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Sendo a ópera teatro, então ela também pode ser um drama. No entanto, Burgess e Skilbeck (2000, p.7) explicam alguns detalhes problemáticos sobre a união entre drama e música. Os autores sa- lientam que “quando a música e o drama interagem, o drama inevi- tavelmente fornecerá um contexto para a música”,4 porém esta não

necessariamente precisaria de um contexto. Dessa forma, “o drama pode limitar e supersimplificar a capacidade da música de suscitar um infinito número de respostas emocionais”.5 Porém, a música ao

não precisar “se conformar a uma noção corriqueira de tempo para

3 Apesar de muitos trechos de óperas terem uma força musical tão sugestiva que é possível apreciá-los fora de seu contexto cênico.

4 “When music and drama interact, drama will inevitably provide a context for

music”.

5 “drama can limit and oversimplify music’s capacity to arouse an infinite number

estabelecer e resolver suas próprias tensões pode fazer a passagem dos momentos no drama parecer falsa e mesmo ridícula”.6

É possível entender essa reflexão quando lembramos das tantas heroínas operísticas que cantam suas cadências vigorosas enquanto morrem ou daquelas personagens que repetem inúmeras vezes o mesmo texto antes de partir para uma ação que seria certamente imediata ou urgente. Sem dúvida, a música é um elemento que alte- ra o drama, que estiliza o texto dramático, e isso acontece em qual- quer ópera de qualquer período. Todavia, é possível compreender e aceitar essa estilização se antes entendermos o que é drama e qual seria o papel da música na exposição desse drama.

Segundo Pavis (2007, p.109-10), drama vem da palavra grega que significa “ação” e que resultou ao longo dos tempos no termo que designaria “obra teatral ou dramática”. De um modo geral, “o drama é o poema dramático, o texto escrito para diferentes papéis e de acordo com uma ação conflituosa”. O autor ainda define que dramático é um princípio de elaboração de texto ou de representação que se baseia a partir da construção de “tensão das cenas e dos episó- dios da fábula rumo a um desenlace (catástrofe ou solução cômica)”. Outra definição encontrada em Kerman (1990, p.13) esclarece melhor a relação existente entre esse termo e a ópera. Partindo de Aristóteles,7 o autor afirma o seguinte: “O drama é, ou transmite,

a revelação da qualidade da reação humana a ações e eventos, no contexto direto dessas ações e eventos. A ópera é drama quando proporciona tais revelações”. Assim,

O drama requer não apenas a apresentação da ação, mas uma

percepção da qualidade dessa ação, por meio da reação que provoca.

Somente a apresentação dessa qualidade justifica o esforço dramá-

6 “to conform to an everyday notion of time in order to set up and resolve its own ten-

sions, can make the passage of moments in drama seem false and even ridiculous”.

7 “Imitação de uma ação de caráter elevado e completo, de certa extensão [...], imitação que é feita pelas personagens em ação e não através de um relato, e que, provocando piedade e terror, opera a purgação própria de tais emoções” (Aristóteles apud Pavis, 2007, p.110).

tico; e, nos melhores dramas, a reação parece imaginosa, autêntica, iluminadora e plenamente casada à ação. (ibidem, p.248, grifo nosso)

Visto isso, podemos afirmar que drama não é exclusivamente uma questão de dinamismo na apresentação dos eventos e das ações de uma trama ou mesmo de a representação de uma obra teatral ser feita sob uma narrativa de espetáculo naturalista ou baseada na pura teatralidade. Apesar de encenações estáticas impedirem, de certa forma, de mostrar detalhes que possibilitariam expor mais minuciosamente a ação e reação das personagens, como aponta Kerman (ibidem, p.22-3), o naturalismo não é necessariamente algo essencial ou mesmo útil para a compreensão do que é dramáti- co em ópera. Pode-se concluir isso posto que as convenções do gê- nero operístico antecedem esses princípios teatrais que têm origem no final do século XIX.

Tendo em vista o desenvolvimento do enredo, ou seja, o fluxo dos acontecimentos da trama, uma ópera poderia ser considerada mais próxima ou afastada da dinâmica estabelecida comumente nas peças tradicionais de teatro de acordo com a proposta formal e estilística dessa ópera, e nunca mais dramática ou menos dramá- tica. Como ressalta Kerman (ibidem, p.22-3), é justamente nessa visão limitada que residiria a grande confusão geral do que é de fato dramático em ópera. Assim, tanto uma ópera florentina (na qual a monodia vocal está a serviço das inflexões das palavras) quanto uma ópera belcantista (na qual a melodia ornamentada ganha mais força expressiva que seu próprio texto) ou mesmo uma ópera ve- rista pucciniana (em que a ação e a música estão propositalmente imbricadas deixando o espetáculo relativamente mais dinâmico) predispõem-se a ser dramáticas, já que todas pretendem revelar, à sua maneira, a qualidade da reação humana. O que varia é a forma de suas convenções, que pode se aproximar ou se afastar da noção que se tem de um espetáculo teatral partindo do senso comum.

