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O povoado de Nazaré do Bruno (Caxias – Maranhão) e seu sincretismo religioso

CAPÍTULO 03 A PIAUIENSIDADE ESCRITA: Cultura popular, ecologia e etnografia em

3.3 Reflexões etnográficas Noé Mendes de Oliveira

3.3.2 O povoado de Nazaré do Bruno (Caxias – Maranhão) e seu sincretismo religioso

Ainda nessa temática do sagrado, Noé Mendes tratou da “cidade santa” de Nazaré do Bruno, uma comunidade rural localizada no município de Caxias (Maranhão), a 48 km da cidade de Teresina. O folclorista apresenta as características do lugar, situando-a no espaço que descreve como santo:

O lugarejo tem aproximadamente 600 casas, a maioria das quais é de palha e de taipa, alinhadas umas nas outras e formando uma longa rua irregular. No centro, onde a rua se torna mais larga, está a interessante igreja de Nossa Senhora de Nazaré, com seu grande átrio de alvenaria e o gradil de madeira circundante. Dentro, os altares se sucedem numa profusão de imagens de santos católicos, de Iemanjá, do “Padim Ciço” e de outros representantes do sincretismo religioso. Nas paredes, cenas pintadas representando fatos da Bíblia, anjos e um grande “paneau”[sic.] com N. Senhora de Nazaré. Tendo isso está expresso na mais autentica arte popular dita “primitiva”.117

Segundo Mendes, a origem da cidade deu-se a partir de uma perseguição policial ao piauiense Bruno José dos Santos, em 1923, quando ele fugiu atravessando o rio Parnaíba e se estabeleceu na localidade próximo a cidade de Caxias (MA):

Era um homem carismático, que curava os doentes e fazia estranhas liturgias nas caladas da noite. O lugar era seco e ficava longe do rio. Ele com seus poderes miraculosos fez surgir o olho d´água que fertilizou depois as terras. Em torno de si surgiram alguns barracões de palha para abrigar o insuficiente fluxo de pessoas que viam atraídas pela sua fama de santo curandeiro. 118

A maioria da população de Nazaré é composta de pessoas que chegaram doentes de corpo e de alma e foram atraídas pelo elemento curador de “Padim Bruno”, como é tratado pelos habitantes do lugar. Grande parte dos doentes que iam à cidade apresentavam problemas de ordem psíquica. Como alguns tratavam esses problemas tidos como originários de maus espíritos, demônios ou entidades sobrenaturais, foi grande a circulação neste espaço, de pessoas interessadas em se curar. Noé Mendes em sua última visita à Nazaré do Bruno relatou o movimento na cidade com a chegada de romeiros:

Inúmeros carros de fora chegam com romeiros de lugares distantes. Em Nazaré mesmo, ninguém possui veículos automotores. Na última vez que lá estivemos, haviam chegado duas camionetas Kombi, procedentes de

117 OLIVEIRA, Noé Mendes de. A Cidade Santa de Nazaré do Bruno. Teresina: [s.n.], [198?], p. 01 118 OLIVEIRA, Noé Mendes de. op. cit. [198?], p. 02.

Brasília, dois automóveis de Teresina, um de Imperatriz (MA), um de Crateús (CE) e outro de Petrolina (PE).119

Podemos perceber o elemento de atração na cidade de Nazaré do Bruno na pessoa de Padim Bruno e seu poder de cura. Uma população sem atendimento adequado de saúde, sem melhores condições de vida procurava em Nazaré o que o Estado com seu dever, não proporcionava, seus direitos. Esta se apegava a inúmeras saídas para se manter viva, mesmo que através da fé, às vezes a única esperança para aliviar os agouros da vida.

Foto 11. Cidade de Caxias – Maranhão. Fonte: IBGE

Na cidade existem grandes festas religiosas que reúnem multidões. Noé Mendes aponta-nos algumas como as festas dedicadas à Nossa Senhora de Nazaré, no dia 15 de setembro, a de Santa Barbara, no dia 4 de dezembro, a de Santo Antônio e São Pedro nos dias 12 e 19 de junho respectivamente. Cada festa se caracteriza pela devoção manifestada a partir dos rituais e da forma como é celebrada:

Essas festas têm toda a estrutura tradicional: novenário com a reza do terço e das ladainhas, com leilões do santo, terminando com a procissão. Em Nazaré existe outro ingrediente: depois do leilão todos vão baiar no salão, ao som de três grandes atabaques, triângulo e “pontos” (hinos). A festa de São Pedro tem uma particularidade. No dia do santo, o povo se concentra logo cedo, no grande pomar do Olho d´água dos Milagres para fazer o jejum e as orações coletivas. Homens e mulheres, nos seus respectivos compartimentos fazem as oblações rituais, para significar que estão se purificando de todos os pecados. Ao meio dia, todos se sentam em esteiros ou sobre folhagens, debaixo das mangueiras. As mães-de-santo servem a comida sagrada em folhas de sambaíba. A comida é feita lá mesma no local e consiste em arroz branco, batata doce e abobora. Depois desse almoço reza-se a ladainha e todos podem se dispersar.120

