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2 NOS FIOS DA MEMÓRIA: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.3 A TRAJETÓRIA MÉDICA

2.3.1 A introdução na vida profissional

Octávio de Freitas narra que voltou para o Recife, em 1893, para iniciar a sua atuação profissional. Recebeu várias propostas para permanecer pela região sul ou sudeste, para dar início a sua prática médica, entretanto, recusou todos os convites, incluindo o do Professor Francisco de Castro para permanecer no Rio de Janeiro, que, além de diretor da Faculdade de Medicina, era Inspetor geral da Saúde Pública na capital federal. Devido ao falecimento de seu pai e ao sentimento de vínculo, que ele enfatiza ter criado por Pernambuco, decidiu voltar ao Recife para permanecer ao lado de sua mãe, Teresa Carolina da Silva Freitas, e ingressar na carreira médica.

A bordo do vapor São Salvador, vários recém-formados voltavam para as suas cidades de origens e todos discorriam sobre os respectivos planos para o futuro. O jovem médico então argumentou: “Eu disse-lhes muito convencido, serei antes de tudo médico. E quanto possível, procurarei exercer a medicina preventiva. Médico de saúde, de preferência a medico de doença”69. Tal relato demonstra suas intenções em cristalizar seu papel como sanitarista, elemento esse presente nos textos escritos por seus memorialistas, que enfatizam que a medicina preventiva se constituía do norte de sua atuação profissional70.

67 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da república no Brasil. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990. p. 14.

68 BRITO, 1995, p. 17.

69 FREITAS, 1940, p. 95.

70 FREITAS, Celso Arcoverde de. Octávio de Freitas na Saúde Pública. In: TÁVORA, José Geraldo et

Freitas afirma que não recorda muito bem do seu primeiro cliente e hesita entre vagas lembranças. Recorda de um homem muito alto que morava nos arredores do bairro de Campo Grande e que o atendeu no início do ano de 1893, ao mesmo tempo em que hesita entre a lembrança de uma criança que morava num casebre no bairro do espinheiro, ou um rapaz de 16 anos que morava no palácio Suassuna, no bairro do Pombal, local esse, em suas palavras habitado por “catimbozeiros”71. A partir desse discurso denotamos a construção de um lugar de verdade pautado na ciência e que começa a olhar com estranheza as ditas práticas populares, ou seja, consideramos que Octávio empreende uma luta pelo monopólio da competência científica.

Nas palavras de Bourdieu, o que está em jogo no campo científico seria a disputa pelo monopólio da autoridade científica. Desse modo, é preciso esclarecer que o processo de legitimidade científica é também composto por um conjunto de interesses, que inclusive podem ser oriundos das demandas de outros campos72.

De forma quase anedótica relata sobre seu primeiro dia de consultas no seu gabinete, na Rua do Bom Jesus, no Recife, número 55. Freitas colocou 12 cadeiras e um sofá na sala de espera que ele sonhava em estar lotado. Ironicamente ele descreve que quando chegou para o seu primeiro dia como médico já havia quatro pacientes à sua espera:

Imagina tu, caro amigo, que o primeiro consulente vinha oferecer-se para ser meu cobrador, o segundo queria, a fina força, vender um bilhete de loteria; o terceiro solicitava uma esmola por menor que fosse; e o quarto o mais cruel de todos, um fiscal filauscioso e arrogante, vinha prevenir-me que ia ser multado por ter colocado a minha placa de médico no portal, sem prévia licença da prefeitura73!

