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CAPÍTULO 02 NAS REDES INTELECTUAIS E POLÍTICAS CULTURAIS DO

2.1 A institucionalização do folclore no Brasil

Num contexto de afirmação dos projetos do nacional-desenvolvimentismo do Pós- Guerra, foi criado no Rio de Janeiro em 1946 o Instituto Brasileiro de Educação Ciência e Cultura (IBECC), como uma Comissão Nacional da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) no Brasil. Antônio Abrantes afirma que essa “proposta buscava disseminar a ciência, a educação e a cultura, como meios para promover o desenvolvimento nas regiões subdesenvolvidas e a paz mundial”.1

Em meio a este processo, nos deparamos com o relevante destaque da Comissão Nacional de Folclore (CNFL), uma das várias Comissões que integravam o conjunto institucional do IBECC. A Comissão, de caráter paraestatal, foi organizada no âmbito do Ministério das Relações Exteriores para ser a representante brasileira na UNESCO.

Tendo a sua frente da CNFL o intelectual Renato Almeida, importante funcionário de carreira do Ministério das Relações Exteriores, a Comissão conseguiu promover o debate e organização em torno de folcloristas, a pauta de defesa da cultura popular brasileira.

Por meio dessa causa, o debate folclórico entra em cena na medida em que vão se organizando em congressos, encontros e instituições como forma de conseguirem espaço para se firmarem como produtores e disseminadores do conhecimento relativo ao campo da cultura popular.2 A necessidade dessa organização se firmava também pelo paradigma em que eram vistos tais folcloristas, “como intelectuais não acadêmicos, ligados por uma relação romântica do seu objeto, que estudaria a partir de um colecionismo descontrolado e de uma postura empiricista”, segundo Renato Ortiz.3

Esse momento é caracterizado pelos próprios agentes da causa folclórica como participantes de “um movimento”, verificado por Luís Rodolfo Vilhena ao identificar

1 ABRANTES, Antônio Carlos Souza de; AZEVEDO, Nara. O Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e

Cultura e a institucionalização da ciência no Brasil, 1946-1966. Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. Belém, v. 5, n. 2, mai. ago. 2010, p. 469-489

2 Para mais detalhes sobre o processo de institucionalização dos folcloristas, cf. VILHENA, Luís Rodolfo.

Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947 – 1964). Rio de Janeiro: FUNARTE: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

temporalmente entre os anos de 1947 e 1964. Para o autor esse tempo se constituiu como “o período em que se alcançou o seu maior prestígio e sua maior publicidade [...] marcado por um engajamento de um expressivo contingente de intelectuais na valorização da cultura popular, concebida por eles não apenas como um objeto de pesquisa, mas principalmente como o lastro para a definição de nossa identidade nacional”.4

A saída para o problema que estigmatizava o perfil do folclorista, seria por meio da consolidação nos espaços acadêmicos, onde, legitimados no campo de produção de saber, estariam garantidos para atuarem na pesquisa e divulgação da cultura popular. No entanto, devemos observar o relativo impasse ocorrido entre os intelectuais da Escola Sociológica Uspiana e os principais ideólogos da CNFL, dentre eles contamos com o expressivo destaque de Edison Carneiro.

Durante a década de cinquenta se condensaram as tensões entre os folcloristas da Comissão e os sociólogos da USP, tendo à frente Florestan Fernandes. O principal debate marcava o lugar científico do Folclore, pois a posição Uspiana consolidava-se contrária à concepção que tomava os estudos de folclore como "científicos", garantida através do processo empírico folclórico, assegurado pelos integrantes da CNFL.

Para Vilhena a posição de ataque de Florestan Fernandes, que via o folclorista como um colecionador, garantia uma única e grande contribuição a dar, “na medida em que assimilasse as técnicas científicas modernas, sem pretender caracterizar-se propriamente como cientista”.5

Para os teóricos da CNFL, o caráter sistemático do estudo folclórico permitiria sua adoção no currículo universitário e seu amplo uso na educação básica. Entretanto, se observarmos a trajetória do folclore no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930, percebemos o quanto estiveram longe de atingir esse processo institucional via universidade.6 O apogeu desta institucionalização seria a criação de um órgão independente, pois a CNFL estava submissa à estrutura burocrática do IBECC.

A ideia de criação deste órgão governamental surgiu no I Congresso Brasileiro de Folclore, realizado no Rio de Janeiro em agosto de 1951, no qual os folcloristas reunidos

4 VILHENA, Luís Rodolfo. op. cit., 1997, p. 22.

5 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro; VILHENA, Luís Rodolfo da Paixão. Traçando fronteiras:

Florestan Fernandes e a Marginalização do Folclore. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 5, 1990, p. 75- 92.

