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A intimidade protegida: a dinâmica do velado e do revelado

O conto “Ruídos no forro” apresenta uma experiência vivenciada no seio do espaço doméstico de uma família pobre, que ainda está no início de sua formação. A imagem da casa é construída por dentro e o olhar do narrador conduz o leitor a uma dimensão interna e restrita do espaço habitado, onde se testemunham as dificuldades de um jovem casal de trabalhadores. Através dessa experiência, representada na intimidade de um lar de periferia, pode-se sentir a presença aterrorizadora de forças externas, de ordem social e histórica, que se configuram por uma violência física e psicológica, a princípio extremamente irracional, embora em muitos casos, esteja paradoxalmente

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enraizada em procedimentos racionais, como alguns contos de Scliar demonstram.

Para representar e discutir um mundo em um tempo de intensa violência, como é o caso da segunda metade do século XX – momento histórico, herdeiro de duas guerras mundiais e, em se tratando de Brasil, marcado pelo regime militar –, Scliar utiliza um narrador onisciente, que penetra no espaço habitado da casa para desvelar a experiência sensorial de sujeitos perceptivos comuns, representativos de indivíduos de uma camada social que vive à margem da sociedade. Através da imagem da casa – uma casa simples, pobre e frágil –, penetra-se em um mundo particular para sentir um pouco dos tormentos que afligem esses sujeitos perceptivos representados, em um determinado tempo histórico.

Bachelard (1978, p. 200), discorrendo sobre a imagem da casa, considera sua unidade e sua complexidade. Para o autor, a casa é o lugar do ser humano no mundo. Consiste em um cosmos, um todo que integra o sujeito, e cuja primitividade pertence a todos, ricos e pobres. Ferreira (2013), sintetizando o pensamento de Bachelard, apresenta a seguinte definição:

A casa, primeiro universo do ser humano, é um objeto onírico de fundamental importância numa poética do espaço. Ontologicamente, a casa como um núcleo permanente e como um bem acompanha o ser humano ao longo de sua existência. E no silêncio e na solidão sempre se volta para um outrora que há muito passou, reencontrando a casa nas profundezas de sua alma sonhadora. A casa está nele, e ele está na casa de seu devaneio (p. 35).

A casa, como um espaço que abriga, é uma permanência na vida do ser humano que, no íntimo, também abriga a imagem de uma casa. Em Bachelard, a casa não tem uma única configuração espacial. Todo espaço verdadeiramente habitado traz a noção de casa, pois a imaginação trabalha neste sentido. Em suma, na mais interminável dialética, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua verticalidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos sonhos.

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De acordo com o pensador francês, a casa é o abrigo do devaneio40, protege o sonhador e permite, ao ser abrigado, sonhar em paz. Em outras palavras, a casa é o espaço do sonho e do pensamento, onde o ser humano se abriga do mundo e das intempéries e se prepara para enfrentar a vida. Para Bachelard (1978), a casa é o espaço (espaço/tempo) com o poder de integração dos pensamentos, das lembranças e dos sonhos, unidos pelo princípio do devaneio. Além disso, é possível acrescentar que a casa pode ser o espaço onde o ser humano procura se recuperar dos golpes da vida, dos contratempos, dos desgostos e ilusões. É importante destacar que essa experiência de revigorar- se, no espaço habitado, não é necessariamente uma constante para todo ser humano em todos os momentos da vida, como se observa em “Ruídos no forro”.

Bachelard ainda lembra que a casa é um grande berço. Nela a vida começa bem fechada, protegida, agasalhada. Com isso, a casa revela um valor de intimidade. Essa intimidade é o que o autor chama de intimidade protegida. A sensação de abrigo, de proteção, de segurança, que permite ao sujeito abrigado sonhar e viver o devaneio, se refazendo diariamente, para enfrentar o mundo e seus desafios. O espaço habitado, em equilíbrio e harmonia, constitui um império do indivíduo livre, que domina os cantos e os recantos, estabelecendo suas raízes, desenvolvendo seus afetos, tornando-se mais humano ao vivenciar sua intimidade plenamente no seio do lar.

