• Nenhum resultado encontrado

2 NOS FIOS DA MEMÓRIA: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.3 A TRAJETÓRIA MÉDICA

2.3.4 Traços eugenistas

Encontramos no pensamento de nosso personagem a presença da eugenia. Essa teoria, criada por Francis Galton, em 1883, influenciou os intelectuais e cientistas brasileiros do início do século XX. O respectivo conceito defendia o melhoramento da raça, na perspectiva de produzir seres mais evoluídos, seja física ou mentalmente. Ao recordar sobre suas ações enquanto higienista, Freitas a firma que

Evitamos a varíola, a raiva, a difteria e outras pelas vacinas; nos acautelamos contra as viciações dos meios, contra os excessos de trabalho impedindo o aparecimento da tuberculose e outros males consultivos; procuramos

melhorar a raça pela eugenia129.

A partir do trecho acima fica evidente que higienistas e evolucionistas cooperaram para a biologização da sociedade. Os higienistas receberam influência direta da teoria de Lamarck, elaborada no século XVIII, conhecida como a lei dos caracteres adquiridos. Essa teoria postulava que o meio ambiente e o comportamento contribuem para os caracteres hereditários; dessa forma, os higienistas se aproximaram desse conceito para formular políticas sanitárias130.

Foi na cidade de São Paulo, em 1917, onde emergiram as primeiras organizações eugênicas brasileiras. O nome de Renato Ferraz Kehl é considerado como o personagem principal responsável por articular esse movimento, que culminou com a criação da Sociedade Eugênica de São Paulo. Tal instituição atuou por meio de reuniões, palestras e propagadas, no entanto, sua existência perdurou somente até 1919. Todavia, posteriormente o movimento eugenista se rearticulou no Rio de Janeiro vinculando-se à atuação da Liga Brasileira da Higiene Mental, fundada em 1922.

Lilia Schwarcz, ao analisar a produção intelectual durante o período de 1870 a 1930, tomando como base os estudos de diferentes instituições, aponta que é possível

129 FREITAS, 1923, p. 6.

130 DIVAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto,

2007. Ver também: STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

delinear como cada órgão tentou responder à problemática da miscigenação e ao futuro da nação, que implicaria na construção de uma identidade nacional. A pesquisadora investigou essa prerrogativa nos Institutos históricos, nos museus etnológicos, nas faculdades de direito e medicina, que estavam sendo implantadas no século XIX131.

Diante disso, o discurso médico, de fins do século XIX e início do XX, estava inserido no contexto de conflitos de projetos dos saberes profissionais, na medida em que implicava na construção de visões sobre o futuro da nação. Para a medicina era necessário curar o país enfermo, a partir de uma concepção eugênica na elaboração de uma população sadia e livre de imperfeições.132.

Em linhas gerais, as prerrogativas da teoria eugênica encontraram terreno fértil dentre diversos intelectuais brasileiros, seja de forma explicita ou implícita, em diferentes mecanismos de comunicação, como analisa Nancy Stepan:

De acordo com uma bibliografia sobre eugenia elaborada por Kehl (1933), entre 1897 e 1933, 74 importantes publicações sobre eugenia apareceram no Brasil. Sua lista deixa de fora muitos livros e panfletos sobre temas eugênicos (como livros sobre higiene mental, por exemplo, bem como muitos periódicos influenciados pela eugenia). A bibliografia de Kehl incluía 24 teses de alunos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, por exemplo, mas deixa de fora sete outras teses surgidas entre 1919 e 1937 na Escola de Medicina de São Paulo em cujos títulos indicava-se especificamente a ‘eugenia’. Na verdade, Kehl representou de forma literal toda a produção cultural do Brasil sobre a eugenia, deixando de lado [...] muitas obras que não se enquadravam em sua definição de eugenia, como por exemplo, alguns dos escritos de Octávio Domingues133.

Em vista disso, uma obra que nos possibilita visualizar com maior clareza a aproximação de Octávio com teorias raciais é o Livro Doenças Africanas no Brasil134, publicado em 1935 pela Companhia Editora Nacional. Essa obra foi realizada a convite de Gilberto Freyre para compor o quadro de estudos para o I Congresso Afro-

131 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil

(1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 132 Ibid.

