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A invalidade decorrente do próprio contrato

Capítulo II – A invalidade do contrato administrativo.

2. A invalidade quanto ao momento do vício

2.2. A invalidade decorrente do próprio contrato

A invalidade do contrato administrativo assume, como se referiu, um carácter dual, reportado ao momento ou, fase do procedimento, em que se originou o vício que afecta o contrato. A invalidade que decorre do próprio contrato é aquela que não está associada a qualquer vício de um acto do procedimento pré-contratual, mas antes que é originada pelo próprio contrato, em caso de violação de um qualquer padrão de con- formidade.

i) Fundamentos

A invalidade originaria do contrato administrativo encontra-se regulada no ar- tigo 284.º do CCP, que dispõe o seguinte:

“1 - Os contratos celebrados com ofensa de princípios ou normas injunti- vas são anuláveis.

2 - Os contratos são nulos quando se verifique algum dos fundamentos previstos no presente Código, no artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo ou em lei especial, designadamente:

a) Os contratos celebrados com alteração dos elementos essenciais do caderno de encargos e da proposta adjudicada que devessem constar do

respetivo clausulado;

b) Os contratos celebrados com aposição de cláusulas de modificação que violem o regime previsto no presente Código quanto aos respetivos limi- tes.

3 - São ainda aplicáveis aos contratos públicos as disposições do Código Civil relativas à falta e vícios da vontade.”

A organização deste preceito, à semelhança do artigo 283.º do CCP, acolhe a divisão entre as causas de nulidade e anulabilidade, conforme o tipo de vício que afecte o contrato. Tratando-se de vícios próprios do contrato, estes poderão decorrer da violação de vários tipos de requisitos, sejam estes relativos às partes do contrato, a exigências formais e procedimentais ou a exigências materiais107. Parte do elenco des- ses vícios é já adiantada pelo legislador do CCP, quando este remete para as causas de nulidade do acto administrativo, previstas no artigo 161.º do CPA e quando remete para o regime de Direito Civil relativo à falta e vícios da vontade, cuja regulação se encontra prevista nos artigos 240.º a 257.º do CC.

O número 1 do artigo 284.º, ao invocar a violação de normas e princípios in- juntivos108, estabelece a regra geral em matéria de invalidade própria do contrato administrativo: a da anulabilidade. Consagra-se, assim, a aproximação ao regime geral da invalidade do acto administrativo109, constante do número 1 do artigo 163.º do CPA110.

Esta opção pela paridade com o regime do acto administrativo não se verifi- cava, no anterior regime, em relação a todos os contratos111. Com efeito, o anterior

107 Veja-se, a respeito dos vários tipos de vícios originários do contrato, e por todos, o quanto refere PEDRO

GONÇALVES. No que diz respeito à violação dos requisitos subjectivos associados ao contraente público, os vícios do contrato poderão advir da falta de atribuições, da incompetência do órgão contratante para dispor sobre o objecto do contrato e da falta de legitimação devido a uma situação de impedimento do titular daquele órgão. Relativamente ao co-contratante, os vícios do contrato poderão advir da sua incapacidade para contratar, de uma situação de impedimento à participação no procedimento, à falta de vícios da vontade etc. Relativamente à violação das exigências formais a que o contrato também está subordinado, aponta o Autor os exemplos da falta de redução do contrato a escrito e a falta de menções obrigatórias no clausulado do contrato. Por fim, e quanto à matéria relativa a vícios substanciais ou materiais, estes, enquanto categoria naturalmente mais ampla, encontram-se associados a violações operadas pelas próprias cláusulas do con- trato, a regras ou a princípios jurídicos. PEDRO GONÇALVES, Direito dos Contratos Públicos, Almedina, 2015, pp. 606 e 607.

108 Não se concorda, no entanto, com a não equiparação dos princípios a normas jurídicas que se subentende

no preceito.

109 Neste sentido, vide ALEXANDRA LEITÃO, Lições de Direito dos Contratos Públicos. Parte Geral,

AAFDL, 2014, p. 271.

110 A previsão normativa deste preceito já se refere, em nossa opinião correctamente, a princípios ou outras normas, equivalendo os princípios jurídicos à categoria de normas.

