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1.2. O espaço dos contos: adentrando no universo das narrativas curtas

1.2.2. O segundo livro: O Carnaval dos Animais (1968)

Como o começo teve falhas, Scliar “recomeçou” com O Carnaval dos Animais (1968)14. O segundo livro reúne uma série de narrativas curtas, injetadas de alta dose de energia atormentadora, como esclarece o próprio escritor, comentando sua obra:

Contos pequenos, num clima fantástico de cruel pesadelo. Não sei se poderia escrever esse livro de novo. Com o passar dos anos, fui aprendendo a não agredir o leitor. Parece que as pessoas precisam mais de ajuda do que de paulada. Não sei. De qualquer modo, a piedade é uma coisa corrosiva (STEEN, 2008, p. 184)

Como pode-se depreender das palavras do escritor porto-alegrense, os contos dessa obra possuem um intenso veio agressivo, amenizado, posteriormente, em outras obras. Para representar um mundo envolvido em violências, a violência precisava ser potencializada esteticamente, de forma extrema. Na primeira versão de CA-I, apenas cinco ou seis contos não tematizam, nitidamente, algum matiz de violência crua e derramada. Nestes casos, se há algum indício de violência, é relativamente sutil, uma presença latente, que só se percebe através de pressuposições, como ocorre em contos como “Bicho”, “Uma casa”, “Compra”, “Pausa”, “Ré” e “O velho Marx”. Os demais contos vertem diversos tipos de agressividade: física, psicológica, individual, coletiva, na infância, na juventude, na vida adulta, na velhice, por motivos amorosos, políticos, econômicos, etc. A violência constitui um dos principais motivos temáticos de CA-I.

Quanto à estrutura da obra, é preciso destacar que esse livro de Scliar estreou com 26 narrativas. O número de narrativas marcantes e bem acabadas foi maior que o do livro HMF, mas nem todas foram consideradas adequadas para permanecerem integrando a segunda edição, lançada em 1976. Esta veio

14 Scliar publicou Tempo de Espera (1964), em parceria com Carlos Stein. Durante esta pesquisa,

não se encontrou exemplares desse livro. Trata-se uma obra pouco comentada, que se tornou um livro muito raro.

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a público modificada15, constituindo, de certa forma, uma nova obra, já que 13 contos foram removidos e 9 histórias inéditas foram acrescentadas. Com isso, aproximadamente 50% do livro foi alterado. Além disso, os textos que permaneceram passaram por algum tipo de revisão e alguns foram reescritos pelo autor16, como ocorreu com o conto “Bicho”, da primeira edição, que retornou na segunda como “Leo”. A principal marca dessa reestruturação de CA-II é a sua divisão em duas partes: “I Parte: Carnaval dos Animais”, com 14 contos, e “II Parte: Outras histórias”, com 9 narrativas, todas inéditas, em relação à primeira edição.

Além disso, os contos receberam uma nova ordenação de sua sequência. Para citar um exemplo, o conto “Os leões” permaneceu sendo a primeira narrativa; e “Uma casa”, que era o décimo quinto texto, na primeira edição, passou a ser o último, o décimo quarto, na primeira parte do livro, na segunda edição. Esse detalhe na ordenação dos textos criou um efeito de sentido interessante: o livro abre com uma explosão nuclear, no primeiro conto, envolvendo uma coletividade, e encerra com um texto que aborda o indivíduo em uma viagem de autoconhecimento e renovação, através de um sonho. Esse detalhe é fundamental para o desenvolvimento de uma das categorias analíticas desenvolvidas nesta pesquisa, como se verá adiante.

Dos 13 contos removidos, nem todos o foram por razões estéticas, como é o caso de textos como “O Dedo de Deus” e “Joel à Beira da Morte”, ambos com um tom didático17 insistente e pouco artístico. Cinco textos de explícito teor político foram retirados na segunda edição de CA-I: “cinco anarquistas”, “começo e fim”, “jamil e joel"; “ordem” e “comunistas”18. Destes, apenas “joel e jamil”

15 Ver a tabela comparativa de edições de O Carnaval do Animais, em anexo.

16 Não é o objetivo desta pesquisa analisar essas alterações. Os contos do livro O Carnaval dos Animais objetos de estudo nesse trabalho são os da segunda edição, que apresentam os textos definitivos.

