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A preparação de um papel de ópera é feita pelo cantor sempre em dois momentos que antecedem o espetáculo: antes e durante os ensaios. A complexidade vocal e musical dos papéis operísticos e também a memorização do texto em idioma estrangeiro requerem um tempo significativo para o aprendizado, por isso o trabalho necessário para a preparação de um papel na ópera inicia-se sem- pre antes do período de ensaios, como mencionado anteriormente. Igualmente, para a atuação cênica do cantor o trabalho de pré-en- saio seria fundamental, visto que em uma montagem operística o tempo disponível destinado à preparação das cenas é sempre curto. O encenador de ópera tem muito pouco tempo para trabalhar pro-

fundamente aspectos destinados à consciência psicológica e corpo- ral das personagens com os cantores, por isso espera-se que eles já venham para os ensaios com uma elaboração prévia da personagem que representarão. Os ensaios serviriam apenas para o desenvolvi- mento da concepção que o próprio cantor já possui da personagem e para adaptação dessa concepção à interação com os demais colegas, ao conhecimento dos elementos da encenação e ao ponto de vista do encenador. Como afirmam Burgess e Skilbeck (2000, p.11), os en- saios dependem daquilo que os cantores trazem de maneira oculta em suas “caixas de ferramentas”.

Lucca (2007, p.32) alerta aos cantores que os diretores de uma montagem se manterão atentos a como o período de ensaios está sendo gasto, pois além deste período ser limitado, ele custa dinheiro para a produção.2 Por isso, aconselha os cantores que para evitar

um grande estresse consigo mesmos e com as pessoas que poderão contratá-lo em outras oportunidades, eles devem dirigir-se aos en- saios totalmente preparados, com um completo domínio da música, do texto e do drama. Dessa maneira, poderão aproveitar o processo de ensaios trazendo criativas contribuições para o espetáculo.

O equívoco consiste em pensar que o trabalho de pré-ensaio seria simplesmente memorizar o texto e as notas musicais corretamente. O fato é que preparar um papel dramático, tanto na ópera quanto no teatro, não significa somente estar apto a executar mecanicamente a marcação de cena elaborada pelo encenador ou conhecer a obra de modo superficial. Stanislavski (2004a, p.242) já alertava seus alunos dizendo que os atores que representam um papel sem um profundo estudo da obra e de sua personagem só conseguem ter uma “pers- pectiva obscura” da peça. Por isso, sem ter uma “perspectiva total” da obra, não sabem onde devem conduzir sua personagem, muitas vezes deixando de perceber aquilo que está à espera de ser revelado.

2 A esse respeito, Peixoto (1986, p.117) cita o problema da limitação de ensaios que enfrentou ao encenar Wozzeck de Alban Berg em 1982 no Teatro Munici- pal de São Paulo. Nas palavras do autor: “A razão do pouco tempo de ensaio é óbvia: os cantores ‘importados’ não poderiam, nem podem nunca, permanecer muito tempo no Brasil, por razões econômicas”.

Para que um artista possa construir com definição uma perso- nagem no palco, é necessário que ele passe por um processo que lhe permita elaborar uma interpretação da personagem, seja esse processo feito pelo artista de modo planejado e anterior aos ensaios, como está sendo proposto aqui, ou direcionado pelo encenador durante os ensaios por meio de exercícios de improvisação com o elenco, como ocorre em tantas montagens de espetáculos teatrais. Quando um artista representa uma personagem, ele representa invariavelmente a sua particular interpretação daquela personagem criada e registrada anteriormente pelo dramaturgo dentre tantas in- terpretações que poderiam certamente ser feitas a partir do mesmo material preexistente.

Uma interpretação é uma “abordagem crítica [... que] se preo- cupa em determinar o sentido e a significação” do texto ou da cena (e no caso da ópera, da música também) e “concerne tanto ao pro- cesso da produção do espetáculo pelos ‘autores’ quanto ao de sua recepção pelo público” (Pavis, 2007, p.212). De um modo geral, a interpretação é o que junta e une os fragmentos de informação exis- tentes sobre uma história e os transforma na imaginação de quem os recebe em uma história unificada, coerente e completa. Assim, a interpretação de uma personagem seria a apreensão e compreensão que o artista possui da personagem e da obra, ou seriam mesmo as decisões necessárias para que uma personagem que ainda se en- contra no registro de um papel ganhe concretização física no palco, incluindo também as justificativas a respeito dessas decisões.

O objetivo de o cantor elaborar uma interpretação consciente de sua personagem é estabelecer alicerces sólidos para adquirir credibilidade cênica em sua atuação. Esses alicerces são construídos mediante a definição de todos os aspectos que envolveriam a vida ficcional da personagem em sua imaginação. Lucca (2007, p.87) denomina isso de “andaime dramático”.

A partitura de ópera não é a ópera. O que está na página é pare- cido com a planta de uma casa. É dever do ator construir a casa de novo a cada performance.

Para a construção dessa casa, você deve construir um forte andaime – uma estrutura de pensamento e preparação que sustenta você quando você cria. [...]

Eu uso o termo andaime dramático para me referir a toda explo- ração, reflexão e descoberta que é a sua preparação da atuação. Não é a construção da casa. Esta acontecerá toda noite no palco desde o princípio. O andaime dramático é a preparação que sustenta você quando você constrói a casa espontaneamente.3

Para que o jovem cantor compreenda melhor no que consiste o processo que estabelecerá a sua particular interpretação da persona- gem a ser construída fisicamente, julgou-se necessário explicar mais detalhadamente dois fatores que condicionam a interpretação de qualquer personagem em qualquer obra que tenha por objetivo nar- rar uma história mediante a presença das personagens. Essas obras são tanto literárias (como romances, contos ou textos dramáticos), nas quais as personagens tomam vida na imaginação de um leitor, quanto obras representativas, em que as personagens são represen- tadas fisicamente diante de um espectador (como peças teatrais, filmes e nosso objeto de estudo, a ópera). Esses fatores são respec- tivamente as orações e informações que constam na própria obra e que foram cuidadosamente selecionadas por um autor e o preenchi- mento de zonas indeterminadas que se fazem presentes na obra dada a necessidade por parte do autor de limitar o conteúdo informativo.

Assim, o jovem cantor, vendo a ópera sob o ponto de vista de uma obra ficcional, também poderá entender a sua dupla obrigação ao representar uma personagem: criar no palco a ilusão de um ser

3 “The opera score is not the opera. What is on the page is akin to a blueprint of a

house. It is up to the actor to build the house anew at each performance”. “To construct this house, you must build strong scaffolding – a framework of

thought and preparation that supports you as you create” [...]

“I use the term dramatic scaffolding to refer to all the exploration, reflection, and discovery that are your acting preparation. It is not the building of the house. That must happen on the stage from scratch every night. Dramatic scaffolding is the preparation that supports you as you spontaneously build the house”.

humano real sem destituir a personagem da lógica ficcional prees- tabelecida pelo autor.

Construir a ilusão do ser real partindo