Apesar dos entraves nos primeiros dias de sua atuação profissional, Octávio teve inúmeros pacientes pobres atendidos em domicílio, que, apesar de não puderem pagar pela consulta, esses indivíduos, na sua visão, proporcionaram-lhe aprendizados importantes na prática médica de um recém-egresso da Faculdade de Medicina. No

71 FREITAS, Octávio de. Meus doentes, meus clientes. Recife: Imprensa industrial, 1923. p. 11.

72 BOURDIEU, Pierre. Sociologia. Org. Renato Ortiz; trad. Aula Monteiro e Alícia Auzmendi. São Paulo:

Ática, 1998.

atendimento que fazia em domicílio ele se utilizava como meio de transporte o bonde e em vários momentos necessitou realizar longos percursos caminhando. Dessa maneira, Freitas revela a construção de si como um homem simples e desprendido de bens materiais. Em um de seus escritos de cunho memorialístico ele narra os obstáculos encontrados na vida recém-egressa do curso médico:

Sete horas da noite chego em casa morto de fadiga. Ah! quanto eu trabalhara eu naquele dia!

Em casa me aguardavam visitas de amizade da minha família, que estavam justamente elogiando as vantagens da minha profissão, na qual havia lugar para todos “ganharem muito dinheiro e com máximo de independência”. -Bravos disse uma delas quando me viu. Este que é um homem feliz começou ontem a vida prática e já não tem mãos a medir. Em breve estará capitalista!... E eu sorridente e feliz com aquelas manifestações que me envaideciam, apalpei a minha carteirazinha nova, onde não entrara um só real naquele dia, e fiz um gosto meio de importância, meio de usura…

São estes os louros e os lucros do médico que vai iniciando na clínica74.

Assim, ao narrar o retorno a Recife, Octávio revela o quanto é difícil o processo de negociação para integrar-se à carreira médica, delineando aspectos da medicina sem “romantismos”. Ao longo do ano de 1893, diante da situação financeira difícil, ele relembra que tentou, sem sucesso, um emprego que lhe possibilitasse uma estruturação financeira. Diante da respectiva situação ele aceitou a proposta de seu amigo Florentino Santos para se aventurar no atendimento médico na Vila Amaragy. Essas redes de amizades evidenciam com quais estratégias ele se utilizava de seu capital social75 para se inserir no interior do campo da medicina científica.

No atendimento do seu primeiro cliente, o médico recém-chegado já conquistou fama ao curar um reumatismo de maneira rápida e eficaz, diante da prerrogativa que já haviam sido ministrados vários remédios pelos farmacêuticos da localidade76.

74 FREITAS, 1915a, p. 109-110.

75 Nos ancoramos no conceito de capital social definido por Bourdieu como “O conjunto de recursos

reais ou potenciais que estão ligados à uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento mútuos, ou, em outros termos à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente dotados de propriedades comuns (passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros e por outros mesmo), mas também que são unidos por ligações permanentes e úteis”. BOURDIEU, Pierre. O capital social: notas provisórias. In: CATANI, A. & NOGUEIRA, M. A. (Orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 67.

Octávio aponta que, apesar de sua fama se alastrar pela cidade como um bom médico, ele não permaneceu muitos dias naquela Vila, visto que, ao lhe ser oferecido um passeio a cavalo ele na hora de montá-lo caiu do animal e se machucou de forma brusca. Diante disso, percebeu que não conseguiria ser médico naquela região, utilizando tal meio de transporte; decidiu, então, regressar para a capital pernambucana.

O tempo passou e o jovem médico não conseguiu obter retorno financeiro. Desse modo, decidiu ir para a Europa por intermédio de um colega, na função de médico de bordo de um navio da Companhia Mala Real Portuguesa. Em outubro de 1893, ele partiu a bordo do paquete Rei de Portugal. Ao aportar em Lisboa, os tripulantes foram informados que a companhia havia falido, de modo que todos as pessoas que haviam trabalhado durante os dez dias de viagem não puderam receber pelos devidos serviços prestados. Com poucos recursos, Octávio decidiu ainda permanecer alguns dias em Lisboa e chegou a conhecer a cidade de Madrid. Nesse período, desfrutou do carnaval Lisbonense e visitou hospitais e teatros. Na sua estadia em Paris conheceu clínicas e hospitais e visitou o instituto Pasteur, regressando a Recife em fevereiro do ano seguinte.