119 Idem., p.07.

Podemos observar que é na festa que se exprime o elemento que ajuda os homens a suportar o trabalho, o perigo e a exploração, mas reafirma igualmente os laços de solidariedade ou permite aos indivíduos marcar suas especificidades e diferenças, encontradas na cidade Santa de Nazaré do Bruno como elementos desse mundo.

3.3.3 O artesanato como alternativa à miséria em Teresina (Piauí)

A cidade de Teresina possui uma particularidade dentre as demais capitais nordestinas. Localizada a 366 km do litoral, é a única, portanto que não se encontra às margens do Oceano Atlântico. Tal fato se deve pela ocupação colonial ocorrida de maneira intestina, partindo do estado de Pernambuco na expansão das fazendas de gado no século XVII.

Durante os anos de 1960, 1970 e, de maneira pouco acentuada, nos anos de 1980, Teresina foi palco de um grande movimento migratório resultado do processo de modernização agenciado a partir da segunda metade do século XX no Brasil, que movimentou grande parte da população brasileira das áreas rurais para a zona urbana. Tal fato ocasionou inúmeros problemas socioculturais em diversas capitais do país.

Foto 12. Teresina – Piauí. Fonte: IBGE

A leva migratória das décadas de 1960 e 1970 em Teresina originou-se não apenas do interior do Piauí, mas também dos estados vizinhos do Maranhão e Ceará. Um movimento, sobretudo campo – cidade, ocasionando um processo de urbanização conduzido pelo o Estado

de maneira mal planejado. Os dados abaixo demonstram o crescimento da população urbana no estado nessas décadas:

População de Teresina

Ano Pop. Urb. % Pop. Rur. % Total 1970 181.062 82,12 39.425 17,88 220.487 1980 339.042 89,74 38.732 10,26 377.774 1991 556.911 92,93 42.361 7,07 599.272

Fonte: Censos Demográficos. IBGE, 1970, 1980, 1991.

Esses migrantes, abandonaram o campo e suas práticas e tradições rurais, e passaram a integrar o conjunto de pobres urbanos na cidade de Teresina. Observando as formas de vida e representação destes pobres urbanos em Teresina, no período destacado, Antônia Jesuíta afirmava que “o rápido empobrecimento da cidade, com o aumento das favelas e o consequente aprofundamento dos problemas sociais, impôs novos traços e questionamentos sobre o modo de vida urbano”.121

De tal modo que algumas medidas de planejamento foram pensadas e projetadas em comum acordo com as políticas nacionais de desenvolvimento. Neste sentido, alguns intelectuais propuseram medidas de caráter emergencial que poderiam ser adotadas para o combate à miséria da população, entre eles, Noé Mendes. Como anteriormente mencionamos, no início da década de 1980, este autor sugeriu que o artesanato era a alternativa contra a miséria do homem comum. Retomamos esse tema para abordarmos uma questão específica: a associação dessa questão com a migração campo-cidade, a observação sobre os homens que chegavam a Teresina naquele final das décadas de 1970 e início de 1980.

Teresina por não figurar no circuito das capitais que receberam investimentos na indústria, encontrou historicamente no setor terciário o principal campo de expansão de sua economia. Deste modo, o folclorista considerou que a venda de artesanato poderia ser uma prática rentável para muitos dos pobres urbanos da cidade, uma medida de combate à pobreza extrema. Noé considerava essa alternativa não apenas pelo simples fato de muitos destes fazerem parte de uma população vinda das zonas rurais do estado, mas, especialmente, porque em suas condições sociais eles haviam desenvolvido a habilidade de elaborar peças e produtos do seu cotidiano que poderiam se tornar objetos artesanais comercializáveis: o pilão de madeira para “socar” o arroz, o milho, os copos de alumínio derivados de materiais

121 LIMA, Antônia Jesuíta de. As multifaces da pobreza: formas de vida e representações simbólicas dos pobres

subutilizados na lavoura, cestos de fibra de carnaúba e babaçu encontrados em abundância pelo Piauí, jarros e potes de argila muito comuns nas periferias alagadiças da zona norte de Teresina. Quanto as suas características desse trabalho, Noé Mendes apontou diversas vezes que ele deveria organizar-se como um o trabalho manual, doméstico e quase sempre individual. Para ele, a atividade artesanal correspondia ao estilo de vida do próprio artesão:

