais do fazer artístico por evidenciarem a liberdade de expressão, desbloqueio emocional, desenvolvimento da criatividade ou o caráter socializador aos alunos que participassem das aulas. Sem excluir outras características que lhe são intrínsecas, defende-se hoje o domínio da linguagem teatral em uma perspectiva triangular do ensino das artes, como princípio fundante para sua inserção, notadamente no nível médio, última etapa do ensino básico.16