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1.2. O espaço dos contos: adentrando no universo das narrativas curtas

1.2.5. O quinto livro: O Anão no Televisor (1979)

O anão no televisor (1979), quinto livro de narrativas curtas do autor porto- alegrense, reúne um conjunto de 19 contos, dentre eles, “ruídos no forro”, objeto de estudo dessa pesquisa. Através dessa obra, percebe-se a consolidação do contista, que amplia e aprimora os temas abordados e os recursos estéticos empreendidos em seu trabalho de contador de histórias. A construção de narrativas insólitas resultou em contos mais sutis, em relação aos livros anteriores: o estranho configura-se no comportamento, nos problemas emocionais, através de doenças misteriosas, de perversões, de decisões pessoais frustrantes, de sonhos/pesadelos, por exemplo. A loucura e os transtornos emocionais são abordados em mais de um texto: “os profetas de benjamim bok”, “ai, mãezinha querida”, “o vidente”, “os amores de um ventríloquo” e “balada de natal”. No decorrer dessas páginas, o leitor se depara com um conjunto de seres arrasados e perdidos, como sugere, simbolicamente, o conto “Navio Fantasma”, texto que fecha o livro.

Esses seres desajustados, embora solitários em certo sentido, no geral não estão desvinculados de outros seres humanos. Surge, então, o tema da família e toda uma série de conflitos relacionados às relações interpessoais, como ocorre em contos como “os profetas de benjamim bok”, “ai, mãezinha querida”, “boa noite, amor”, “os turistas secretos” e “estado de coma”. As vidas de sofríveis trabalhadores, de uma pequena-burguesia, e de integrantes de uma classe alta, vão sendo descortinadas para o leitor, revelando tragédias pessoais.

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A vida conjugal, nesse contexto, implica conflitos e tormentos quase sempre insuperáveis. O conto “ruídos no forro” é um dos pouquíssimos casos, nos contos de Scliar, em que se pode vislumbrar alguma esperança para os protagonistas, um jovem casal recém-casado. A esperança precisa ser conquistada dia a dia, em uma luta constante, cujo oponente não se enxerga, não se sabe quem é, mas paira sobre os protagonistas, ameaçadoramente.

Um dos principais recursos estéticos, apresentados na contística de Moacyr Scliar, a intertextualidade (já mencionada em relação a livros anteriores), também é utilizado em AT. O primeiro conto “os profetas de benjamim bok” já demonstra, em seu título, um vínculo intertextual com a Bíblia. O protagonista dessa história “incorpora os espíritos” de profetas do Antigo Testamento, como “Elias”, “Amós” e “Isaías”. Antes de ser um médium (figura raríssima nos contos de Scliar), Benjamim é um leitor recorrente da Bíblia e um sujeito estranho, emocionalmente problemático. É bem provável que esse personagem seja um sujeito com personalidade dividida, um esquizofrênico. Neste sentido, haveria uma profunda ironia no texto, já que o protagonista seria dotado de uma patologia psicológica e não de um dom ou habilidade para transmitir mensagens de um plano espiritual. Benjamim apenas repete trechos da Bíblia em situações de estresse. Após tratamento psiquiátrico, foge do trabalho e da família, abandonando esposa e filhos, viajando para outro país, isolando-se da vida construída até então.

O conto “badaladas de natal” também apresenta um intertexto com a Bíblia, com o acréscimo de uma atmosfera kafkiana, que lembra O processo, publicado em 1925. O protagonista da história de Scliar está fugindo de uma perseguição policial, em uma pequena cidade. Não se sabe quem é esse sujeito, nem o que fez para ser perseguido. Ele refugia-se na igreja, abrigando-se na torre do sino, conseguindo manter-se oculto da polícia, que o cerca com homens e cães. Como último recurso, o personagem substitui o badalo do sino e passa a viver indefinidamente naquela torre, alimentando-se de pombos e bebendo água da chuva. Sua cabeça, ao bater no sino, produz um som perfeito, mas a dor é intensa. O homem acostuma-se àquela condição, sua cabaça deforma-se, na véspera de Natal, sonha que é o Menino Jesus e os policiais são os Três Reis Magos. Scliar combina o intertexto bíblico com uma situação absurda, revelando

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o desejo de sobrevivência de um sujeito aparentemente inocente, como sugere o sonho, que não se importa em viver isolado do mundo.

