3. A REVIRAVOLTA QUÂNTICA: A POTENTIA DE HEISENBERG E A
3.2. A Interpretação ontológica da mecânica quântica
Em seu livro The Undivided Universe: an ontological interpretation of quantum
theory (1993), David Bohm e Basil J. Hiley contrapõem ao formalismo matemático da teoria
quântica, rigorosamente testado e preciso, a falta de clareza quando se trata de discernir que
tipo de realidade ele descreve:
O formalismo da teoria quântica leva a resultados que concordam com grande precisão com os experimentos e cobre uma gama extremamente ampla de fenômenos. Até agora não há indicações experimentais de qualquer domínio no qual ela possa falhar. No entanto, ainda há uma série de questões básicas, relativas ao seu significado, que são obscuras e confusas (p. 1, tradução nossa).
Dentre os muitos pontos que os autores consideram obscuros, podemos citar: a
incapacidade de se descrever processos quânticos individuais sem o recurso de suposições
consideradas insatisfatórias, como o colapso da função de onda; o problema da
não-localidade; a dualidade onda-partícula; a incapacidade de se dispor de uma noção clara do que
seria um sistema quântico. As críticas levantadas por Bohm e Hiley dirigem-se principalmente
à Interpretação de Copenhague, e mais especificamente ao fato dessa interpretação
preocupar-se mais com uma descrição epistemológica do que ontológica dos fenômenos quânticos.
Tudo o que é claro sobre a teoria quântica é que ela contém um algoritmo para calcular as probabilidades de resultados experimentais. Mas não dá nenhuma explicação física dos processos quânticos individuais. De fato, sem os instrumentos de medição em que aparecem os resultados previstos, as equações da teoria quântica seriam apenas matemática pura que não teria qualquer significado físico. E, portanto, a teoria quântica só nos dá conhecimento (geralmente estatístico) de como os nossos instrumentos vão funcionar. E a partir disso, podemos fazer inferências que contribuem para o nosso conhecimento, por exemplo, de como realizar vários processos técnicos. Ou seja, como de fato Bohr e Heisenberg sugeriram, parece que a teoria quântica está preocupada apenas com o nosso conhecimento da realidade e, especialmente, em como prever e controlar o comportamento dessa realidade, pelo menos tanto quanto isso possa ser possível. Ou para colocá-lo em termos mais filosóficos, pode-se dizer que a teoria quântica é essencialmente dirigida para a epistemologia que é o estudo que incide sobre a questão de como obter o nosso conhecimento (e, possivelmente, sobre o que podemos fazer com ele) (Ibid, p.1, tradução nossa).
Assim, a conclusão a que chegam Bohm e Hiley é a de que a mecânica quântica, tal
como concebida pela Interpretação de Copenhague, não é capaz de construir uma descrição
ontológica da realidade. Os esforços que ambos empreendem em seu livro é uma tentativa de
suprir essa lacuna. Por isso mesmo, como afirmam, escolheram o subtítulo “Uma
Interpretação Ontológica da Teoria Quântica”. Não analisaremos aqui a interpretação
ontológica proposta pelos autores. Servimo-nos, no entanto, da indicação de que é preciso
responder à pergunta sobre que tipo de realidade encontra-se sob o formalismo matemático da
mecânica quântica.
O nosso ponto de partida difere um pouco do de Bohm e Hiley. Para nós, já há
implícita na Interpretação de Copenhague uma ontologia. Porque entendemos que o que se
convencionou chamar de Interpretação de Copenhague não corresponde a uma compreensão
única da realidade quântica, mas a um consenso geral sobre a forma de como lidar
experimentalmente com esses fenômenos
21. Há poucas linhas acima vimos a discordância
entre Bohr e Heisenberg quanto ao problema da descrição dos objetos quânticos. Como
sugere Neto (2010, p. 7):
A expressão ‘interpretação de Copenhaguen (sic) da mecânica quântica’ foi provavelmente introduzida por Heisenberg por ocasião da celebração dos 70 anos de Bohr e é certamente uma alusão à enorme influência que Bohr, seus colegas e alunos exerceram naquela que acabou se tornando a interpretação oficial da mecânica quântica.