111 Falando, precisamente a este respeito, do “(…) cunho fortemente administrativista do CCP relativa- mente ao antecedente regime do CPA (…)”, veja-se JOÃO PACHECO DE AMORIM, A invalidade e a

(in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, in Estudos de Contratação Pú-

artigo 185.º do CPA, remetia, na sua alínea b) do número 3, o regime da invalidade dos contratos administrativos com objecto passível de contrato de direito privado112 para o regime do CC – artigos 280.º, 281.º e 294.º do referido Código. Por força desta remissão, ficavam estes contratos sujeitos ao regime regra da nulidade, próprio do Direito Civil e prevista expressamente no artigo 294.º do CC, que fere de nulidade os negócios jurídicos celebrados contra a lei.

No entanto, as referidas normas do Código Civil não deixam de ser aplicáveis aos contratos administrativos, sem prejuízo da sua não aplicação quanto a uma das consequências jurídicas da ilicitude: a do desvalor. Com efeito, quando o legisla dor estabelece a anulabilidade dos contratos celebrados com ofensa de princípios ou ou- tras normas injuntivas, não existe razão para restringir esta remissão apenas para o bloco de legalidade administrativo. Esta remissão abrangerá, até por força do número 4 do artigo 280.º do CCP, o bloco de legalidade do Direito Civil113. Mas esta aplicação do Direito Civil é restrita à função de padrão de conformidade e, portanto, servirá apenas como fundamento de ilicitude e não também como regulador do desvalor jurí- dico dessa ilegalidade nem de regulador do regime da invalidade desses vícios.

A norma reguladora do desvalor jurídico é, quanto à anulabilidade, a do nú- mero 1 do artigo 284.º do CCP, que declara que o desvalor para a desconformidade de um contrato com uma norma injuntiva é o da anulabilidade. Assim, opera-se uma restrição do âmbito de aplicação de certas normas do ordenamento jurídico civil. Por

112 Como bem aponta PACHECO DE AMORIM, o CPA, ao manter, para este tipo de contratos, uma remissão

que incluía também a cominação da nulidade, pretendia salvaguardar que a escolha da Administração por um contrato desta natureza não fosse motivada pela procura de um regime de invalidade mais favorável. No entanto, notava-se a ausência de um regime unitário da invalidade dos contratos da Administração, necessidade a que o presente CCP claramente acedeu, fazendo prevalecer “(…) a pureza dos princípios e

coerência dogmática administrativista sobre esse tipo de ponderações.” JOÃO PACHECO DE AMORIM, A

invalidade e a (in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, in Estudos de

Contratação Pública – I, Coimbra Editora, 2008, p. 652, citando, relativamente a esta observação, DIOGO

FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, Almedina, 2.ª Edição, 2011, p. 608.

113 Tal já não acontecerá com a nulidade, na medida em que o número 2 do artigo 284.º do CCP apenas

admite como padrão de conformidade, em sede de invalidade própria do contrato administrativo, as normas do artigo 161.º do CPA ou aquelas previstas em lei especial, não restando espaço aplicativo às normas do CC.

exemplo, a norma do artigo 294.º do CC114 perderá, aqui, a sua operatividade aplica-

tiva, dado que prevê um segmento normativo em que se traça a consequência, no plano do desvalor jurídico, para uma desconformidade contratual com um padrão de confor- midade legal115. Assim se demonstra, num plano pratico, a regra geral da anulabilidade do contrato administrativo.

A nulidade dos contratos administrativos encontra-se, por força da remissão do número 2 do artigo 283.º, associada às causas de nulidade do acto administrativo pre- vistas no artigo 161.º do CPA ou às causas constantes de lei especial116. A este respeito, avança o legislador com dois fundamentos de nulidade, nas alíneas a) e b) do número 2, prevendo respectivamente, a nulidade dos contratos celebrados com al- teração dos elementos essenciais do caderno de encargos e da proposta adjudicada que devessem constar do respectivo clausulado e a nulidade dos contratos celebrados com aposição de cláusulas de modificação que violem o regime previsto no CCP quanto aos respectivos limites.

A leitura do elenco do artigo 161.º do CPA terá de acoplar o filtro da bilatera- lidade do contrato, de forma a que aquele não possa ser aplicado de forma acrítica no exercício da descoberta de invalidades contratuais. Com efeito, como bem refere PE-

DRO GONÇALVES117, o vício do desvio de poder para fins privados, pensado para actos

unilaterais cujo único fim é a realização do interesse público, terá de assumir uma leitura adaptada à realidade contratual, cuja bilateralidade impõe que se considerem legítimos interesses privados no seio do contrato administrativo.