17 Bosi (2003), define tom, em literatura, como “as modalidades afetivas da expressão. O tom

está relacionado ao ethos e ao pathos do discurso, na retórica antiga. “O ethos de uma obra seria algo como o seu caráter, o qual, por sua vez, pode passar por diversas modulações e flexões de pathos”. Já a perspectiva é “o inteligível cultural da mensagem artística, o lugar social e histórico de onde o sujeito fala. Assim, “mediante a perspectiva, a trama da cultura entre na escrita. Pelo tom é o sujeito que se revela e faz a letra falar” (p. 495-469) (Grifos do autor).

18 O conto “cinco anarquistas” foi incluído na antologia Contos Reunidos (1995), embora tenha

sido suprimido definitivamente das edições de CA, a partir da segunda edição. Certamente, essa exclusão não foi por motivos estéticos, como pode ser o caso do conto “jamil e joel".

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parece artisticamente insuficiente para provocar o leitor de algum modo, através da comoção ou da revolta. Os demais poderiam permanecer no livro sem prejuízo para obra, porém foram retirados, possivelmente, por razões temáticas e políticas, já que, no período histórico da publicação, o Brasil era governado por um regime militar. Como exemplo do teor político dessas narrativas, veja-se um trecho do conto “ordem”:

O Governador Social tomou a seguinte medida: por um decreto obrigou as pessoas a ir, uma vez por mês, ao cemitério para fazer um piquenique.

“Devemos nos acostumar com a morte”, declarou o Governador Social a um repórter, e “O pensamento da morte é o início de tôda a disciplina” (SCLIAR, 1968, “ordem”, p. 38)

Está claro, nesse texto, o caráter revelador que aponta, ironicamente, para o abuso de poder do “Governador Social” (um ditador). Fazer piquenique no cemitério é algo terrível, pois juntaria duas questões opostas, como o lazer e a morte (o espaço do cemitério é usado em uma estratégia ameaçadora). No entanto, o poder estabelecido precisa manter a “ordem” (e o progresso) de sua gestão e o povo deve seguir essa ordem sem questionamentos, disciplinado, pois o caminho alternativo é a destruição. Scliar está representando esteticamente (debatendo, questionando, revelando) sobre o regime político do Brasil daquele momento histórico, dos anos 1960. Com isso, esses textos confrontavam diretamente o regime militar, o que consistia em um gesto muito perigoso na época.

O livro CA-I destacou-se, para crítica, pela forte presença do estranho, como uma de suas características mais recorrentes. De modo variado, o insólito surge em boa parte das narrativas. Há uma série onírica de textos, que envolve o sonho, o pesadelo e o delírio: “Coelhos” (Alice e o marido vivem em uma mansão de atmosfera tenebrosa), “Uma casa” (O homem vivencia um sonho de esperança em sua casa nova), “Bicho” (Joel, febril, pesca um peixe estranho através da brecha da porta do galpão trancado, atrás de casa) e “Pausa” (Samuel, em um pequeno hotel portuário, sonha sendo perseguido e trespassado pela lança de um índio).

Próxima a esta série, há uma outra que envolve os devaneios infantis: “Ao mar” (Joel viaja pelos mares de um quintal alagado pela chuva), “O dedo de

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Deus” (Joel adquire o poder de matar apenas apontando um dedo) e “Joel à beira da morte” (Joel encolhe por não comer o arroz que sua mãe lhe prepara). Nessas histórias, observa-se a capacidade criadora da imaginação infantil. Há ainda uma série de textos com personagens animais19 em situações peculiares: “Os leões” (Os leões, na África, são dizimados por serem considerados uma ameaça), “A vaca” (A vaca Carola será devorada lentamente por um marinheiro em uma ilha deserta), “Cão” (O minúsculo cão japonês é uma máquina exterminadora de seres humanos) e “As ursas” (As ursas são um poder sobrenatural manifestado pela maldição de profetas). Nestes contos, destaca-se uma possível elaboração alegórica dos textos, o que afetaria o elemento fantástico, segundo Todorov (2014). Em alguns casos, o animal é representado com mais humanidade que os próprios indivíduos, que, por sua vez, são extremamente brutalizados, como acontece no conto “A vaca”.

