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1. Religião: Entre o Sagrado e o Profano

1.1 A Institucionalização Religiosa

Segundo Berger e Luckmann (2012) os processos de institucionalização são fundamentais para a manutenção e a transmissão de uma ordem social. Eles dizem respeito à consolidação das várias esferas da vida social, sendo a religião uma delas, e à legitimação, relacionada ao plano simbólico, tendo por função criar e manter

importante que serve para escorar o oscilante edifício da ordem social. É o processo

de legitimação”16 (BERGER, 1985, p.42).

As instituições existem para evitar o caos, visto que “o organismo humano não possui os meios biológicos necessários para dar estabilidade à conduta humana” (BERGER E LUCKMANN, 2012, p. 73) assim, somos conduzidos à emergência, manutenção e transmissão de uma ordem social que resulta na institucionalização. Os autores identificam um caráter controlador inerente à institucionalização, um sistema de controle social. “Dizer que um segmento da atividade humana foi institucionalizado já é dizer que este segmento foi submetido ao controle social” (p. 78).

As instituições, também, pelo simples fato de existirem, controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam teoricamente possíveis (BERGER e LUCKMANN, 2012, p. 77).

A instituição provém do hábito dos indivíduos ocorrendo “sempre que há uma tipificação recíproca das ações habituais por todos os atores” (BERGER e LUCKMANN, 2012, p. 79) e além do controle, implicam também a historicidade, ou seja, o fato de que as instituições são resultantes de certo processo histórico, não são entidades existentes desde sempre, como veremos no caso das instituições religiosas, que foram surgindo no decorrer da história.

No cristianismo vemos ascender a igreja primitiva, ainda não institucionalizada, com seu caráter livre de experimentação do sagrado, como pode-se ver narrado na Bíblia no livro Atos dos apóstolos no capítulo 2. Ali os seguidores de Cristo estavam reunidos no dia de Pentecostes e veio do céu um vento forte e línguas de fogo pousaram sobre cada um deles lhes permitindo falar em outras línguas pelo poder do Espírito Santo. Percebe-se nessa narrativa, como uma experiência de hierofania, uma experiência com o sagrado experimentada por cada um ali reunido. E, ali mesmo juntou-se uma multidão que os observava já buscando significado para tudo aquilo. Nascia a igreja cristã, e com ela a ritualização das hierofanias. Não se vê mais falar de outra manifestação como a de Pentecostes nos registros do Novo Testamento,

16 Por legitimação se entende o “saber” socialmente objetivado que serve para explicar e justificar a

ordem social. Em outras palavras, as legitimações são as respostas a quaisquer perguntas sobre o “porquê” dos dispositivos institucionais (BERGER, 1985, p. 42).

mas em torno dele fixaram-se ritos e doutrinas que pode-se aprender visitando uma igreja pentecostal17, por exemplo.

A religião como instituição traz uma estrutura racional para a compreensão da experiência religiosa, o que não é negativo, visto que torna mais simples apreendê- la. O próprio Jesus falava por parábolas, com exemplos fáceis de se apreender, a fim de que toda a multidão pudesse compreender a mensagem pregada. Ao que parece, foi a partir de Jesus Cristo, com suas formas particulares de mostrar o sagrado de uma maneira mais palpável, fácil de ser apreendida, que a igreja cristã começou a ser instituída. Assim, o problema não está em tornar o sagrado mais compreensível, mas em usar sua potência para o controle, em torná-lo apenas um mecanismo para alcançar mais poder.

Não nos interessa aqui criticar nenhuma instituição religiosa, pelo contrário, como já dissemos, sua existência nos parece necessária para fazer essa ponte entre

numinoso e homens, entretanto, ao que parece, existem formas de se instituir o

sagrado que acabam por dominá-lo ao ponto de ser quase impossível percebê-lo. Bastide (2006) fala tanto de uma “administração” positiva do sagrado pela igreja, quanto de um poder explosivo, perigoso para a ordem social, que castra a personalidade sagrada diante dos homens.

O sociólogo Joachim Wach, na visão de Martelli, traz a religião como a “experiência social do sagrado” (WACH apud MARTELLI, 1995, p. 171) dividindo em três níveis a experiência religiosa: a primária; daquele que percebe a presença do sagrado e se converte; a secundária, que se dá através dos rituais, símbolos, revivendo as experiências primárias próprias ou dos outros; e a terciária, voltada para o hábito, que muitas vezes se reduz às práticas religiosas fixadas pela tradição, ritos. Compreende- se que apenas a experiência primária pode acontecer diretamente entre o sujeito e o sagrado, as demais já seriam formas institucionalizadas da religião. “Dos simples atos

17 O Movimento Pentecostal surgiu como uma ramificação do Protestantismo Histórico. Suas origens

remontam Igrejas Cristãs não católicas que na virada do século XIX para o XX, principalmente em terras norte-americanas, começaram a adotar distintas práticas religiosas (CAMPOS, 2005); dentre tais práticas, um dos pontos de sustentação para o emergente movimento cristão era o “Batismo com o Espírito Santo” evidenciado pelo falar em outras línguas – glossolalia (fenômeno exercitado pelos pentecostais, que consiste na emissão de sons, indiscerníveis, através de um estado de êxtase religioso) in PEREIRA, Clevisson Junior e GIL FILHO, Sylvio Fausto. GEOGRAFIA DA RELIGIÃO, ESPAÇO SAGRADO E PENTECOSTALISMO: ANÁLISE DE UMA ESPACIALIDADE PENTECOSTAL. RELEGENS THRÉSKEIA estudos e pesquisa em religião V. 01 – n. 02 – 2012. Disponível em < ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/relegens/article/download/31085/19961> Acesso em 07-01-2016.

e ritos em honra aos deuses nas religiões primitivas passa-se aos complicados e elaborados modelos rituais que caracterizam o judaísmo [...], o catolicismo romano, a ortodoxia” (MARTELLI, 1995, p.180).