114 A norma dispõe que “[o]s negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.”

115 O segmento normativo do artigo 294.º que eleva a padrão de conformidade uma disposição legal de carácter imperativo é, aqui, totalmente redundante, face ao número 1 do artigo 284.º do CCP. Com efeito,

aquela norma não constitui um padrão de conformidade (que possa ser convocado por esta norma do CCP), sendo apenas uma norma definidora do desvalor jurídico em caso de violação do padrão de conformidade (legal) que é convocado. Ou seja, não é susceptível de ser violada, traçando apenas o desvalor jurídico em caso de violação de normas com carácter injuntivo e prescritivo.

116 Exemplo de uma “lei especial”, a este respeito, é a norma do número 3 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º

127/2012, de 21 de Junho (que regula os procedimentos necessários à aplicação da lei dos compromissos e dos pagamentos em atraso), que dispõe que são nulos os contratos nos quais o contraente público assume compromissos em contravenção no referido número 3.

À falta e vícios da vontade são aplicáveis as disposições do CC, por força da remissão contida no número 3 do artigo 283.º do CCP. Discute-se, no entanto, o al- cance concreto desta remissão, por força ora da diferença naturalística entre acto e contrato, ora do conteúdo, contraditório com o do regime civilista, das normas da nu- lidade do acto administrativo, previstas no artigo 161.º do CPA.

Veja-se o caso de um contrato administrativo celebrado com coacção moral. Trata-se de situação em que a previsão normativa do artigo 255.º do Código Civil, mas também da alínea f) do número 2 do artigo 161.º do CPA, gera um conflito nor- mativo entre estas duas regras jurídicas, que a Doutrina tem solucionado pela comunicação da nulidade, aplicando a norma do CPA e derrogando a do CC118. Esta parece ser uma consequência metodológica do Princípio da subsidiariedade do Direito Civil em matéria de contratação administrativa119 que, apesar de ditar a aplicabilidade de normas de Direito Privado à relação jurídica contratual administrativa, propugna que apenas assim o será se o ordenamento jus administrativo não estiver dotado de norma jurídica que dê solução à situação jurídica120.

ii) A alteração operada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017

Os dados normativos da invalidade própria do contrato administrativo, previs- tos no artigo 284.º do CCP foram também objecto de uma ligeira reformulação pela mais recente alteração legislativa, corporizada pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017. Com

118 Veja-se, com este entendimento: ALEXANDRA LEITÃO, Lições de Direito dos Contratos Públicos. Parte Geral, AAFDL, 2014, p. 273; MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Admi-

nistrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 2008, p. 130; JOÃO PACHECO DE AMORIM, A invalidade e a

(in)eficácia do contrato administrativo no Código dos Contratos Públicos, in Estudos de Contratação Pú-

blica – I, Coimbra Editora, 2008, p. 653.

119 A este respeito, vide LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, Direito dos Contratos Públicos e Administrati- vos, AAFDL, 2014, pág. 353.

120 Em sentido contrário, referindo que a derrogação do regime civilista não resulta da aplicação do Princí-

pio da subsidiariedade vide LUÍS CABRAL DE MONCADA, A invalidade do Contrato Administrativo, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, Volume IV, Coimbra Editora, 2012, p. 584.

efeito, mantendo-se inalterados os números 1 e 3 do preceito, foi reconfigurado o texto do número 2 do artigo 284.º.

A nulidade própria do contrato administrativo ocorreria, na versão anterior do Código, quando se verificasse “(…) algum dos fundamentos previstos no artigo 133.º

do Código do Procedimento Administrativo ou quando o respectivo vício deter- min[asse] a nulidade por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo ”.

A versão do Decreto-Lei n.º111-B/2017, como se referiu, suprime a referência aos princípios gerais de Direito Administrativo e incorpora os fundamentos de nuli- dade previstos no CCP, mantendo a referência às causas de nulidade do acto administrativo elencadas no CPA.

Trata-se, a nosso ver, de solução preferível. Com efeito, a nulidade, não sendo a regra no direito contratual administrativo, torna necessário que a sua causa fundante se revista de algum grau de segurança jurídica. Ao associarem-se os princípios admi- nistrativos às causas de nulidade tornava-se demasiado estreita a fronteira entre a nulidade e a anulabilidade do contrato administrativo, uma vez que a contrariedade aos demais princípios de Direito Administrativo (que não aqueles que determinem a nulidade do contrato), gerará anulabilidade e não nulidade.

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