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A interpretação da personagem e a performance musical

Na ópera, a presença determinante da música certamente faz que o preenchimento das zonas indeterminadas seja um exercício mais complexo. A complexidade encontra-se no fato de as infor- mações presentes em uma obra operística não estarem concentra- das somente no texto e nas rubricas, mas também distribuídas na música. Há artistas que julgam este exercício mais fácil na ópera exatamente pelo fato de a música muitas vezes reduzir e direcionar

6 Acontece quando a personagem de uma obra ficcional é baseada em uma figura histórica, ou quando outro autor já escreveu sobre a mesma história. No caso da ópera, acontece muito frequentemente, pois a maioria dos libretos é baseada em fontes anteriores.

as possibilidades interpretativas. Contudo, a complexidade refe- rida deve-se somente ao fato de a música ser mais uma fonte de informação a ser considerada e observada na busca de coerência no preenchimento das zonas indeterminadas. Além de relacionar as ações e orações da personagem, o artista também tem de analisar como a música se relaciona com tudo isso. Dessa maneira o exer- cício de preenchimento das zonas indeterminadas na ópera requer uma atenção maior e um conhecimento não somente da linguagem verbal, mas também da linguagem musical utilizada pelo compo- sitor. Portanto, podemos considerar o exercício inicialmente mais trabalhoso e complexo, mas isto não quer dizer que se o cantor adquirir experiência e prática, o exercício não se torne mais fluente e, por isso, mais fácil.

A presença da música pode tanto direcionar para determinadas possibilidades de preenchimento, reduzindo o campo de interpre- tações coerentes com a obra, quanto suscitar muito mais possibili- dades por se tratar de uma linguagem abstrata. Complementando ainda esta reflexão, podemos perceber que na ópera, ao mesmo tempo que há zonas indeterminadas entre as cenas como em toda obra ficcional, de um modo que podemos definir como horizon-

tal, entre as orações e informações referentes ao fluxo narrativo da

história, elas também existem de um modo vertical, entre a música executada e as ações correntes. Assim, os preenchimentos elabora- dos para ambos os tipos de zonas indeterminadas afetam-se entre si. Esse ponto de vista também é ressaltado por Burgess e Skilbeck (2000, p.4-5):

Em qualquer nível e em qualquer modo, música e drama coexis- tem na performance, e quando eles o fazem, as propriedades expres- sivas de um afetam o outro. A ação dramática, na qual os eventos se desdobram no palco, e o texto, que oferece suporte e definição para a ação, são transformados pela música que interpreta, nos seus próprios termos, ação e texto. Por esta razão quando, enquanto

performer, você muda o modo como canta a música, o drama tam-

e você alterará as precisas qualidades da música. Esse processo pode ser consciente ou inconsciente. Similarmente uma mudança no tempo, seja mais rápido ou mais devagar, ou uma mudança no comprimento de uma pausa pode alterar completamente o fluxo da cena dramática e subsequentemente sua performance. Quando você aceita isto, você dá o primeiro passo para a exploração e a manipu- lação da mistura música/drama.7

Desse modo, a elaboração da performance musical faz parte tam- bém do trabalho de pré-ensaio e interpretação da personagem, pois a interpretação referente à relação existente entre a música e a per- sonagem não significa somente a reflexão sobre como os elementos musicais registrados na partitura revelariam aspectos sobre a perso- nagem. É necessário também refletir sobre como a maneira de exe- cutar a música pode contribuir para melhor representar e eviden- ciar aquilo que se estabeleceu como interpretação da personagem.

Grossman (1994, p.257) admite que todo performer musical tem uma dupla obrigação: com a música que ele executa, que estaria preestabelecida na partitura ou em performances anteriores, e com ele mesmo enquanto um artista criativo. É possível comparar o que Grossman aponta como obrigações do performer musical com aquilo que definimos anteriormente como fatores condicionantes na interpretação de uma personagem e, também, com a dupla obri- gação do cantor-ator. E se observarmos quais seriam as obrigações do cantor como performer musical na ópera poderíamos dizer que

7 “At whatever level and in whatever way music and drama exist together in perfor-

mance, when they do so, the expressive properties of one affect the other. The dra- matic action, in which the events on stage unfold, and the text, which offers sup- port and definition to the action, are transformed by the music which interprets, on its own terms, both action and text. For this reason when as a performer you change the way you sing the music, the drama will also change. Change the way you interpret your character and you alter the precise qualities of the music. This pro- cess may be conscious or unconscious. Similarly a change in tempo, whether faster or slower, or a change in the length of a pause may completely alter the flow of the dramatic scene and subsequently your performance. When you accept this then you have taken the first step to exploring and manipulating the music/drama mix”.

seriam com a música escrita na partitura (e isto envolve o conheci- mento que estaria implícito, como estilo e tradições) e com a per- sonagem que representa. No entanto, seria o próprio cantor, como artista criativo, quem traçaria as relações existentes entre as duas obrigações para que o público receba as duas performances – musi- cal e dramática – de uma forma unificada.