Tendo em vista essa definição de drama, pode-se observar a real importância que os momentos líricos possuem em uma obra dramática, pois é neles que a qualidade da reação humana se expõe

mais facilmente. Assim como esses momentos se fazem presentes no teatro por meio dos monólogos8 das personagens, eles também

se encontram na ópera, geralmente por meio das árias. Kerman (ibi- dem, p.23-4) efetua uma interessante comparação entre a utilização da música na ópera e a utilização da poesia em peças teatrais que não estariam assentadas sobre as bases do naturalismo, possibilitando com isso um entendimento melhor desses momentos carregados de lirismo na ópera. Segundo o autor, a poesia dramática exerce a função de “fornecer certas espécies de significados ao drama” en- riquecendo-o de forma incomensurável. Nessas passagens líricas, a poesia ajudaria no aprofundamento da qualidade do sentimento envolvido na reação das personagens e consequentemente no de- senvolvimento das ações seguintes. Na passagem que segue, ao detalhar melhor esse assunto, o autor sutilmente já nos adianta qual seria o papel da música no teatro.

O que está essencialmente em questão aqui é a reação dos per- sonagens da peça aos elementos da ação. Neste campo a poesia pode fazer mais do que a discussão em prosa ou a colocação dos atores em relações físicas e psicológicas. O particular aspecto ou peso de tais relações, de eventos ou episódios, é determinado pela qualidade dos versos; e, no sentido mais amplo, a forma dramática é articulada pela poesia em conjunção com a estrutura do drama. O mesmo se aplica à música.

Como diz Eliot: “... quando Shakespeare, em uma de suas peças da maturidade, apresenta o que poderia parecer uma linha ou uma passagem puramente poética, esta jamais interrompe a ação, ou é fora de propósito, mas, ao contrário, de alguma forma misteriosa serve de apoio tanto para a ação quanto para o propósito”. Mais profundamente ainda, uma passagem poética extensa pode deter- minar de forma crítica todo o decorrer de um drama, através de sua qualidade de sentimento. Em tal caso, a poesia se torna o elemento vital da ação. (ibidem, p.24)

A música desempenharia na ópera a mesma função da poesia dramática no teatro. Partindo de Kerman (ibidem, p.27), é possível dizer que se em uma peça teatral os sentimentos que diferenciam uma simples sinopse de uma obra artística seriam dados pela poesia, na ópera eles seriam fornecidos pela música. No entanto, observa- -se que a poesia trata questões específicas com muito mais precisão do que a música, e assim a narrativa e o desenvolvimento de uma personagem nos versos ocorrem mais detalhadamente em razão das sutilezas que podem ser comunicadas e especificadas pela lingua- gem verbal. Por isso, na ópera o desenvolvimento das personagens é tratado com muito mais circunspecção. Apesar disso, a presença da música possibilitaria um imediatismo invariavelmente maior que o da poesia na comunicação de aspectos subjetivos. Desse modo, o espetáculo operístico dificilmente lida com a intelectualidade pro- veniente de significados apresentados somente pelas palavras. No trecho seguinte é possível compreender melhor a questão:

[...] apesar de toda a sensibilidade e clareza da poesia, até mesmo o mais apaixonado dos discursos existe num nível de reserva emo- cional, que a música consegue passar automaticamente. A música pode ser simples e imediata na apresentação de estados ou nuanças emocionais. Numa ópera, as pessoas podem se entregar à sensibili- dade; numa peça, ninguém consegue, em nenhum momento, parar inteiramente de pensar. [...] E, no senso mais amplo da forma, a música tem os contornos mais fortes e mais claros. As recapitula- ções, cadências, transições, inter-relações e modulações são recur- sos que a música aprendeu a manipular com a máxima eficácia. (ibidem, p.28)

A ópera utiliza-se da música como uma linguagem tão necessária e importante quanto a linguagem das palavras para revelar a qualida-

de das reações humanas, e é certamente essa a principal diferença que

explicaria as diferentes formas desenvolvidas para o drama declama- do e o drama musical. Porém, apesar de essas diferenças existirem, faz-se necessário deixar claro que a função da música na ópera e da

poesia utilizada no teatro falado é a mesma enquanto “estimuladoras da imaginação”. Ambas as formas artísticas têm a “responsabilidade final pelo sucesso do drama, pois faz parte de sua condição definir a reação dos personagens às ações e situações” (ibidem, p.28).

As funções dramáticas da música e as convenções