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5 O MUNDO DO TRABALHO NA STDS DO CEARÁ: configurações da precarização do trabalho

5.7 A interdisciplinaridade na prática socioassistencial

Dentro do contexto histórico da interdisciplinaridade, pode-se verificar que no Brasil, o conceito de interdisciplinaridade, chegou, inicialmente, através do estudo da obra de Georfes Gusdorfe27, posteriormente, de Piaget. O primeiro autor influenciou o pensamento Japiassu

27 George Gusdorf, que conforme Japiassu (1976), elaborou o primeiro programa interdisciplinar, o

(1976) no campo da epistemologia e Ivani Fazenda (1999) no campo da educação. Ao conceituar o termo interdisciplinaridade, não se possui ainda um sentido único e estável, trata- se de um conceito que varia, não somente no nome, mas também no seu significado, pois existem várias definições, dependenpendo do ponto de vista e da vivência de cada um, da experiência educacional, que é particular.

Para Japiassu (1976, p.74): “A interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de interação real das disciplinas no interior de um mesmo projeto [...]”. Isto significa compreender, entender as partes de ligação entre as diferentes áreas de conhecimento, unindo-se para transpor algo inovador, abrir sabedorias, resgatar possibilidades e ultrapassar o pensar fragmentado. É a busca constante de investigação, na tentativa de superação do saber. Ainda que a noção do termo interdisciplinaridade não se configure como um sentido unívoco e preciso, em vista do conjunto de enfoques que ela recebe, mesmo que não possamos generalizar uma concepção de interdisciplinaridade, o certo é que há uma compreensão comum, por parte dos seus diversos teóricos, na necessidade de relação de sentidos e significados na busca do conhecimento, objetivando uma percepção de saberes em conjunto.

O conceito de interdisciplinaridade fica mais claro quando se considera o fato trivial de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente como os outros conhecimentos, que pode ser de questionamento, de confirmação, de complementação, de negação, de ampliação, [...]. (BRASIL.1999, p.88).

Com base nesses preceitos um dos principais movimentos que se pode observar atualmente é a necessidade de conceituar e diferenciar inter de multi, pluri e transdisciplinaridade28. Hoje, percebe-se o conceito de interdisciplinaridade como polissêmico, pois a atitude interdisciplinar depende da história vivida, das concepções apropriadas e das possibilidades de olhar por diferentes perspectivas uma mesma questão.

Na política de assistência social, essa temática é compreendida como uma forma de trabalhar no acompanhamento aos usuários enquanto estratégia de superação das situações de

pedagogia da especialização forme especialistas cada vez mais especializados. Daí a necessidade de criação de uma nova categoria de pesquisadores com objetivo de criar inteligência e imaginação interdisciplinares.

28 Interdisciplinaridade: Axiomática comum a um grupo de disciplinas conexas e definida no nível

hierárquico imediatamente superior, o que introduz a noção de finalidade. Multidisciplinaridade: Gama de disciplinas que propomos simultaneamente, mas sem fazer aparecer às relações que podem existir entre elas. Pluridisciplinaridade: Justaposição de diversas disciplinas situadas geralmente no mesmo nível hierárquico e agrupadas de modo a fazer aparecer às relações existentes entre elas. Transdisciplinaridade: Coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas do sistema de ensino inovado, sobre a base de uma axiomática geral. (JAPIASSU 1976:73-74).

vulnerabilidade e riscos aos quais estão vivenciando. Assim, essa estratégia propõe a realização do trabalho socialmente necessário com base em abordagens de diferentes disciplinas com matricialidade sociofamiliar.

Isto significa que o acompanhamento aos sujeitos em situações de vulnerabilidades e riscos pessoal e social, precisa ser realizado a partir de estudos sociais que envolvam a dinâmica da vida familiar e comunitária com suas vulnerabilidades e potencialidades com vistas ao planejamento de uma intervenção interdisciplinar, ou seja, pelo conjunto da equipe dos diversos profissionais de referência do Suas.

É importante enfatizar que a interdisciplinaridade supõe um eixo integrador entre os saberes acumulados de cada profissão construídos a partir das teorias específicas e práticas empíricas no horizonte de construção de uma prática diferenciada e específica, no caso a prática socioassistencial. Para Fazenda (1992, p.49) “O valor e a aplicabilidade da Interdisciplinaridade, portanto, podem-se verificar tanto na formação geral, profissional, de pesquisadores, como meio de superar a dicotomia ensino-pesquisa e como forma de permitir uma educação permanente”.

Tendo em vista essas reflexões, a interdisciplinaridade se realiza como uma forma de ver e sentir o mundo, de estar no mundo, de perceber, de entender as múltiplas implicações que se realizam, ao analisar um acontecimento, um aspecto da natureza, isto é, os fenômenos na dimensão social, natural ou cultural. É ser capaz de ver e entender o mundo de forma holística, em sua rede infinita de relações, em sua complexidade.