O trabalho artesanal é uma elaboração consciente, sem requinte, feito segundo os padrões tradicionais e não em moldes ou formas em série, cada peça é reveladora de qualidades pessoais. Quanto a sua classificação [...] o artesanato pode ser de couro, de madeira, de fibras, de barro, conforme o material empregado na criação plástica, se ele provém da cidade ou do campo, pode ser classificado como urbano ou rural; se situado em relação ao tempo de fabricação, pode ser pré-histórico, antigo ou moderno. A sua procedência cultural faz com que ele seja folclórico, erudito ou indígena. Sob o ângulo de sua destinação, o artesanato pode ser classificado como utilitário decorativo ou ornamental, religioso, lúdico, dramático, artístico, técnico, didático, técnico ou terapêutico.122

Analisando a repercussão socioeconômica da atividade artesanal, Mendes apontou o artesanato como uma fonte de complementação da renda familiar. Localizando o Nordeste como um espaço onde a pobreza atingia níveis extremos, para ele o artesanato era uma alternativa “original e sensata”, marcando o Piauí como um lugar onde o artesanato “surg[ia]e como uma alternativa altamente viável”. Concentrada em famílias, o artesanato como regime familiar de trabalho, contava com a participação de diversos membros da família e, segundo ele, isso acabava por constituir um núcleo de aprendizagem profissional.123

Noé defendia que a atividade artesanal expandia os aspectos culturais, fazendo com que fosse mantida uma tradição, uns modos, as ações do artesão, sua expressão e sensibilidade. Para Mendes, essa tradição ajudaria a manter vivos os valores culturais de uma determinada região, ou seja, “traços de uma cultura espontânea, nascida e desenvolvida no seio do povo”. Essa concepção do autor partia da análise que observava o homem como um ser criativo dotado de vivências e experiências expostas em sua arte:

Enquanto esse mesmo povo usa a atividade artesanal como veículo de uma comunicação cultural, onde se incluem valores estéticos, [há] uma nítida afirmação de uma nacionalidade, de uma consciência regionalista. O artesanato quer consciente ou inconsciente, deixa impresso nas peças que produz traços de sua cultura. Tradições, crenças e toda uma simbologia ficam marcadas em cada peça e é justamente nesta transposição que se encontra o valor sempre procurado na peça artesanal: a marca da cultura tradicional ou popular.124

122 OLIVEIRA, Noé Mendes de. O que é arte popular. Presença, Teresina, ano 04, n. 7, mar./jun. 1983, p.50. 123 OLIVEIRA, Noé Mendes de. op. cit., 1983, p.50.

Nos elementos caracterizadores do espaço que apontam para a regionalização do homem, e nesse caso o nordestino, Mendes acabou por ressaltar a configuração da formação de identidades revelada pelo artesão, deste modo culturas que vão sendo recriadas, inserindo o Piauí numa caracterização tradicional do Nordeste.

A riqueza natural que o Piauí possuía nessa época favorecia a uma exploração significativa para o artesanato, pois havia abundância de matérias como o cipó, as fibras naturais, a argila e outros tantos elementos constituidores do artesanato piauiense, como apontado em sua obra Folclore Brasileiro: Piauí. Assim Mendes concluía que:

O artesanato surge, por conseguinte, como esta alternativa bastante promissora de elevação da renda de grande número de pessoas, de evitar o êxodo rural, de evitar o grande contingente de mão-de-obra ociosa, enfim, de livrar o povo piauiense de um maior aprofundamento no processo de marginalização socioeconômica. É uma saída viável para sair do círculo vicioso da miséria”.125

Para o folclorista o artesanato, a arte do “homem popular”, derivava da concepção do universo artístico da cultura material desse sujeito, ao transmitir significados e sentidos da gente nordestina. Para Mendes, a técnica do artista popular em sua “essência” apresentava uma dimensão verdadeira da sua vocação. A vida do homem comum - o romeiro em suas romarias e o artesão na urbanidade -, revela marcas de um conjunto, uma composição e um funcionamento constituinte de sua própria história. Como sugeriu Henri Lefebvre, “a cidade depende também e não menos essencialmente das relações imediatas, (...) diretas. Entre as pessoas e grupos que compõem a sociedade”.126 A cidade como um centro de vida social e política se configurava, para Noé Mendes, não apenas nas riquezas, mas também em conhecimentos produzidos pelo homem, suas crenças religiosas, suas técnicas e suas obras.

125 Idem.

CAPÍTULO 04 EM BUSCA DA DEMOCRATIZAÇÃO DA