Certamente, a casa é o espaço em que a maioria dos seres humanos passa a maior parte da vida. A primeira infância, os tempos de criança, a adolescência, a juventude, a vida adulta, a velhice. Cada fase da existência mantém uma relação com o espaço do lar e seus ambientes. Experiências, descobertas e decepções, vitórias e derrotas são realizadas entre as paredes do

40 Ferreira (2013) esclarece que, na concepção de Bachelard, o devaneio resulta do “cogito de

um sonhador e tem como ponto de partida alguma coisa do presente ou do passado. Nasce na solidão, na paz, na tranquilidade de uma alma feliz e sonhadora. Nesse repouso de suprema felicidade e bem-estar, o ser devaneante transpõe todos os limites ocasionados pela estática percepção” (p. 57). O devaneio é um fenômeno natural, de caráter onírico. Implica uma energia criadora de imagens, uma força primitiva do ser humano. Essa força liberta a imaginação, ao contrário do pensamento lógico-formal que, de certa maneira, com suas regras, pode encarcerar a imaginação e, consequentemente, o sonhador.

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espaço doméstico. O espaço torna-se uma extensão do indivíduo, com quem estabelece uma série de conexões através dos gradientes sensoriais, no transcurso temporal da existência no espaço habitado.

De fato, em “Ruídos no forro”, o narrador conduz o leitor ao interior do ambiente doméstico, mostrando a intimidade protegida dos protagonistas. Através desse procedimento narrativo, fica-se sabendo da insônia angustiada desses sujeitos, da atmosfera opressiva, do medo de uma invasão, da reação violenta a uma presença estranha no quarto, da relação sexual depois do momento de tensão, do devaneio sobre um possível filho que se chamará Alonso. Em outras palavras, ao penetrar nesse ambiente, o leitor toma conhecimento sobre a experiência de vida e as condições existenciais desses indivíduos representados. O que era um conteúdo velado – a vida íntima do casal no ambiente doméstico – torna-se um conteúdo revelado pelo procedimento narrativo apresentado no conto.

Desse modo, no cronotopo da casa simples, ou seja, no espaço-tempo constituído para abrigar e proteger o sujeito e sua família – destituído de uma complexidade de cômodos e objetos de valor, e revestido de uma simplicidade material –, o leitor se depara com uma intimidade protegida revelada. Toda ação e sentimento, acontecidos no momento testemunhado, tornam-se um conhecimento do narrador e, consequentemente, dos leitores. Essa intimidade protegida revelada, dialeticamente, implica o seu contrário, uma intimidade protegida velada. A constituição da intimidade protegida implica a reserva dos acontecimentos apenas para quem habita o espaço doméstico e, de maneira parcial, para quem compartilha desse espaço e vivencia esse tempo pessoal.

Deve-se considerar o fato de que uma presença estranha no espaço habitado – que, através de um olhar atento, revela o que estava velado – constitui uma ameaça para a privacidade dos sujeitos e um fator de rompimento para a intimidade protegida. No entanto, o narrador elaborado por Scliar, em “Ruídos no forro”, não constitui um voyeur, sedento de privacidade, que invade e espiona. Pelo contrário, ele revela um quadro, ou melhor, uma cena completa, denunciando as precárias condições de vida dos sujeitos representados. Esse olhar do narrador está impregnado de uma afetividade por seres humanos frágeis. Nessa dinâmica, de desdobramento da intimidade protegida velada para

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uma intimidade protegida revelada, o leitor se depara com dolorosas experiências de vida, no interior do cronotopo da casa.

Seguindo as reflexões do Bachelard (1978), pode-se considerar que, na casa, com o mínimo de equilíbrio, o ser humano se abriga do mundo e das intempéries e se prepara para enfrentar os desafios da vida, como ocorre em “Ruídos no forro”. A casa resguarda uma intimidade, protegendo o ser sonhador. Nela, integram-se os pensamentos, as lembranças e os sonhos, unidos pelo princípio do devaneio. O jovem casal considera a possibilidade de ter um filho. A imaginação trabalha e o sujeito sensibiliza o espaço habitado, na medida em que também é sensibilizado pelo ambiente em que vive.

Deve-se observar que a perspectiva teórica do pensador francês difere da perspectiva de Bakhtin (2010), pois enquanto este autor se concentra na junção dos “indícios do espaço e do tempo”, o que leva à forma textual e ao seu valor estético/discursivo, o outro focaliza a questão psicológica/afetiva, localizada nas profundezas do inconsciente, relacionada às ligações entre o espaço e os sonhos, os pensamentos, as lembranças e os devaneios41 dos sujeitos perceptivos. No entanto, essa diferença de perspectivas não impede que se possam associar as categorias do cronotopo e da intimidade protegida. Pelo contrário, a utilização conjunta dessas categorias permite um aprofundamento teórico consistente e uma análise vertical dos textos de Scliar, geradora de novas categorias.

