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Reflexões sobre religião e modernidade

3. Reencantamento na Jaula de Aço

3.1 Reflexões sobre religião e modernidade

Um dos assuntos que tiveram grande espaço entre as reflexões do filósofo alemão Max Weber foi acerca do desencantamento do mundo (2004) trazido, segundo ele, tanto pela ciência quanto pela própria religião. O termo desencantamento em alemão,

de acordo com Pierucci33(2003), se refere a Entzauberung, tendo como significado a

desmagificação, o fim da magia, do mistério que se dá pela via da própria religião.

Weber traz a questão da religião que perde a magia em consequência de suas ações, de práticas que tem muito mais a ver com os interesses institucionais da igreja que com o sagrado. Assim, a religião vai deixando para segundo plano tudo o que se refere ao sobrenatural a fim de fazer funcionar seu sistema de ações, que como vimos nos capítulos anteriores, se voltam muitas vezes às relações de poder, às ações disciplinantes relacionadas às doutrinas, dogmas, liturgias e burocracias que a colocam como detentora exclusiva do saber religioso. Weber vê o desencantamento como “a eliminação da magia como meio de salvação” (WEBER, 2004, p. 106), o que nada mais é que a racionalização do campo religioso.

Mas, para Weber, a ciência também terá um papel importante no desencantamento do mundo. O filósofo usará em sua obra a palavra desencantamento também como ‘perda de sentido’ “... um mundo sem deuses.” (WEBER, 1982a, p. 325), mundo racionalizado, em que não mais a religião mas a ciência explica os porquês do universo. O abandono do “jardim encantado” (WEBER, 1982) pela via científica. O processo de intelectualização buscou desfazer a imagem de um Deus transcendente apresentando um mundo em que o que importa é o conhecimento científico. Para a ciência não há mistério, apenas a razão científica. Nesse momento há a perda de sentido do discurso religioso e uma substituição da religião pela razão, que tudo poderia explicar.

Soma-se ao desencantamento o conceito de secularização num significado mais jurídico-político na obra de Weber (2004): o de uma sociedade secularizada em que há “... o declínio do poder hierocrático” (p. 379). Nesse sentido a religião perde seu

33 PIERUCCI, A. F. O Desencantamento do mundo: Todos os passos do conceito em Max Weber.

status de reguladora social culminando na separação entre Estado e Igreja. As concepções religiosas já não são mais consultadas para a tomada de decisões conforme afirma Berger (1985):

Por secularização entendemos o processo pelo qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo. Quando falamos em cultura e símbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularização é mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular, do mundo. (BERGER, 1985, p. 119)

O que vemos acontecer a partir do projeto moderno, dominado pela racionalidade e impulsionado pelo capitalismo e o pensamento iluminista, é a fragmentação do mundo religioso. A religião perde assim a hegemonia que exercia como centro de sentido na ordenação da vida em sociedade tornando-se uma escolha subjetiva. Nesse momento, os conteúdos religiosos são desobjetivados, não mais para algumas dúzias de intelectuais, mas para uma grande parcela da sociedade. Assim “sua ‘realidade’ torna-se um assunto ‘privado’ dos indivíduos, isto é, perde a qualidade de

plausibilidade intersubjetiva por si mesma” (BERGER, 1985, p. 162). Há uma

relativização dos assuntos religiosos perante os indivíduos, a quem até então a religião era colocada como fonte suprema do conhecimento e da obediência.

Parece-nos assim, que a religião ao se tornar uma escolha subjetiva, permite que o homem vá buscar as respostas dentro de si e não mais apenas no discurso religioso. A busca torna-se individual e não mais uma liturgia, questão essa fundamental ao adentrarmos no debate a respeito da autoridade religiosa. Dessa forma, a secularização traz consigo uma “crise de credibilidade” (BERGER, 1985, p.161) das instituições religiosas.

À semelhança de Weber, Peter Berger reflete sobre como a própria institucionalização da religião cristã contribuiu para o processo de secularização, ao se colocar como instituição suprema e em contraposição a todas as outras instituições da sociedade. Assim, a igreja concentrou todos os símbolos religiosos em si, o lado santo,

separando-se do restante do mundo que ipso facto se definiu como o lado profano. Essa situação perdurou por séculos, enquanto essa separação e equilíbrio entre o santo e o profano conseguiu se manter como realidade social. “(...) com a desintegração dessa realidade, porém, ‘o mundo’ pode rapidamente ser secularizado; e isso pelo fato de que ele já tinha sido definido como um reino fora da jurisdição do sagrado propriamente dito” (BERGER, 1985, p. 136).

