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A Interpretação Psicológica do Kundalini Yoga

No documento Kundalini Yoga e a Psicologia Analítica (páginas 61-66)

Capítulo 2: Jung e o Oriente

2.1. Jung e o Kundalini Yoga

2.1.2. A Interpretação Psicológica do Kundalini Yoga

No quarto seminário, Jung discute a ideia, talvez difícil de ser apreendida por nós, ocidentais, de que muladhara, como a representação do nosso mundo consciente, localiza-se na pelve, abaixo de todos os outros chakras. Assim, para o sistema do

Kundalini Yoga, o processo do despertar de uma supraconsciência inicia-se no mundo

concreto, embaixo de tudo, onde o ego é apenas o embrião do que ainda necessita vir a ser; e para isso, deve subir ao inconsciente e continuar em ascensão até o topo da cabeça, onde se dissolverá no todo completando sua jornada.

Para tentar entender a visão oriental, temos de observar os fatos de outra perspectiva; os hindus veem a humanidade a partir do aspecto suksma52. Conforme Jung

(apud Shamdasani, 1996, p. 61):

O Oriente, especialmente a Índia, sempre tentou entender a psique como um todo, tem uma intuição do Self, e inicia pelo Self; percebendo o ego e a consciência somente como partes mais ou menos secundárias do Self, enquanto que o Ocidente percebe o mundo a partir do ego, a partir do aspecto pessoal.

E ainda:

... o mundo todo da nossa consciência é só uma semente na terra, uma mera potencialidade do futuro... (...) quando você tem sucesso no despertar da kundalini, de modo que ela começa a se mover para fora de sua potencialidade, você necessariamente começa um mundo que é totalmente diferente do nosso mundo; é um mundo de eternidade (op. cit., p.26).

Ou:

Existem Deuses adormecidos que podem nos capacitar, como capacitou pessoas de todos os tempos, a olhar para o mundo de

muladhara de um ponto de vista inteiramente diferente, que permite a

eles até colocar muladhara bem abaixo, na base do tronco, onde as coisas começam. Assim, no grande corpo do mundo cósmico, esse mundo ocupa o lugar mais baixo, o lugar do início. Por isso, o que tomamos (nós Ocidentais) como o auge de uma grande história de grande evolução, seria, na realidade, um berçário, o início. As coisas grandes e importantes estariam bem acima disso, ainda por vir...(op. cit., p.25).

52 Repito aqui a conceituação de suksma e sthula: o aspecto sthula diz respeito às coisas como as vemos,

o mundo concreto. O aspecto suksma seria o que supomos das coisas, as abstrações ou conclusões filosóficas que tiramos a respeito do que foi observado (Shamdasani ,1996). Para Feuerstein (1997),

sthula é o denso, o aspecto mais externo, visível e material de uma coisa; enquanto suksma refere-se ao

sutil, à dimensão interior ou psíquica da existência, que não é visível aos olhos físicos, mas que pode ser experimentada na meditação.

Abaixo, transcrevo um aspecto central do quarto seminário, no qual Jung correlaciona o movimento ascendente da kundalini ao processo psíquico da individuação, e amplia suas reflexões sobre o fato de estarmos aprisionados em

muladhara.

...Através da psicologia ou da filosofia tântrica, podemos observar que eventos supra-pessoais acontecem dentro da nossa própria psique. Olhar as coisas do ponto de vista supra-pessoal é chegar ao aspecto

suksma...

...Nossa vida civilizada é para ser vista como o aspecto sthula dos

chakras superiores, o despertar da kundalini seria então similar ao

entendimento consciente do aspecto suksma.

... Vocês se lembram, por exemplo, do símbolo da água e do fogo? Falamos do mergulho no inconsciente, na fonte batismal de

svadhisthana, e do sofrimento no fogo em manipura. Entendemos que

o mergulho na água e a tolerância nas chamas não é uma descida, não é uma queda para níveis mais baixos, mas uma ascensão. É um desenvolvimento além do ego consciente, uma experiência do lado pessoal no supra-pessoal - uma ampliação dos horizontes psíquicos do indivíduo de modo a incluir o que é comum a toda espécie humana. Quando nós assimilamos o inconsciente coletivo nós não o estamos dissolvendo, mas criando-o.