Nesta pesquisa sobre os contos de Moacyr Scliar, até aqui, combinam-se vários aspectos: a ambientação, os gradientes sensoriais, o sujeito perceptivo, o cronotopo da casa e a intimidade protegida. Nesse processo, percebeu-se que se poderia desenvolver a categoria da intimidade protegida em, pelo menos, mais duas subcategorias: a intimidade velada e a intimidade revelada. A primeira consiste na experiência pessoal vivenciada no segredo do espaço habitado, no interior do cronotopo da casa. A segunda implica o conhecimento dessa experiência pessoal por parte do narrador, que descortina as relações afetivas, as tensões que pulsam no interior do espaço habitado.

41 De fato, Bachelard (1978), enquanto filósofo, realiza um estudo fenomenológico, e não apenas

psicológico, da imagem da casa, buscando encontrar as raízes do valor da intimidade protegida e suas relações com o devaneio poético.

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Para Bachelard (1978), a intimidade protegida é um valor do espaço habitado, ou seja, uma qualidade que a casa (ou o espaço que faça o papel de casa) apresenta, devido à sua utilidade objetiva – abrigando o ser humano – e à sua funcionalidade subjetiva – protegendo e possibilitando o pensamento, o sonho e o devaneio. Essa categoria implica, como revelam as reflexões de Soethe (2007), pelo menos, dois níveis de relações envolvendo os sujeitos representados: os condicionamentos entre o sujeito e o espaço e os condicionamentos entre o sujeito e outros indivíduos e/ou objetos.

Assim, deve-se considerar que o valor da intimidade protegida do espaço habitado é relativo, existindo em função das relações interpessoais e das condições psicológicas e sociais do sujeito representado. Todo espaço que desempenha o papel de casa, para o ser humano, possibilita a constituição de uma intimidade, uma dimensão da existência humana restrita ao indivíduo e aos seus próximos, família e amigos. Essa intimidade será protegida se houver equilíbrio entre os sujeitos que compartilham o espaço, uns com os outros, e entre o(s) sujeito(s) com o espaço habitado, bem como sem a presença de ameaças de qualquer natureza. Ações e fatos internos e externos ao ambiente podem interferir de inúmeras maneiras na intimidade do sujeito, fragilizando ou destruindo o valor de proteção relacionado à casa ou a um espaço equivalente.

Desse modo, uma intimidade velada seria uma experiência reservada do sujeito, vivida no espaço habitado, em relação aos atos perceptivos de outros indivíduos. O que se vive, o que se faz, o que se sente, o que se pensa e o que se sonha, tudo isso está protegido no resguardo de um ambiente fechado. Muros, paredes, quartos, portas e janelas cerradas são véus resguardando a vida íntima dos olhares alheios. A intimidade velada acontece sempre que o indivíduo se recolhe ao ambiente privado da casa, ao centro de proteção do quarto e vivencia a liberdade da solidão. É preciso considerar que toda intimidade protegida é velada, mas nem toda intimidade velada é protegida, já que a proteção que um espaço oferece a um indivíduo está relacionada ao equilíbrio das relações entre as pessoas que compartilham o espaço, bem como entre o sujeito e o espaço habitado.

Como a relação do ser humano com o espaço é dinâmica – um sujeito está constantemente em movimento, no tempo, no espaço e entre pessoas –, a

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intimidade velada, frequentemente, torna-se revelada, por sofrer interferências externas de outros sujeitos e/ou por ser expressa, em diversos graus, através de inúmeras ações, incluindo o fato da linguagem verbal. Assim, a intimidade revelada ocorre sempre que a intimidade protegida velada se converte em um conhecimento, para outros sujeitos que não integram a experiência vivenciada por um indivíduo, no ambiente habitado. O seu dinamismo implica uma gradação. Um fato experimentado na intimidade velada pode ser conhecido por um ou mais indivíduos (incluindo os leitores) e ser desconhecido por outros. Velado para alguns sujeitos e para outros não.

Desse modo, pode-se considerar que, muitas vezes, durante o ato narrativo, a intimidade protegida velada sofre transformações, devido à percepção que se pode ter dos fatos, passando a ser uma intimidade revelada, com o seu valor de proteção enfraquecido ou totalmente desfeito. No caso do conto “Ruídos no forro”, a intimidade protegida velada torna-se revelada, a partir do momento em que o narrador, acompanhado dos leitores, adentra o espaço doméstico e passa a contar o que nele se passa. As pressões exteriores transformam esse ambiente em um espaço tenso, reconfigurando a relação dos sujeitos perceptivos com o espaço, levando-os a vivenciar uma intimidade protegida ameaçada.