Outro detalhe recorrente em o AT é o caráter cíclico de vários enredos. Podem ser incluídos nesse conjunto de textos, com variação de recursos estilísticos, os seguintes contos: “ápice da pirâmide”, em que o reencontro dos personagens é o fator cíclico; “o adivinho”, no qual o comportamento do protagonista se repete anualmente; “uma vaga”, em que a violência diária alcança o seu agente, o protagonista; “rápido, rápido”, o gesto narrativo do início da história repete-se no final, interligando as duas pontas do enredo – “Sofro, sofri”; em “memórias de um pesquisador”, o fato trágico da explosão e a mutilação dos dedos ocorre no início e no final da narrativa. O aspecto cíclico de uma história implica a repetição de um fato, um gesto, um comportamento, um acontecimento. Nos casos extremos, implica uma rotina. Direta ou indiretamente, há um vínculo dessas histórias com o Mito de Sísifo25 e a ideia do eterno retorno. Nesse sentido, os sujeitos representados estão enredados em processos sem fim, condenados a uma rotina, ou uma cadeia de eventos da qual não conseguem se libertar.

Uma outra característica dos contos do livro AT são as narrativas com múltiplos espaços, aspecto recorrente na contística de Scliar. Esse recurso apresenta-se em vários textos: no conto “os profetas de benjamim bok”, a ação ocorre em vários lugares: “casa”, “churrascaria”, “empresa”, “escritório”, “hotel”, “praia”, “clínica psiquiátrica”, “Porto Alegre”, “Santa Catarina” e “África do Sul”. No conto “história porto-alegrense”, a narradora menciona bairros, ruas, praças, igrejas, através de seu deslocamento pelas várias casas em que viveu: a casa dos pais na Cidade Baixa, a casa no bairro dos “Moinhos de Vento”, A casa no bairro de “Petrópolis”, a casa no bairro das “Três Figueiras”, a casa-barco no “rio Guaíba”. Nesses contos, os protagonistas estão sempre em movimento, geralmente, se deslocando sem rumo certo, como ocorre com a protagonista de

25 “... Sísifo, cuja tarefa consistia em rolar uma enorme pedra até o alto de um morro, mas quando

já se encontrava bem avançado na encosta, a pedra, impelida por uma força repentina, rolava de novo para planície. Sísifo a empurrava de novo morro acima, coberto de suor, mas em vão” (BULFINCH, 2002, 321).

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“histórias porto-alegrense”, que termina, à deriva, na corrente do rio. Metaforicamente, os personagens são ilhas em trânsito.

Os contos “O anão no televisor”, “estado de coma” e “navio fantasma” encontram-se entre os textos mais bem-sucedidos da contística de Scliar. Tempo e espaço são trabalhados de forma intensamente expressiva. No conto “O anão no televisor”, o narrador-personagem é um anão que vive dentro de um aparelho de TV, em um luxuoso apartamento do rico Gastão. O anão pode observar tudo o que acontece na sala, através da tela do aparelho, embora esteja confinado a este “recinto”, só podendo sair quando todos os empregados vão embora. Em “estado de coma”, o protagonista permanece 42 anos desacordado, passando uma vida em sono profundo. Em torno de seu leito, desenrola-se a trajetória de sua família, entrelaçada com grandes fatos históricos, como a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial. O conto “navio fantasma” apresenta um protagonista preso em um limbo, onde dias e noites são iguais, envolvidos em um eterno nevoeiro. Esse sujeito encontra-se definitivamente aprisionado, pois, embora sinta os impulsos de vida e o desejo de liberar sua natureza através de sonhos, ele não possui nenhuma saída dessa situação em clima de pesadelo.