133 STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego.

Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina. Rio de Janeiro:

Fiocruz, 2004. p. 342.

Brasileiro, que ocorreu entre os dias 11 e 16 de novembro de 1934, no Teatro de Santa Isabel, na capital pernambucana.

O Diário de Pernambuco publicou uma nota divulgando a publicação do livro de Octávio e evidenciou seu prestígio nesse veículo de informação com as seguintes palavras:

O nosso antigo colaborador sr. Octávio de Freitas a quem muito se deve o

desenvolvimento da ciência médica entre nós, autor de diversas monografias sobre assunto de higiene acaba de publicar um trabalho dos mais vivo

interesse documentário “Doenças africanas no Brasil135”.

Octávio trabalha com a tese de que várias doenças introduzidas no Brasil foram originárias do continente africano, a partir da população escrava; essas doenças encontrariam aqui condições propícias para proliferar devido ao clima semelhante. Aborda que o Brasil era elogiado pelo cronistas e viajantes, citando Jean de Lery, Padre Manoel da Nóbrega, Pedro de Gandávo, dentre outros, como uma terra salubre antes da chegada dos europeus, que trouxeram inúmeras doenças, até então desconhecidas entre os nativos. Ele cita vários autores que falam sobre a saúde em Pernambuco, nos tempos coloniais, e aponta que o clima da cidade do Recife era elogiado em relação às influências endêmicas, que, quando atingiam outros países assumiam outras gravidades. Assim, constatamos que ele se impregna de uma visão eurocêntrica para fazer um quadro nosólogico das doenças no Brasil. O higienista concorda com a visão de que os nativos eram poucos obedientes ou preguiçosos e que os negros africanos trazidos para o Brasil, durante o período colonial, eram mais aptos a suportar a duras jornadas de trabalho. Considera a colonização como “a grande culpada dos maiores males e desconcertos sanitários porque ele passou, nos seus tempos coloniais”136.

Nessa obra, Octávio apontou a escassez de fontes para a pesquisa sobre as condições de saúde do país, nos primeiros anos de colonização. Ele cita as Crônicas

135 DIÁRIO de Pernambuco, Recife, n, 49, anno 111, 28 fev. 1936. Várias, p. 3. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 15 fev. 2017. (Grifos nossos).

da Companhia de Jesus do Estado do Brasil e as primeiras epidemias, logo após o contato com os Europeus:

Eu sei e proclamarei bem alto que não foi ele o culpado desta infestação de nossas terras, pelas doenças de que foi portador involuntário, e sim os que, por cobiça e por interesse pecuniários, conduziram atabalhoadamente os pretos africanos para as nossas pragas, sem exame prévio de suas condições de saúde e sem o menor cuidado. E isto é, com maior franqueza que declaro137.

O higienista realizou um inventário das doenças que ocorriam no continente Africano e que se apresentaram no novo mundo: as boubas, o gandu, a frialidade, bicho da Costa, ahium, o bicho dos pés, disenteria mansoneana, alastrim, fliarias e mosquitos africanos. Ele se utilizou como fonte de pesquisa os tratados médicos, teses das faculdades de medicina e manuais de médicos.

Havia uma dificuldade na documentação em relação às descrições das doenças, diante da problemática de que o conhecimento médico, que se tinha durante o século XVIII e boa parte do XIX buscava destacar os sintomas e os diagnósticos que eram bastantes imprecisos138. Octávio destaca essa problemática em uma das doenças em que aborda:

Eu nunca tive conhecimento de enfermidade que possuísse maior, ou mesmo tanta fartura de nomes para designá-la. Frialdade, opilação, cansaço, inchação, amarelão, cachexia, africana e quantos outros termos populares eram denominações que lhe davam, baseados quase somente num sintoma ou noutro, observados nos vitimados por esta implicantíssima doença, cujos portadores ainda, estigmatizam com os nomes de opados, empalamados ou amarelados de Goyanna, último apelido este de frequente uso, até pouco

tempo, na cidade do Recife139.

Consideramos que Octávio de Freitas ao mesmo tempo em que se aproxima de teorias raciais, em outros momentos lança mão de uma flexibilização sobre essas teorias e eleva a importância do ambiente; no entanto, não perde o horizonte de suas

137 FREITAS, 1935, p. 30.

138 FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. As doenças dos escravos: um campo de estudo para a história

das ciências da saúde. In: CARVALHO, D. R.; CARVALHO, D. M.; MARQUES, R. C. Uma história

brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. 139 FREITAS, op. cit., p. 88.

análises relacionando-as às questões raciais, mesmo que em alguns trechos de sua narrativa ele destaque os elementos sociais, como exemplo, ao dizer:

Doença sobretudo peculiar ao povo baixo, aos ‘sem sapatos’ aos

trabalhadores rurais, aos plantadores de cana-de- açúcar, é ela muito mais frequente nos homens que nas mulheres. Isto devido antes às condições de vida ou, melhor, à profissão exercida pelos homens, que a qualquer outro motivo140

Octávio cita os estudos de Artur Neiva e Belisário Penna141 para refutar a crença de uma anemia fisiológica própria de populações de climas tropicais. Ainda aponta os trabalhos que a Fundação Rockefeller vinha fazendo no saneamento das zonas rurais no Brasil, mapeando as estatísticas das verminoses, a partir da realização de exames nas populações afetadas, verificando que cerca de 92% da população examinada estava contaminada com ovos de vermes, em suas respectivas fezes. A partir destas evidências Freitas concluiu suas análises sobre a frialidade com o seguinte fechamento: “Diante deste número de indivíduos anemiados em consequência das infestações pelos nematóides, associados tantas vezes aos helmintos, para que nos iludirmos com uma anemia essencial, atribuída, falaciosamente aos calores tropicais142

Abordou ainda sobre a frialidade e o estereótipo eternizado na obra literária de Monteiro Lobato:

Pouco a pouco se vai debuxando neste tipo de indivíduo o tipo clássico do Jeca Tatu, tão bem descrito por Monteiro Lobato, que apenas se esqueceu de focalizar, com exatidão e para diminuir um tanto a responsabilidade de nossas terras, o seu berço de origem.

Com efeito, este Jeca não seria absolutamente o representante do nosso sertanejo ou do nosso matuto, se o mal trazido do continente negro não se tivesse nele introduzido, inclementemente, pela ignorância e pelo descuido dos colonizadores143.

140 FREITAS, 1935, p. 89.

141 Cf. PENNA, Belisário. Saneamento do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro, 1923.

142 FREITAS, op. cit., p. 113. 143 Ibid., p. 89-90.

Acontece que muitas das pesquisas apresentadas no I Congresso Afro-brasileiro possuíam uma posição ambígua; mesmo alguns intelectuais, ao se utilizarem do conceito de cultura, em substituição aos fundamentos biológicos da raça, ainda lançaram mão da noção de superioridade em relação à raça ou à cultura144.

De fato, o período entre guerra foi marcado de muita instabilidade, ocorrendo graves crises econômicas, como a queda da bolsa de Nova York, em 1929, que gerou desemprego, violência e inúmeras agitações sociais. Os argumentos ideológicos, eugênicos e racistas articulados pelos nazistas, influenciaram também os intelectuais e a imprensa brasileira. Ao mesmo tempo realizava-se no Recife o Congresso Afro- brasileiro, idealizado e organizado por Gilberto Freyre, que à sua maneira, procurava abordar os aspectos positivos da miscigenação.

Em vista disso, o posicionamento de Freitas nessa obra pode ser entendido dentro do quadro teórico em que as ideias raciais estavam circulando entre os cientistas e intelectuais no país. Dessa maneira, apresentou, no dia 14 de novembro de 1934, um texto resumindo as doenças africanas no Brasil, que viria a ser publicado posteriormente em formato de livro sob o título de Doenças africanas no Brasil145.