Consequentemente, a racionalidade mostra-se como matriz da secularização, sendo que, não só a ciência, como a própria instituição religiosa ao se racionalizar contribuiu para esse processo. Restringe-se a religião a uma função específica. Já não existe o monopólio religioso de outrora, que passa agora a “competir” com as demais instituições por legitimidade.

Mas, embora tenha havido um enfraquecimento das instituições religiosas, elas não desaparecem, pelo contrário, continuam na disputa pelo poder e sua legitimação. Essa situação de perda de poder não se torna tão evidente em países como o Brasil onde a religião sempre teve um forte papel na sociedade. Outras nações no entanto, como a Suécia, sentiram a secularização de forma mais clara com uma grande parcela de indivíduos sem religião (63% se declaram cristãos à sua maneira, sem

frequentar uma igreja)34. Para Negrão:

(...) o Brasil é, de fato, secularizado: existe a separação entre Igreja e Estado, a administração realiza-se a partir de códigos legais e órgãos executivos seculares, sem nenhuma influência decisiva por parte de grupos religiosos. A ciência, a tecnologia e o cálculo racional presidem às atividades produtivas. [...] A sociedade brasileira, com sua religiosidade que permanece em parte encantada pois que renitentemente mágica, é um caso particular da realidade em que a generalidade típico-ideal do método weberiano não é capaz de abarcar plenamente. (NEGRÃO, 2005, p. 35)

Essa questão nos permite compreender o que vimos até agora com relação ao fortalecimento da busca pelo sagrado mesmo diante de uma crise das instituições religiosas. A secularização parece ter enfraquecido a igreja, e por um tempo a noção de sagrado, já que os indivíduos, acostumados à mediação via instituição, se viram perdidos sem saber seu lugar frente ao transcendente, mas a história mostra que a

busca pelo sagrado se manteve e cresceu como vemos acontecer nos dias de hoje tanto dentro das igrejas como fora delas35.

No Brasil o número dos sem-religião tem crescido consideravelmente nos últimos 30 anos, passando de 3% para 9%, assim como cresce a corrida das igrejas para recuperar seus membros. Esses números nos fazem refletir sobre como o desencantamento tem muito mais a ver com a perda de credibilidade da instituição do que com uma diminuição da busca pelo sagrado. “[...] a pretensão que a religião tem de reger a sociedade inteira e governar toda a vida de cada indivíduo foi-se tornando ilegítima, mesmo aos olhos dos crentes mas convictos e fiéis” (HERVIEU- LÉGER, 2015, p. 34).

Ao que parece no entanto, as instituições não aceitaram se restringir a uma função específica e o que vemos é muito mais uma religião na corrida para se manter no poder e tentando desempenhar diversos papéis na sociedade em busca de reverter a secularização que abala sua autoridade. Veremos ainda nesse capítulo como as instituições religiosas passam a se envolver em campos como o da política no que parece ser uma forma de manter relações de poder e autoridade no mundo social. Dessa forma contempla-se uma reorganização da instituição para torná-la “mais relevante” para o mundo moderno, “(...) mantendo ou renovando a instituição para servir como estrutura de plausibilidade viável para definições da realidade não confirmadas pela sociedade” (BERGER, 1985, p. 166). Uma situação que tem causado uma drástica reorganização da paisagem religiosa contemporânea.

Esse processo deixa marcas quer nas relações sociais externas, quer nas internas. Com relação a estas, as instituições religiosas são administradas burocraticamente e suas operações cotidianas são dominadas pelos problemas típicos e pela “lógica” da burocracia. Externamente, as instituições religiosas relacionam-se com outras instituições sociais, umas com as outras,

35 “O contingente de evangélicos de todas as confissões, quer os de missão, quer os pentecostais,

passou de 6,6% em 1980 para 22,1% em 2010, registrando um aumento de 15,5 pontos percentuais. Do mesmo modo, o número de pessoas que se declaram sem religião também vem apresentando crescimento, ao passar de 1,6% em 1980 para 8% no último Censo, o que significa um aumento de 6,4 pontos percentuais. [...] Vale lembrar que o número de pessoas sem religião resulta da soma de três subcategorias do Censo, que em 2010 totalizavam: agnóstico (124 mil), ateu (615 mil) e sem religião (14,6 milhões). Pode-se pensar, então, que o fato de um indivíduo se declarar sem religião não significa, necessariamente, que ele seja ateu ou agnóstico. Assim, uma fração importante das pessoas que se dizem sem religião pode acreditar em Deus, sem participar, no entanto, das instituições religiosas e sem se sentir pertencendo a uma comunidade confessional. Nesse sentido, a declaração sem religião parece menos uma afirmação de crença, mas, sobretudo, um estado de desfiliação religiosa”. (JACOB, César Romero, HEES, Dora Rodrigues, WANIEZ, Philippe. Religião e Território no Brasil: 1991/2010. Rio de Janeiro: Ed, PUC Rio, 2013)

por meio das formas típicas da interação burocrática. “Relações públicas” com a clientela consumidora, “lobbying” com o governo, “levantamento de fundos” em agências privadas e governamentais, envolvimento multifacetado com a economia secular (particularmente por meio do investimento) – em todos esses aspectos de sua “missão” as instituições religiosas são compelidas a buscar “resultados” por métodos que são necessariamente, muito semelhantes aos empregados por outras estruturas burocráticas com problemas similares (BERGER,1985,p.151-152).

De monopólios, as instituições se transformam em agências de mercado (BERGER, 1985) e seus líderes tendem cada vez mais a se adaptar a um papel muito mais burocrático que religioso, aderindo à racionalidade moderna.

A desmonopolização da religião teve como efeito a expansão do pluralismo religioso e consequentemente o crescimento da concorrência religiosa. Nesse ponto podemos identificar mais uma vez uma busca pelo poder, pois nota-se que muito mais do que expandir a palavra de Deus, como afirma o discurso religioso, o uso de técnicas mercadológicas mostra-se menos uma questão evangelizadora, que uma questão de estar à frente da concorrência, no caso, das outras igrejas. Se fosse o contrário as

diferentes denominações seriam aliadas na busca por “levar o evangelho a toda

criatura”36, no entanto o que se percebe é uma acirrada concorrência entre as igrejas

na busca por novos membros.

Para Berger o pluralismo religioso contribuiu ainda mais para a secularização, pois multiplicou o número de estruturas de plausibilidade, relativizou os discursos religiosos concorrentes, fez dos conteúdos religiosos suscetíveis à moda, tornando- se cada vez mais difícil mantê-los como verdades imutáveis (BERGER, 1985).

Dessa forma, as verdades do discurso religioso foram sendo substituídas pelas verdades científicas e o que se viu foi a religião perder poder e influência nas esferas econômica, política, cultural etc. Mas, se há algo que nunca aconteceu foi o fim da religião. Por isso, ao mesmo tempo que se fala em desencantamento fala-se também em reencantamento. O que se vê é um fenômeno que muitos estudiosos da religião enxergam como uma relação dialética do retorno da religião em uma sociedade que não deixa de ser secularizada.

36 Esse é um mandamento para a igreja dito por Cristo em Marcos 16: “Ide por todo o mundo e pregai

o evangelho a toda a criatura.” Geralmente ele é usado como argumento das igrejas ao lançarem mão de táticas de mercado e mídia: expandir a propagação do evangelho.

Barbero (1995) é um dos autores que trará a expressão reencantamento do mundo em resposta ao desencantamento de Weber (2004). Segundo esse autor, o uso dos meios de comunicação pelas instituições religiosas foi uma forma de se trazer de volta o encantamento que a racionalidade tentou extinguir. “[...] os meios de comunicação também são reencantadores do mundo, pelos meios de comunicação há uma forma de devolver magia à experiência cotidiana das pessoas [...]” (p. 05, tradução nossa).

As igrejas têm utilizado os meios de comunicação como um “[...] elemento

fundamental do contato religioso, da celebração religiosa, da experiência religiosa” (BARBERO, 1995, p.4, tradução nossa).

Nesse contexto as instituições religiosas mostram sua adaptabilidade ao momento histórico atual, a mudança da sociedade disciplinar para a de controle como afirma Deleuze (2008). Surgem novas formas de dominação em que o poder e as institucionalidades passam pela mensagem comunicacional. Assim, antes de adentrarmos à questão do reencantamento cabe-nos entender o contexto histórico dessa “sociedade de controle ou de comunicação” (DELEUZE, 2008, p. 217).