Distinguir a experiência real com o sagrado da experiência mediada pela religião não é tarefa fácil e talvez nem o seja necessária. Usar de meios religiosos para se aproximar do sobrenatural não parece ser inválido, pelo contrário, é principalmente nas igrejas que os indivíduos conseguem reservar um tempo para adoração e busca do transcendente, o problema está quando a religião deixa o sagrado para segundo plano, e este, de tão dominado, já não é mais reconhecido como tal.

No decorrer da história vê-se a instituição eclesial amplificando cada vez mais sua influência nas sociedades. Muitas vezes a experiência religiosa se reduz aos formalismos dos ritos e à burocracia na organização eclesial. As doutrinas são racionalizadas e a ética cristã ganha força se mostrando como um valor permanente na sociedade. Para Berger a religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo de legitimação. É aí que detecta-se, digamos, o lado “negativo” da religião. Ao assumir o papel de representante do sagrado para os homens, a instituição religiosa alcança um poder que acabou por conceder-lhe autoridade máxima sobre toda a vida social durante grande parte da história. Discutiremos melhor no próximo capítulo a respeito do poder que a igreja alcança, poder este, por vezes, maior que o dos reis e imperadores.

A religião legitima de modo tão eficaz porque relaciona com a realidade suprema as precárias construções da realidade erguidas pelas sociedades empíricas. As tênues realidades do mundo social se fundam no sagrado

realissimum, que por definição está além das contingências dos sentidos

humanos e da atividade humana. (BERGER, 1985, p. 45)

Sobre a relação da religião com a sociedade, Durkheim faz uma reflexão da religião como matriz dos laços sociais da sociedade, sendo sua fonte de moral, o que por outro lado esgotaria a realidade do sagrado. Para ele o sentimento religioso nasce do sentimento de dependência que a sociedade, como potência coletiva e autoridade moral, inspira em seus próprios membros. Esse sentimento é projetado em momentos de efervescência coletiva e objetivado em objetos e símbolos que serão então

considerados sagrados (DURKHEIM, 2000). Para Durkheim a sociedade é uma realidade transcendente, reconhecendo no sagrado a si própria em forma simbólica (MARTELLI, 1995).

O sentimento do sagrado torna-se o fato religioso fundamental, que o culto procura suscitar: a experiência de uma força externa, da qual o crente sente- se dependente, na realidade para Durkheim é a experiência das forças coletivas, é a própria experiência da sociedade como autoridade moral (MARTELLI, 1995, p. 68).

A teoria funcionalista de Durkheim (2000) sobre as instituições religiosas vai de encontro ao controle institucional trazido por Berger e Luckmann, onde a religião teria um papel de coesão social favorecendo o autocontrole dos indivíduos. “Toda religião é social cumprindo simultaneamente questões cósmicas e morais” (DURKHEIM, 2000, p. 192) e reflete o convívio coletivo em instituições denominadas “igreja”. “Historicamente, os papéis que representam simbolicamente a ordem institucional total estiveram na maioria das vezes localizados em instituições políticas e religiosas” (BERGER e LUCKMANN, 2012, p. 103).

Sem negar seu lado metafísico, percebe-se assim, que há também um conceito social da religião. No pensamento de Weber (2004), a ação da religião se daria muito mais no mundo objetivo que no metafísico, daí sua atribuição à formação ético-religiosa como parte das justificativas para a ação do capitalismo em diversas sociedades. Essa questão discutida por ele em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, embora possa remeter a uma visão demasiado secularizada da ação religiosa nos países capitalistas, também funciona como uma reflexão dessa aproximação entre religião e sociedade, permitindo a compreensão de como as ideias religiosas cristãs podem influenciar culturas, moldar comportamentos.

Evidencia-se com sua institucionalização, que a religião não se limita apenas a uma gestão do sagrado como também se encarrega de funções dentro do sistema social. “A religião legitima as instituições infundindo-lhes um status ontológico de validade suprema, isto é, situando-as num quadro de referência sagrado e cósmico (BERGER, 1985, p. 46). Portadora de sistemas culturais, passa a atuar não apenas no espaço sagrado mas nas fronteiras que se expressam na dicotomia sagrado/profano de forma a mediar a ordem social. Para isso, cerca-se de todo um sistema de plausibilidade a fim de que toda a sua realidade “apareça como óbvia e

em que sucessivas gerações de indivíduos sejam socializados de tal modo que o mundo será real para eles” (BERGER, 1985, p. 60), assim a realidade religiosa será mantida tanto no nível objetivo quanto no subjetivo, “tudo aqui embaixo tem seu análogo lá em cima” (p.46).

Impossível, dessa forma, não nos atentarmos para todo o poder /que a religião conseguiu exercer por meio da legitimidade alcançada no campo religioso ao longo da história. Ao se colocar como verdade evidente, a religião conseguiu ser a resposta para qualquer “porquê” que surgisse, o que estudaremos com mais detalhes logo a frente. Nesse momento nos interessa vislumbrar o espaço da religião, suas representações em face do discurso religioso empoderando territorialidades institucionais que são marcadas, muito além da materialidade dos templos, pelos

sistemas simbólicos que se organizam na mediação das relações de poder18.