O conceito de interdisciplinaridade permanece irredutível a uma única apreensão retórica e que a sua prática é exercida mais por iniciativas individuais ou por equipes de trabalhadores do Suas do que procedimentos generalizados e incorporados às práticas sociais.

A polissemia da noção de interdisciplinaridade, por outro lado, reserva a cada iniciativa interdisciplinar seu estatuto próprio de entendimento teórico-prático, ainda que haja o consenso entre os estudiosos da mesma de que se trata de desfragmentar o saber, ou seja, fazer com que as disciplinas dialoguem entre si a fim de que se perceba a unidade na diversidade dos conhecimentos.

Por isso, esta pesquisa presume que se perceba o valor da interdisciplinaridade e a necessidade de situar sua importância na prática socioassistencial no enfrentamento dos

desafios, dúvidas e interrogações da atualidade. Uma proposta de práxis interdisciplinar, não é adequada ou inadequada, pelos problemas e dificuldades que possam surgir no seu desenvolvimento, mas, sim, necessária e natural.

Sendo assim, encarar uma mudança no desenvolvimento dos serviços da assistência social, como a interdisciplinaridade, propõe uma atitude permanente de crítica e reflexão, de compromisso e responsabilidade com a tarefa de acompanhar as famílias em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social com vista a garantir a segurança de autonomia desses usuários. Nesse sentido, uma prática inovadora, a partir de reflexão, análise, avaliação de suas práticas vai procurar encontrar respostas cada vez mais adequadas às necessidades de superação dessas fragilidades.

Em conformidade com Teixeira (2010):

O trabalho humano é caracterizado por sua capacidade de dar respostas prático-conscientes às suas necessidades, o que coloca o homem por meio do trabalho na condição de criador, de sujeito que age consciente e racionalmente, que planeja antecipadamente e põe em movimento sua capacidade de transformação mediante o trabalho. Contudo, na sociedade capitalista, o trabalho é contraditório, mesmo quando especializado, pois perde a dimensão criativa, consciente e autodeterminada pelo próprio sujeito, uma vez que responde a um fim que não é determinado pelo trabalhador. Assim, embora a qualificação teórica, técnica e ética imprima direção à ação, o trabalho particular e especializado é parte do trabalho coletivo na sociedade capitalista, que é fragmentado, mas combinado, que estabelece finalidades ao trabalho assalariado. (TEIXERA. 2010, p.292)

Esse aporte teórico nos ajuda a entender o trabalho profissional da equipe interdisciplinar no Suas e a direção do trabalho social com famílias ou indivíduos, dependentes não apenas de seus referenciais teóricos, concepções e visões de mundo, mas também da direção dada pelo Ministério do Desenvolvimento Social, gestor, coordenadores, dentre outros, mesmo que isso não exima os profissionais de suas responsabilidades em relação ao que é posto em prática, considerando sua relativa autonomia como trabalho especializado.

Em relação ao trabalho profissional nas unidades de prestação de serviços socioassistenciais da STDS, o trabalho compreende uma dimensão individual de atendimento, orientação e encaminhamentos para a rede, e uma dimensão coletiva, com os grupos de sujeitos por segmento ou faixa etária e grupos de famílias, nos quais se delimitam também os tipos de procedimentos a serem adotados, as técnicas ou instrumentos possíveis de serem utilizados.

A própria presença do psicólogo na equipe evidencia que a noção de subjetividade é importante, o resgate de histórias de vidas, a reconstrução de significados. Todavia, é preciso ter claro que esses processos não são necessariamente terapêuticos, mas modos de abordar os problemas e a vida das pessoas não apenas como um objeto, como uma mera expressão da questão social, mas com sentido pessoal, individual. Assinalamos ainda, a importância de trabalhar a noção subjetiva do direito, principalmente se associada à dimensão objetiva desse, como o acesso aos bens, serviços e benefícios, de modo a superar a carência de recursos e serviços, e também a subalternidade, especialmente política, de falta de participação, e de informação.

A publicação “Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS” enfatiza a importância do trabalho em equipe e interdisciplinar, compreendendo:

[...] que o principal objeto de ação da política de assistência social – as vulnerabilidades e riscos sociais – não são fatos homogêneos e simples, mas complexos e multifacetados, que exigem respostas diversificadas alcançadas por meio de ações contextualizadas e para as quais concorrem contribuições construídas coletivamente e não apenas por intermédio do envolvimento individualizado de técnicos com diferentes formações [...] o trabalho interdisciplinar exige que uma equipe multiprofissional supere a abordagem tecnicista, segundo a qual o trabalho de profissionais de diferentes áreas é enfocado como uma atribuição específica e independente. (BRASIL, 2009, p.64-65).