6 Sobre a institucionalização do Folclore no Brasil e as Ciências Sociais quando Amadeu Amaral tenta criar a sua

Sociedade Demológica; Mário de Andrade criando a Sociedade de Etnografia e Folclore em São Paulo; Luís da Câmara Cascudo, a Sociedade Brasileira de Folclore no Rio Grande do Norte, ou seja, estas instituições pouco têm a ver com o modelo universitário, privilegiado por Florestan Fernandes na USP. Cf: CAVALCANTI; VILHENA. op. cit. 1990.

solicitaram ao presidente Getúlio Vargas a criação de uma instituição com a capacidade de assumir a imensa tarefa de defesa, pesquisa e estudo do folclore brasileiro. Porém, somente em 1957, já no III Congresso Brasileiro de Folclore, realizado na Bahia, foi anunciado pelo presidente Juscelino Kubitscheck a criação de um grupo de trabalho para a estruturação do órgão destinado a defesa do folclore.7

Vilhena afirma que a aproximação com o Estado foi se tornando uma necessidade para os folcloristas, pois a unificação do Folclore a nível nacional já estava na pauta de Amadeu Amaral e de Mário de Andrade, “cabendo a CNFL progredir com as ações pensadas pelos ‘pioneiros’, tanto é que Mario de Andrade propunha ser necessária a reunião dos folcloristas para debaterem os rumos da cientificidade da pesquisa folclórica, rumos da pesquisa, bem como os métodos de trabalho”.8

Sintetizando em poucas palavras, a ação dos folcloristas em torno desse movimento folclórico se resumiu na mobilização da opinião pública em torno dos temas da identidade nacional e da cultura popular, de modo que fossem incluídas nas gestões políticas, apelos e grandes manifestações coletivas em congressos e festivais folclóricos.

Se tomarmos a temporalidade proposta por Vilhena, iniciada em 1947, com a criação da CNFL até o golpe civil-militar de 1964, quando da derrubada de Edson Carneiro da direção da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, e desse modo, levando a um declínio do movimento folclórico, digamos da sua fase áurea, correríamos o risco de negligenciar as atividades desta logo após esse período. No entanto, a pauta folclórica continua no período da ditadura civil-militar, momento em que toda a estrutura nacional criada em torno do debate folclórico fica refém da queda de seu principal agente, como situou Vilhena.9

Sendo assim, lembremos que a Comissão Nacional de Folclore localizada no Rio de Janeiro articulou uma imensa rede de comissões constituídas em vários estados brasileiros. O próprio Vilhena coloca que essa rede “só foi possível porque nesses estados havia condições favoráveis que influenciaram particularmente uma dinâmica global do folclore no Brasil”.10

Deste modo, este capítulo se propõe a situar a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro no contexto pós-golpe, cujo estudo é fundamental para se compreender o seu

7 O grupo constituído por Renato Almeida como presidente, Manuel Diégues Júnior, Édison Carneiro, Joaquim

Ribeiro e José Simeão Leal, sugeriram a formação da Campanha, como parte das atividades do Ministério da Educação e Cultura. No ano seguinte, em 22 de agosto de 1958 foi instalada. Cf.: VILHENA. op. cit., 1997, p. 94.

8 Idem.

9 Junto com Edson Carneiro, outros funcionários da CDFB foram afastados, como exemplo citemos Bráulio

Nascimento, no entanto este voltará como diretor-executivo da Campanha a partir da década de 1970. Cf: VILHENA. op. cit., 1997, nota 29, p.115.

conjunto. É evidente que um único trabalho não daria conta de analisar todo esse percurso do folclore na história brasileira, mas o que constatamos nesta investigação é o fato de Vilhena ter se eximido dessa tarefa, em razão da documentação com a qual ele trabalhou, que acabou por beneficiar mais a “rede” como um todo do que os “fios” de que era composta. A própria prática do folclore que não se institucionalizou nas Universidades,11 percorreu os institutos culturais, museus, órgãos do governo federal e estadual, cabendo assim um estudo dessas ações.

O presente capítulo tenta assim, inicialmente, direcionar algumas dessas atividades que marcaram a Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, no período pós-golpe militar, nas suas programações editoriais que envolveram principalmente os seus correspondentes estaduais. Assim, elencamos para análise o projeto editorial das Séries Folclore Brasileiro, em seguida tomamos o empreendimento do Atlas Folclórico do Brasil, que também viria contar com a participação dos Secretários-gerais das Comissões estaduais, como propostas que buscavam dar sentido nacional a um folclore eminentemente brasileiro, ou seja, que configuraria a nação a partir de suas particularidades, representada pelo conjunto de seus estados.

É interessante demarcarmos esse rápido processo de construção histórica da instituição CDFB, pois nos será válido para situarmos como se pretendeu institucionalizar o folclore no Brasil, estabelecendo uma conexão com o nosso principal objeto da investigação, o intelectual e professor Noé Mendes de Oliveira. Ele foi secretário-geral da Comissão Piauiense de Folclore, responsável pelo empreendimento que introduziu o Piauí no conjunto folclórico nacional, através da obra Folclore Brasileiro: Piauí12, lançada pela Campanha em 1977, projeto editorial que o consagrou como folclorista, reconhecido e referenciado em seu estado. Para isso situamos Noé Mendes como folclorista ligado a uma rede nacional de folclore.