Somente depois de ter atingido este ponto de vista, após termos tocado as águas batismais de svadhisthana, podemos perceber que nossa cultura consciente, apesar de toda sua eminência, ainda está em

muladhara. Nós podemos ter atingido ajna em nosso consciente

pessoal. Nossa raça, em geral, pode estar em anahata, mas tudo, ainda, somente no lado pessoal. Continua sendo o aspecto sthula, pois só é válido para nosso ego. E enquanto o ego estiver identificado com o Self, ele é apanhado neste mundo, o mundo de muladhara. Mas nós só teremos esta percepção quando tivermos uma experiência que transcenda o ego, então conheceremos a grande extensão da psique e poderemos saber que nosso ego está emaranhado em muladhara. Os símbolos dos chakras nos proporcionam um ponto de vista que se estende além do consciente. Eles são intuições sobre a psique como um todo, sobre as suas várias condições e possibilidades. Eles simbolizam a psique de um ponto de vista cósmico. É como se uma super-consciência, uma consciência divina, examinasse a psique de cima. Visto do ângulo desta consciência tetra-dimensional, nós poderemos reconhecer o fato de que ainda estamos vivendo em

muladhara. Observado desse ângulo nós subimos quando entramos no

inconsciente. No estado de consciência comum nós estamos realmente abaixo, emaranhados, enraizados na terra sob o encanto das ilusões, dependentes, somente um pouco mais livres que animais superiores. Nós temos cultura, mas nossa cultura está em muladhara, podemos desenvolver nossa consciência até que ela atinja ajna, mas é um ajna pessoal, e, portanto, está em muladhara. No entanto não nos sabemos em muladhara, assim como os índios americanos não se sabiam na América. Nosso ajna é pego neste mundo, é uma centelha de luz aprisionada no mundo de muladhara, e quando pensamos, estamos pensando em termos desse mundo de muladhara.

O hindu pensa em termos da grande luz, seu pensamento não começa de um ajna pessoal, mas de um ajna cósmico, seu pensamento começa com o Brahman e o nosso com o ego. Nosso pensamento começa com o individual e vai para o geral; o hindu começa com o geral e desce para o individual. ...Então vemos que estamos sentados em um buraco, e que ao alcançar uma relação com o inconsciente entramos em um desenvolvimento ascendente. Ativar o inconsciente significa despertar o divino, o devi, a kundalini, para começar o desenvolvimento do supra-pessoal dentro do indivíduo, para acender a luz dos deuses.

A kundalini, que é para ser despertada no adormecido mundo de muladhara, é o supra-pessoal, o não-ego, a totalidade da psique, através da qual poderemos atingir os chakras superiores em um sentido cósmico ou metafísico (Jung apud Shamdasani, 1996, p. 63- 68.).

O leitor, assim como eu, pode estar pensando o porquê desta colocação depois de tudo que abordamos até aqui... Como entender que estamos aprisionados em

muladhara “a consciência total de todas as experiências pessoais internas e externas”

(Jung, apud Shamdasani, 1996, p.12), se entramos em contato com o não pessoal através da religiosidade, da musicalidade, da relação com a arte, com os sonhos...? Entendo que Jung refere-se aqui ao comportamento comum do ocidental, ou seja, ao aspecto consciente do coletivo ocidental, e não a cada indivíduo. Assim, podemos nos relacionar com a religião ou com a música ou com a arte apenas em seu aspecto concreto, mas, às vezes, sem que tenhamos consciência, somos tocados pela totalidade que envolve esses elementos. Somente então saímos de muladhara, e nos relacionamos com essas experiências de outra forma, não mais do ponto de vista do ego, mas sim do Todo. Provavelmente, estes são aqueles momentos em que nos sentimos tocados pela vida, abençoados por algo maior...

Alguma coisa atua em certas pessoas domingo de manhã, ou talvez em um dia do ano; na sexta-feira santa elas podem sentir um digno impulso de ir à igreja. Ou, ao invés disso, elas sentem uma necessidade de ir às montanhas, na natureza, onde elas têm um outro tipo de emoção. Algum impulso estranho força-as a fazer algo que não é habitual (Jung apud Shamdasani, 1996, p.15).

O fato de ocidentais cada vez mais se interessarem pelas questões do Oriente, sugere o movimento contínuo e gradual de ampliação da consciência coletiva, que pode nos capacitar, em algum tempo, a retirar o ego do centro de nossa Mandala, e colocar o

Self, assim como já o fazem intuitivamente nossos irmãos orientais.

Desta forma, questiono as afirmações de Jung sobre a não validade das técnicas yogues para um ocidental. Será que não é necessário unir as duas atitudes, extroversão

(ocidental) e introversão (oriental), para chegarmos à Individuação, Iluminação, Salvação? Será que o fenômeno de globalização que todos testemunhamos não seria a força do Self coletivo que “entende” que a humanidade, uma vez diferenciada pelo solo cristão, hindu, judeu, muçulmano..., deve misturar-se novamente para que o processo alquímico de ampliação da consciência progrida? Será que não é hora de nos desenraizarmos para nos enraizarmos novamente em solos mais profundos? Será que dessa miscigenação não depende a evolução da espécie para algo além da nossa imaginação, uma espécie que integraria o ponto de vista de uma consciência cósmica?