De fato, Niels Bohr concentrou-se mais nos aspectos epistemológicos da teoria
quântica. Por sua vez, Heisenberg, ainda que concordasse com grande parte da reflexão
epistemológica de Bohr foi além e introduziu um aspecto metafísico na interpretação da
teoria, ao afirmar que
[...] a onda de probabilidade de Bohr, Kramers, Slater [...] significava uma tendência para algo. Era uma versão quantitativa do antigo conceito de potência na filosofia aristotélica. Ela introduzia algo que fica no meio entre a ideia de um evento e o evento atual22, um estranho tipo de realidade física exatamente no meio entre possibilidade e realidade (HEISENBERG, 2007, p. 15, tradução nossa).
Como bem salienta Abner Shimony (1993, p. 313, tradução nossa): “Heisenberg não
aceita tão completamente quanto Bohr a ideia kantiana da renúncia do conhecimento da
21 Sobre este tema cf. HOWARD, 2004.
22
Sempre traduziremos as palavras inglesas “actual” e “actuality” pelos termos em português “atual” e “atualidade”, ao invés de “real” e “realidade”, para marcar a ênfase na relação filosófica entre potencialidade e atualidade, considerando que o atual é o real concreto.
em-si”. Obviamente, a preocupação de Heisenberg com a descrição da realidade por detrás do
formalismo da mecânica quântica, exige um deslocamento intelectual do eixo epistemológico
para o eixo ontológico da teoria.
A tendência para uma interpretação ontológica da mecânica quântica está claramente
vinculada à formação filosófica de Heisenberg. Não são raras as vezes em que o físico alemão
recorre à filosofia, principalmente à filosofia clássica, como na passagem em que diz que
dificilmente “podemos ocupar-nos de física atômica sem conhecermos a filosofia grega”
(HEISENBERG, 1962, p. 60).
Portanto, quando o físico alemão recorre ao conceito aristotélico de potência –
algumas vezes Heisenberg usa o termo latino potentia – para interpretar a função de onda (ou
a superposição de estados), ele pretende evidentemente fornecer uma compreensão do tipo de
realidade que corresponde aos objetos quânticos, produzindo, assim, uma interpretação
ontológica da mecânica quântica.
Na próxima seção trataremos mais detidamente do conceito heisenbergiano de
potência e discutiremos se ele pode ser, de fato, comparado ao conceito de potência
aristotélico. Por ora, devemos destacar o interesse de físicos e filósofos por uma interpretação
ontológica da teoria quântica. Já citamos o trabalho de Bohm e Hiley (1993). A ele podemos
juntar os de Abner Shimony (1993), Michael Epperson (2004), Henry Stapp (2007), Robert B.
Griffiths (2011), Décio Krause (2011; 2012), dentre outros.
O problema em se definir uma ontologia para os objetos quânticos reside na própria
dificuldade imposta pela teoria. Como há diferentes interpretações para a teoria quântica,
surgem também várias ontologias possíveis. A nossa proposição é que a ontologia da
mecânica quântica não pode mais ser haurida da antiga concepção mecânica da natureza,
sustentada pelo conceito de substância. Nesse quesito concordamos com as considerações
tecidas por Karl Popper, quando ele afirma que
[...] os resultados da física moderna sugerem que devemos desistir da ideia de uma substância ou essência. Eles sugerem que não há uma entidade autoidêntica que se conserve durante todas as transformações no tempo (embora pedaços de matéria ajam assim em circunstâncias “normais”); que não há essência que seja a portadora ou possuidora persistente das propriedades ou qualidades de uma coisa. O universo agora parece ser não uma coleção de coisas, mas um conjunto interativo de eventos ou processos (como foi enfatizado sobretudo por A. N. Whitehead) (1986, p. 7, tradução nossa).