Há também uma série de situações e personagens estranhas: “Shazan” (o Capitão Marvel se aposenta e vem para o Brasil), “Canibal” (Angelina pratica o autocanibalismo), “Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade” (Um implacável pistoleiro, cinematográfico, deixa-se matar por se compadecer do adversário), “Re” (Um homem, com a concessão do Anjo da Morte, vê sua vida voltar no tempo até a sua condição de moléculas espalhadas no universo) e “O velho Marx” (Cansado, Karl Marx abandona sua vida de intelectual na Europa e vem para o Brasil para tornar-se um capitalista bem sucedido). Evidentemente, essas classificações que aqui se propõe não são definitivas. Elas servem para uma primeira aproximação da obra. O que de fato pode-se constatar é que, desde o início da carreira, Scliar demonstrou ser um escritor experimentador de formas e temas, através de seus contos, explorando a criatividade e buscando os recursos mais eficientes para alcançar o leitor.

Em relação aos contos inseridos na segunda edição de CA-II (1976a), temos 9 textos com temática diversificada. Um primeiro detalhe que chama a atenção, é o fato desses novos contos não abordarem, explicitamente, nem uma espécie de animal, como o título do livro sugere. O principal veio temático recai

19 Esses personagens carecem de um estudo que investigue a simbologia dos animais na cultura

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sobre as relações humanas em várias épocas da vida. Há uma série de contos que tematizam a infância: “Trem fantasma” (Matias tem leucemia e o seu sonho seria andar de trem fantasma); “O dia em que matamos James Gagney” (Um grupo de garotos torce para a morte do protagonista de um filme, um anti-herói); e “Carta de navegação” (O narrador relembra a infância e o desparecimento de um pequeno garoto no rio Guaíba). Entrelaçados ao tema da infância encontram- se nesses contos outros temas importantes como a família, a imaginação, o devaneio, a doença, a morte e a perversidade.

Há outra série de narrativas que aborda a loucura ou a obsessão: “Reino Vegetal” (Uma filha, jovem, cuida da mãe com problemas mentais); “Ecológica” (A narradora acredita ser uma árvore e se nega a retornar para casa com os pais); “Alô, Alô” (Uma mulher muito religiosa apaixona-se por um colega de trabalho ateu, criando um conflito entre crença religiosa e sentimentos afetivos); e “O doutor Shylock” (Um médico, obcecado, realiza procedimentos cirúrgicos sem derramar uma gota de sangue). Nessas histórias, o ser humano, com frequência, apresenta algum traço de anormalidade que revela sua condição de indivíduo estranho. Esses aspectos interferem e impossibilitam as relações interpessoais, prejudicando principalmente a instituição familiar.

No entanto, isso não significa dizer que Scliar apresenta uma visão negativa da família. O conto “Trem fantasma” constitui um exemplo claro de que a família é tematizada como um fator importante na vida e morte do indivíduo. Os pais, irmão e irmãs, bem como o melhor amigo (o narrador que relembra os fatos), recriam um ambiente típico de parques de diversão, um trem fantasma, para realizar o sonho de Matias, gravemente doente. Com isso, demonstra-se que a família e os laços sinceros de amizade, mesmo em uma situação extremamente delicada, diante da morte inevitável de um garoto, podem propiciar uma felicidade extraordinária. De uma situação dramática, Scliar recolhe a energia positiva de sentimentos grandiosos, como amor e amizade.

Por sua vez, os contos “Comunicação” e “Antes do investimento” destacam-se como textos específicos, do ponto de vista temático. O primeiro, parece ser o conto mais frágil esteticamente, pois, apesar de apresentar um tom de comicidade, que tenta revelar a angústia que surge quando se perde uma ligação telefônica e precisa-se retomá-la urgentemente, a brincadeira com os

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números para o cálculo do tempo no final da história tende a um efeito dispersivo para a leitura. Já o segundo conto é bastante sugestivo, artisticamente. Dois viajantes miseráveis tentam pegar carona cladestinamente em um vagão de trem, mas acabam sendo descobertos. Enquanto dialogam, cria-se um clima mórbido que envolve o vagão e a cidade em que se encontram. Há a sugestão de que trabalhadores são explorados e mortos naquele lugar. A cidade não é nomeada nem descrita, mas configura-se uma presença latente e assustadora.