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O regime da invalidade dos contratos sobre o exercício de poderes públi-

Capítulo II – A invalidade do contrato administrativo.

3. Regime da invalidade

3.2. O regime da invalidade dos contratos sobre o exercício de poderes públi-

A boa interpretação do sentido jurídico da norma prevista no número 1 do ar- tigo 285.º pressupõe a compreensão de duas realidades: (i) o conceito de contratos

com objecto passível de acto administrativo e contratos sobre o exercício de poderes públicos e (ii) o alcance da remissão para o regime da invalidade do acto administra-

tivo.

i) Contratos sobre o exercício de poderes públicos

A figura dos contratos sobre o exercício de poderes públicos tem sido vítima de uma abordagem terminológica errática. O legislador manteve-se, no entanto e de forma correcta, coerente com a nomenclatura já por si antes utilizada na alínea b) do número 6 do artigo 1.º do CCP. É dentro desta categoria contratual que estão inseridos os contratos com objecto passível de acto administrativo, categoria que lhe assume o paradigma, o que resulta corroborado pela especial referência feita pelo legislador do artigo 285.º do CCP, destacando-os do universo dos contratos sobre o exercício de

poderes públicos. Correspondem a contratos sobre o exercício de poderes públicos

porque neles se estipula o modo ou o sentido do exercício futuro de tais poderes ou por determinarem eles próprios a produção de certos efeitos jurídico-públicos.

A consagração da figura está intrinsecamente ligada ao Princípio da autonomia

pública contratual (hoje positivado no artigo 278.º do CCP), no sentido de se conferir

à Administração Pública um verdadeiro poder de alternativa entre a forma unilateral e a contratual. Isto significa que, enquanto princípio geral, não é necessária lei ex- pressa a indicar o contrato como instrumento pronto a utilizar, podendo a mesma Administração fazê-lo quando o julgar mais conforme com o interesse público, sem- pre que tal não seja proibido.

Embora o artigo 278.º CCP não se refira expressamente à alternatividade entre acto administrativo (ou regulamento administrativo) e contrato, deve entender-se que a habilitação genérica daquela norma abrange esta possibilidade. Para isto concorre, em primeiro lugar, o facto de o próprio CCP se referir à figura no número 1 dos artigos 287.º, 310.º e 337.º (o que demonstra uma serenidade e abertura na sua utilização). Em segundo lugar, não se vislumbra, no próprio artigo 278.º CCP, uma limitação quanto a esta categoria de contratos, pois está arvorado em princípio geral, gerador de uma reversão em termos de deixar contratar sempre que não for proibido e não quando apenas for permitido. Em terceiro lugar, não nos parece que se cumpram qualquer uma das duas limitações constantes da parte final do preceito, pois não existe norma legal proibitiva e não parece que se possa argumentar que estes contratos incorreriam numa contrariedade à natureza das relações a estabelecer, pois a tendência, desde o advento do Estado Social, é a da generalização do contrato administrativo em domínios típicos da actuação unilateral administrativa136.

Em resultado e a corroborar o que se diz, importa referir a existência de certos preceitos constitucionais (de que é magno exemplo o número 5 do artigo 267.º da Constituição da República Portuguesa) a impor uma aproximação entre particulares e Administração na procedimentalização administrativa.

A expressão exercício de poderes públicos é especialmente elucidativa. O ob- jecto destes contratos é a actuação jurídico-pública: ou através da auto vinculação conformadora do acto ou regulamento ou através da substituição pelo contrato. Mas é um especial agir público que está a assumir a veste do contrato, sustentado no reduto da autonomia pública contratual.

136 Neste sentido, VASCO PEREIRA DA SILVA, Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Alme-

Podemos subdividi-los em duas categorias137:

i) Contratos obrigacionais; ii) Contratos decisórios.

Os contratos sobre o exercício dos poderes públicos obrigacionais são contratos pelos quais a Administração se vincula à emissão (ou omissão) de um acto administrativo ou de um regulamento administrativo antes ou no decurso de um determinado procedi- mento. Estes contratos assemelham-se a uma promessa138 de acto ou de regulamento administrativo139, na medida em que têm por objecto uma conduta posterior da Adminis- tração. No entanto, não podem com ela ser confundidos, devido ao carácter unilateral desta última.

Dentro deste tipo de contratos podemos inserir também duas categorias distintas, cuja diferença subsiste apenas quanto ao seu conteúdo (objecto imediato), dado que se revelam idênticas em relação ao respectivo objecto (mediato), uma vez que são referentes a uma mesma conduta administrativa. São elas, em primeiro lugar, uma vinculação con- tratual em relação ao an, ou seja, quanto a emitir, ou não, determinado acto ou regulamento administrativo; e, em segundo lugar, uma vinculação em relação ao quo-

modo, em que, para além da vinculação a contratar, se estipula um determinado conteúdo

conformador da conduta futura da Administração Pública.

Os contratos decisórios140, por seu turno, traduzem uma actuação substitutiva da Administração. A expressão decisórios advém do facto de se colocar termo ao procedi- mento, decidindo-o. Mas não se poderá, obviamente, bastar com a decisão final de um

137 Cfr. Mark Kirkby, Contratos sobre o exercício de poderes públicos, Coimbra, 2011, pp. 279 e ss. Ale-

xandra Leitão, Contratos Interadministrativos, Coimbra, 2011, p. 247; Ana Raquel Gonçalves Moniz, A

Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade, Coimbra,

2012, p. 516.

138 Sobre a promessa em Direito Administrativo, vide: JOÃO TABORDA DA GAMA, Promessas Administra- tivas.Da Decisão de Autovinculação ao Acto Devido, Lisboa, 2008.

139 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Administrativo Geral, Tomo III,

Dom Quixote, 2008, p. 295.

140 Também apelidados de contratos substitutivos de acto ou de regulamento administrativo, precisamente

procedimento, qual definitividade horizontal. A expressão decisórios terá que ter o al- cance para acolher qualquer acto ou regulamento administrativo, mesmo prévio ao término do procedimento. Esta asserção não confunde este segundo tipo de contratos com os contratos obrigacionais, porquanto estes nunca “completam” um acto administrativo, visando apenas um determinado espaço discricionário que lhe é imanente e que se quer regular. Decidir um acto administrativo intra procedimental através de um contrato deci-

sório não, por isso, é o mesmo que definir um qualquer aspecto sobre o conteúdo de um

acto final de um procedimento.

ii) Regime de invalidade

O número 1 do artigo 285.º dispõe que o regime da invalidade dos contratos com objecto passível de acto administrativo e outros contratos sobre o exercício de poderes públicos é o previsto para o acto administrativo.

Pela mera leitura literal do preceito, surge a dúvida sobre se a remissão em causa se reporta apenas ao regime da invalidade do acto administrativo previsto no CPA ou se também pretendia alcançar outro tipo de regimes, especiais, que consagrem um regime de invalidade para certos tipos de actos administrativos. Com efeito, e ao contrário da técnica legislativa utilizada no número 2 do artigo 284.º do CCP, aque- loutro preceito não opera uma remissão expressa e directa para o CPA, preferindo a expressão “regime de invalidade previsto para o acto administrativo”141. No entanto,

e ao contrário do que se dispõe no número 2 do artigo 285.º, também não existe uma remissão, assumidamente ampla, para o “previsto na legislação administrativa.”.

Entendemos que o regime da invalidade deste tipo de contratos não é, neces- sariamente, o previsto no CPA. Propugnamos, assim, que relativamente aos contratos decisórios, o concreto regime de invalidade dos mesmos se há de aferir em função do

141 O mesmo acontece, por exemplo, com as remissões operadas para o Direito Civil efectuadas pelo legis-

lador do CCP. