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2. Ovelhas Submissas Religião e Poder Disciplinar

2.1 Acerca do Poder

2.1.2 O Poder Pastoral

Foucault vê o poder pastoral como uma espécie embrionária da biopolítica24. Esse dispositivo de poder começou a se desenvolver desde o século III e foi se aperfeiçoando por quinze séculos. Uma forma de poder que “o cristianismo teria adotado e imposto por bem ou por mal” (FOUCAULT, 2008, p.217). Sua matriz está na organização da Igreja Católica e embora tenha sofrido inúmeras transformações e se integrado a outras formas, nunca foi abolido, tendo como características a direção da consciência e a confissão.

Mas não foi assim desde seu princípio. Foucault (2008) aponta para um poder pastoral totalmente definido por seu “bem-fazer”, que só tem por função fazer o bem (p. 170), “tendo seu fundamento, sua perfeição no poder que Deus exerce sobre seu povo” (p.

24 O termo biopolítica vem da abordagem nietzschiana da guerra pelo domínio dos corpos

(NIETZSCHE, 2000), um poder pensado para gerir o próprio corpo social. Foucault vê a biopolítica como uma nova tecnologia do poder, designando a maneira pela qual o poder procurou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental, de forma a governar não somente os corpos por meio de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituídos em população: saúde, higiene, mortalidade, longevidade, raça, sexo, a partir do momento que se tornam preocupações políticas. É uma tecnologia massificante. (FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo, Martins Fontes, 2008)

168). Nesse sentido, seu objetivo essencial é a salvação do rebanho, é um poder de cuidado, “ele cuida dos indivíduos do rebanho, zela para que as ovelhas não sofram” (Foucault, 2008, p.170). Trata-se de uma forma de poder positivo que começa a mudar com a instituição da igreja:

[...] processo pelo qual uma religião, uma comunidade religiosa se constituiu como igreja, isto é, como uma instituição que aspira ao governo dos homens em sua vida cotidiana a pretexto de levá-los à vida eterna no outro mundo, e isso na escala não apenas de um grupo definido, não apenas de uma cidade ou de um Estado, mas de toda a humanidade. [...] Creio que se forma, assim, com essa institucionalização de uma religião como igreja, forma-se assim, e devo dizer que muito rapidamente, pelo menos em linhas mestras, um dispositivo de poder que não cessou de se desenvolver e de se aperfeiçoar durante quinze séculos [...]. Esse poder pastoral, totalmente ligado à organização de uma religião como igreja, a religião cristã como igreja cristã, esse poder pastoral por certo transformou-se consideravelmente nesses quinze anos de história. (FOUCAULT, 2008, p. 196,197)

O poder pastoral foi o ars artium, o “governo das almas” (FOUCAULT, 2008, p. 200). Ele inaugura a noção de que pessoas podem ser governadas, assim como se governam as coisas. Daí Foucault atribuir ao pastorado a ideia de governamentalidade, sendo a forma embrionária da biopolítica. Foi por ele e a partir dele que se instaura uma rede de poder institucional completamente diferente do que se conhecia até então. A igreja inaugura uma nova relação de poder pastoral, muito distinta da relação entre o Deus-pastor e seu povo. Até então o povo hebreu não tinha uma instituição pastoral propriamente dita. A relação de cuidado e salvação, como já abordada, se transforma com a institucionalização que tem suas leis, suas regras mudando completamente a partir de relações de poder.

Portanto o pastorado vai se tornar autônomo, vai se tornar globalizante e vai se tornar específico. De alto a baixo da igreja, as relações de autoridade são baseadas nos privilégios e, ao mesmo tempo, nas tarefas do pastor em relação ao seu rebanho (FOUCAULT, 2008, p. 201)

“O poder religioso é portanto o poder pastoral” (FOUCAULT, 2008, p. 203). Um poder que se encarregava da alma dos indivíduos, mas que com o decorrer da história participou de outras relações de poder. Como destacado no primeiro capítulo, evidencia-se que com sua institucionalização, a religião não se limita apenas a uma gestão do sagrado como também se encarrega de funções dentro do sistema social.

A condução das almas passa também a implicar numa intervenção no cotidiano, na gestão da vida e também dos bens e das riquezas (FOUCAULT, 2008). Assim, “o pastorado deu lugar no cristianismo a uma rede institucional, densa, complicada, compacta” (p. 218) não coincidindo nem como uma política, nem pedagogia ou retórica, Foucault afirma que ele é uma arte para governar os homens.

Temos aqui um exemplo palpável de como a institucionalização da religião pode se afastar do sagrado de forma a tornar-se o ponto de formação, de cristalização do Estado moderno. O pastorado dos hebreus, o pastorado dos primeiros anos do cristianismo, cujo objetivo era a salvação do rebanho, cede lugar para um tipo de relação de “obediência individual, exaustiva, total e permanente” (p.242). Inicia-se o período em que a consciência é moldada pelo pastor, aquele que tudo sabe. Para isso, Foucault (2008) argumenta que o Pastorado desenvolveu dispositivos de poder que permitissem ter acesso ao interior dos indivíduos a fim de conhecer a verdade de cada um para moldá-la ao saber verdadeiro produzido pelo pastorado.

É nessa época entre os séculos XI e XII que vemos a igreja católica alcançar seu auge, impondo suas verdades e implantando mecanismos de poder, como a confissão, tornando a consciência passível de ser revelada e controlada, criando nas pessoas modos de ser e agir.

Os desejos do corpo desempenham papel central na confissão, desde a época da penitência cristã até nossos dias. A linguagem, as técnicas empregadas na confissão religiosa tiveram início na Idade Média, prosseguiram durante a Reforma até a atualidade, tornando-se mais refinadas e de alcance cada vez maior. [...] O indivíduo era incitado a produzir e fazer proliferar o discurso sobre o estado de sua alma e os desejos de seu corpo. Esse discurso era elidido e, então, julgado pelo representante da autoridade - o padre (DREYFUS e RABINOW, 2010, p.231).

Essa convicção de que a confissão revela a verdade nos aponta para uma autoridade sacerdotal alcançada por meio do conhecimento. O padre é aquele que tudo sabe e que pode absolver o sujeito do seu pecado e dar-lhe a penitência necessária. A confissão foi apenas uma parte das doutrinas implantadas que afirmavam a autoridade do pastor, sendo capaz de estabelecer uma obediência constante e permanente, e uma dependência, já que só ele tinha o poder de expiar os pecados confessados. Parece-nos assim que o poder pastoral foi quem iniciou o processo de

docilização dos corpos e das almas, que mais tarde evoluirá para um poder disciplinar como veremos ainda neste capítulo.

Através da institucionalização do pastorado instituiu-se não só o governo das almas, mas o governos dos homens (FOUCAULT, 2008). Ao moldar a consciência individual, a igreja assumiu o governo da vida cotidiana dos indivíduos a pretexto de levá-los à salvação. É importante nos atentarmos para como as doutrinas, os rituais baseados numa verdade eterna foram fundamentais para o sucesso desse dispositivo de poder, em que a formação de uma consciência sobre si se pautava pela verdade do pastor, num verdadeiro sistema de poder-saber. Essa ligação de saber e poder, segundo Foucault, é central nos estudos dos mecanismos de poder, os fazendo engrenar como veremos seguir.