Em sua obra Aion (1990, v.IX/2), Jung antevê um novo contexto para a humanidade, entendendo que símbolos do inconsciente coletivo emergem e se manifestam através das ações e da fantasia da espécie, levando à transformação. Assim, Jung propõe que na era de Peixes a psique seja simbolizada pelo peixe, que está contido na água, portanto, a psique é contida pelo Todo, enquanto que na era de Aquário a psique, agora representada pelo aquário, não será mais contida, mas conterá a água, quando então seremos (humanidade) capazes de conter o Todo.

Sugiro assim que continuamos caminhando em direção a evolução da espécie, fenômeno observado através da história: acredita-se que o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens teriam evoluído de um ancestral comum, diferindo em seus aspectos físicos (os neandertais teriam cérebros aproximadamente 10% maiores que os humanos modernos, além de menor estatura e serem mais musculosos), e culturais (teoriza-se que a cultura neandertal teria um forte caráter mágico, além de hábitos noturnos, o que se infere pelas órbitas oculares arqueadas, típicas de animais noturnos). A extinção do homem de neandertal ,há aproximadamente 29.000 anos, não está esclarecida, mas todas as hipóteses baseiam-se no pressuposto de que houve uma competição com o Homo sapiens, que se mostrou mais adaptado (pt.wikipedia.org/wiki/Homem-de-

neandertal) acesso em 18 de junho de 2011. A evolução do Homem é um mistério que

vários braços da ciência tentam desvendar. Anne Dambricourt Malassé é uma paleontóloga Francêsa polêmica, que fala de uma “história interna”, um imperativo evolucionário em todos nós que nos faz evoluir para algo pré –concebido!?:

...A teoria de Anne Dambricourt Malassé centra-se no pequeno osso esfenóide localizado no crânio. Durante milhões de anos, cada mudança no esfenóide tem sido acompanhada pelo surgimento de uma nova família na nossa espécie de primatas. ...Atualmente os estudos indicam que mudanças da posição do esfenóide têm implicado em transformações na capacidade

cerebral e avanços nas capacidades cognitivas e intelectuais.

(HTTP://www.hominides.com/html/references/homo-sapiens-

dambricourt-chaline.php) acesso em 27 de julho de 2011.

Como Jung e muitos outros autores ocidentais e orientais de diferentes áreas de estudo, acredito que a esperança para a preservação de nossa espécie depende de uma evolução em um sentido cósmico, ou seja, através da conscientização de que fazemos parte integrante de um Todo, o que nos traz a questão da responsabilidade ética para com o outro e para com a Totalidade. A energia evoluvionária nos seres humanos (Self,

Kundalini) que opera agora, como operou no passado, a fim de produzir luminares

espirituais, oráculos, profetas, clarividentes, filósofos, poetas, músicos, pintores, eruditos, cientistas e etc., pode nos salvar, nos libertando da ânsia pelo poder que nos leva ,no momento presente, ao risco de eclodirmos como espécie; seja pelas armas nucleares, pela destruição do planeta, pelo consumismo imoderado, pela unilateralidade da consciência e etc... e promover o religamento à ânsia básica de auto-preservação.

Para Gopi Krishna (2004, p.115):

O propósito para o qual o Homem veio está gravado em sua testa, estampado em seu cérebro, impregnado em seu sangue. O que mais almeja o ser humano mediano é a plenitude, a paz, a felicidade, um parceiro amoroso na vida, saúde, boa sorte, respeito aos semelhantes, uma vida longa e um fim pacífico. A ambição imoderada, a fome erótica insaciável, a ânsia sem limites por heroísmo ou liderança, ou um devastador desejo pela fama são apenas um fragmento do caráter. Nenhuma escritura revelada louva tais características, porque estas significam um desvio do modelo de uma personalidade harmoniosamente evoluída.

O objetivo da humanidade retratado pela religião, é de uma natureza superior. Cada homem e cada mulher precisam lutar pelo auto-aperfeiçoamento até que alcancem o reino interior ou a visão de Deus. O propósito é claro. A satisfação das necessidades básicas ou a perseguição do prazer e do luxo não são o alvo da vida humana.

Essas são questões sem resposta que falam de algo por vir, de centenas ou milhares de anos a nossa frente. No entanto, acredito que toda forma de questionamento seja, pelo menos, um carpir da terra para que o símbolo que o coletivo possa trazer caia em terreno fértil. Afinal, a humanidade evolui, e novos símbolos estão tentando se constelar

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