Desta maneira, tanto o psicólogo como o assistente social e os demais profissionais são considerados técnicos de referência. Isso pressupõe um modo de organização de trabalho multidisciplinar, onde os profissionais estão presentes nas diversas atividades, sem perder suas especificidades. Visto que todas as etapas de trabalho são oportunidades de se lidar com os vínculos, a subjetividade implicada na objetividade das vulnerabilidades e riscos pessoal e social, o desejo e a adesão dos usuários nas atividades oferecidas. Assim, todos os profissionais, na equipe de referência, atuam em todos os serviços socioassistenciais.

Em nossa pesquisa avaliativa, realizada por intermédio dos grupos focais e entrevistas, não verificamos uma disponibilidade por parte da maioria dos profissionais, em buscar uma aproximação e integração de seus saberes. Sendo declarado nos relatos que:

Não existe trabalho interdisciplinar, existe o acompanhamento individualizado com comunicação entre os profissionais em casos emergenciais. (Depoimento de trabalhador na entrevista 3).

Identificamos que trinta e oito profissionais realizam o acompanhamento aos usuários de forma específica, individualmente, não havendo reuniões de equipe para estudos de caso

com troca ou intercessão dos saberes.

Seis profissionais de duas unidades de atendimento declararam que até existe a proposta de estudo de caso em equipe, mas não é executada.

Em uma das unidades de prestação de serviços, constatamos que cada usuário tem dois prontuários: um com o profissional de saúde e outro no com o profissional do serviço social.

Onze profissionais realizam acompanhamento específico de cada profissional com prontuário único.

Essa inadequação de como as disciplinas são trabalhadas, de saberes divididos, compartimentados não está de acordo com a realidade que é global, as relações entre o todo e as partes, impedem a contextualização dos saberes. Essa maneira de isolar os conhecimentos, de compartimentá-los, causa a incapacidade de considerar o saber contextualizado e globalizado. Enfatiza Morin (2000, p.43): “a inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva e reducionista rompe o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna unidimensional o multidimensional”.

Neste cenário, das seis unidades de prestação de serviços pesquisadas, três tem iniciativas de ação interdisciplinar. Sendo constatado em uma destas, um trabalho coeso entre cinco trabalhadores que desenvolvem acompanhamento específico e em grupo e continuado após o desligamento dos usuários. Os depoimentos destacam tanto os procedimentos e ações profissionais realizadas como as técnicas e os objetivos que visam a essas ações e serviço:

Tem iniciativa de trabalho interdiciplinar é realizado de forma sistemática junto às famílias com toda a equipe, e não apenas com a pessoa com o direito violado, havendo diálogo entre os técnicos, até mais de uma vez por semana, para junto discutirem os casos e seus encaminhamentos, embora haja, em algumas situações estudos e acompanhamentos específicos (parecer social pelo assistente social, reforço escolar pelo pedagogo). Só há desligamento quando se certifica a superação do risco e mesmo assim, o acompanhamento continua durante certo tempo por meio de visitas domiciliares, por isso não há reincidência. (Depoimento de trabalhador participante do grupo focal 5).

Destacamos, ainda que, na segunda unidade, com iniciativa de ação interdisciplinar, vinte e três trabalhadores realizam acompanhamento específico com estudo de caso em equipe e quando necessário o usuário é acompanhado pelo assistente social e psicólogo. Sendo relatado no depoimento, quando questionados sobre a forma de acompanhamento aos usuários:

Multidisciplinar e interdisciplinar- atendimento e estudos de casos em equipe, mas o serviço social é o carro chefe. (Depoimento de trabalhador na entrevista 9).

Assim, o trabalho realizado pelos trabalhadores de nível superior no Suas, requer abordagens das profissões que devem somar-se com o intuito de assegurar uma intervenção interdisciplinar capaz de responder a demandas individuais e coletivas, com vistas a defender a construção de uma sociedade livre da violência e exploração de classe, gênero, etnia e orientação sexual.

Ao integrar a equipe dos (as) trabalhadores (as) no âmbito da política de assistência social, os (as) profissionais podem contribuir para criar ações coletivas de enfrentamento a essas situações, com vistas a reafirmar um projeto ético e sócio-político de uma nova sociedade que assegure a divisão equitativa da riqueza socialmente produzida.

Dessa forma, o trabalho interdisciplinar em equipe deve ser orientado pela perspectiva de totalidade, com vistas a situar o indivíduo nas relações sociais que têm papel determinante nas suas condições de vida, de modo a não responsabilizá-lo pela sua condição socioeconômica.

Em virtude dos desafios impostos na atuação interdisciplinar na política de assistência social no contexto da STDS, considera-se importante a criação de espaços, no ambiente de trabalho, que possibilitem a discussão e reflexão dos referenciais teóricos e metodológicos que subsidiam o trabalho profissional e propiciem avanços efetivos, considerando as especificidades das demandas, das equipes e dos (as) usuários (as).