O que ocorre é que a partitura da ópera já é o resultado de uma cadeia de processos interpretativos e que invariavelmente se sub- meterá a novos processos interpretativos até ser absorvida pela mente dos espectadores. Sob um ponto de vista geral, segue um exemplo desta cadeia: o libreto é a interpretação do libretista sobre uma fonte que lhe serviu de inspiração, como, por exemplo, um ro- mance, uma peça teatral ou um fato histórico. A composição musi- cal é a interpretação do compositor sobre este libreto. Esta soma de interpretações que resulta na partitura completa da ópera passa por um editor que, ao publicá-la, muitas vezes, ainda pode complemen- tá-la com sinais que indicariam questões estilísticas de execução musical, como andamentos específicos, cadências ou ornamentos tradicionais. Cada integrante de uma montagem a ser apresentada (isso inclui os cantores, o cenógrafo, o figurinista, o iluminador etc.) ainda tecerá a sua própria interpretação sobre a obra. E ainda, todas essas interpretações isoladas ganharão uma concretização unificada quando condicionadas à interpretação do encenador e diretor mu- sical. No entanto, a cadeia de processos interpretativos não para aí, pois quando o espectador recebe o resultado disso tudo, ainda assim o recebe mediante um processo interpretativo elaborado pela sua mente a fim de apreender a história unificadamente por meio dos fragmentos de informação apresentados no palco.

Contudo, a partitura musical, apesar de ser o registro da in- terpretação do compositor sobre as palavras do libreto, não deixa de ser, como definem Burgess e Skilbeck (2000, p.118), somen- te “um esqueleto, uma pálida imitação da inspiração original do compositor”.8 Sparshott (apud Grossman, 1994, p.257) também

afirma que qualquer partitura musical “não comanda, mas mera- mente especifica e então fornece oportunidades”9 para a performan-

ce, e Grossman (ibidem, p.261) ainda acrescenta que a partitura

possui uma “neutralidade que não apenas permite como convida à interpretação”.10

Para exemplificar isso, podemos perceber que em qualquer par- titura musical podemos encontrar um sinal pp, indicando que uma frase deva ser executada em pianíssimo. Esse sinal não consegue indicar precisamente a medida exata da dinâmica a ser executada dentro dos inúmeros níveis que compõem um pianíssimo. E ainda quanto às partituras destinadas à ópera, a relação que essa indica- ção de dinâmica possui com o drama (ou seja, o devido porquê de a personagem se expressar dessa forma) raramente está indicada

diretamente; estará talvez subentendida, implícita ou constará como

zona indeterminada. Como afirma Lucca (2007, p.85), “as pala- vras e os pontos na página são simples notações – notações que são muito limitadas, mas não limitantes. Existe um mundo inteiro de possibilidades em cada página. Depende de nós trazer à tona essas possibilidades”.11

Parece ser óbvia a necessidade do artista se posicionar e decidir diante de questões como essas citadas acima, porém, o que talvez não seja tão óbvio é o complicado caminho no qual o performer lida com suas contrastantes obrigações e como o equilíbrio entre essas obrigações varia em relação ao tempo e às circunstâncias (Gross- man, 1994, p.257). Assim, fatores como o público ao qual é desti- nada a performance, o espaço físico e acústico, todos os elementos e toda a equipe de encenação de uma montagem e também os fatores físicos e emocionais do próprio performer significam variantes que certamente influenciarão na equalização de suas obrigações. Por

9 “does not command but merely specifies and thus provides opportunities”. 10 “neutrality which not only allows but invites interpretation”.

11 “The words and dots on the page are simply notations – notations that are very

limited, but are not limiting. There is a whole world of possibilities on each page. It is up to us to bring forth these possibilities”.

isso, “ninguém pode interpretar os próprios pensamentos ou a arte de um performer se não ele mesmo. Professores e correpetidores guiarão, sugerirão e polirão, mas o treinamento que eles oferecem deve ser inspirador e não sufocante para que alimente as habili- dades do performer”12 (Helfgot; Beeman, 1993, p.182). Sobre isso,

ainda Grossman (1994, p.280) complementa:

A conspícua lealdade dupla, a si mesmo e ao outro, à exigência interna bem como ao comando externo, está no centro da existência ética em seus mais difíceis e portanto significativos momentos. O

performer tem de fazer suas escolhas, e ninguém pode garantir que

ele as faça bem; nem o compositor-performer está pronto para dar infalíveis orientações pessoais, e especialmente nem o esteta, quem retrata os problemas da performance como uma série de modulações silenciosas entre suas próprias indecisões elevadas.13

Podemos perceber que a interpretação musical é um exercício individual e não está presa a um conceito de interpretação certa ou

errada, mas sim de interpretações mais leais ou menos leais ao regis-

tro da partitura, às orientações estilísticas ou às tradições estabele- cidas. Juntamente a isso, tratando-se de uma partitura musical ope- rística, podemos somar o conceito de interpretações musicais mais

adequadas ou menos adequadas à caracterização cênica e textual de

uma personagem, ou mesmo mais coerentes ou menos coerentes com a narrativa da obra.

12 “Nobody can interpret a performer’s own thoughts or artistry but the performer.

Teachers and coaches will guide, suggest, and polish, but the training they offer must be inspiring and not smothering for it to feed the performer’s skills”.

13 “The conspicuous double loyalty, to self and to other, to inner demand as well as

to outer command, is at the core of ethical existence in its most difficult and hence most meaningful moments. The performer has to make his choices, and nobody can guarantee that he makes them well; not the composer-performer ready to give infallible personal guidance, and especially not the aesthetician, who portrays problems of performance as a series of silent modulations among his own culti- vated indecisions”.

Contudo, a performance musical do cantor na ópera não se re- sumiria na execução dos aspectos relacionados exclusivamente a elementos musicais, como condução melódica, construção de di- nâmicas e articulação das frases musicais, mas também se estabe- leceria em relação ao modo como cada palavra é dita, à execução dos fonemas, visto que na ópera a musicalidade do idioma também seria considerada um recurso de caracterização.

Olhando uma partitura, deve-se perguntar: “Esta palavra é uma palavra para ser dita graciosamente ou agressivamente? O que a palavra significa? Quantas outras palavras neste idioma particular poderiam ter sido usadas pelo libretista ou pelo compositor em vez desta, e porque eles usaram esta? Por que eles usam amplesso em vez de abbraccio se ambas significam a mesma coisa? Ambas têm três sílabas. Mas amplesso soa mais suave e mais terna, abbraccio soa mais marcada e mais enérgica. (Helfgot; Beeman, 1993, p.102)14

Lucca (2007, p.46) também ressalta a importância de como as palavras são ditas para a representação de uma personagem. Por exemplo, na ária “Smanie implacabili”, da ópera Così fan tutte de Mozart, a palavra sospir ao ser dita com um pouco de soprosidade daria a impressão de um suspiro, e a palavra orribili dita de uma ma- neira mais agressiva ajudaria a expressar quão horrível é aquilo que a personagem quer comunicar, dando assim ênfase à personalidade melodramática da adolescente “em meio a um completo chilique”.15

Burgess e Skilbeck (2000, p.150-1) afirmam que existem duas maneiras de o cantor construir a performance musical junto da inter- pretação da personagem: “de fora para dentro” ou “de dentro para

14 “In looking at the score, one might ask: “Is this word to be said gracefully or

aggressively? What does the word mean? How many other words in this particular language could have been used by the librettist or the composer instead of this one, and why did they use this one? Why did they use ‘amplesso’ instead of ‘abbraccio’ if they both mean the same thing? They both have three syllables. But ‘amplesso’ sounds softer and more tender, ‘abbraccio’ sounds sharper and more energetic”.

fora”.16 Explicando melhor as ideias desses autores, na primeira ma-

neira a performance musical é planejada de forma analítica sob um ponto de vista fora da personagem, na qual primeiramente o cantor se pergunta: “Como os elementos musicais se relacionam com as palavras e com a situação cênica da personagem?”. Ou ainda: “Que relação teria o compositor pensado quando estabeleceu estes ele- mentos musicais para esta cena e estas palavras específicas?”. Logo, a partir dessa análise o cantor elabora conscientemente as opções interpretativas relacionadas à performance musical que poderiam evidenciar aquilo que estabeleceu como resposta.

Na segunda maneira, a música não é considerada primeiramen- te como elemento revelador da personagem; sua interpretação é feita primordialmente por meio dos aspectos textuais e cênicos. No entanto, quando a música é executada, as decisões relativas à

performance musical se moldam como uma expressão espontânea

da personagem pelo envolvimento do artista na situação dramáti- ca. Contudo, podemos afirmar que mesmo assim não deixaria de existir uma análise e reflexão sobre a relação existente entre música e drama nessa segunda maneira de elaborar a performance musi- cal, pois certamente ocorrem de um modo não planejado ou, até mesmo, de um modo inconsciente.

Não seria possível afirmar qual dessas duas maneiras seria a mais correta ou a mais indicada para o cantor elaborar a devida união entre a interpretação musical e a interpretação de sua personagem. Uma complementa a outra e na maioria das vezes o cantor lida com as duas durante sua rotina de estudo. Quando o diretor musical, correpetidor ou professor de canto pede ao cantor algo relacionado à interpretação musical (como, por exemplo, mais lento, mais rá- pido, mais forte, diminua etc.) destinado a um maior refinamento musical ou vocal, o cantor encontrará certamente algo imanente à interpretação da personagem que a motivará a expressar-se dessa maneira. Igualmente, quando o cantor está buscando vivenciar as circunstâncias da personagem, ao executar a música, interpreta-a

invariavelmente moldando-a quanto àqueles aspectos que o com- positor deixou a cargo da livre interpretação do cantor, ou quanto a sutis aspectos da execução musical que seriam impossíveis de con- trolar pelo compositor e até mesmo de registrar pela escrita na par- titura. Digamos que a primeira maneira fornece um guia para que a

performance musical seja executada de modo a ser tanto leal às indi-

cações da partitura quanto coerente com a representação cênica da personagem, e a segunda maneira possibilita que a energia da repre- sentação cênica impulsione a interpretação musical durante a perfor-

mance fornecendo assim uma união orgânica entre música e drama.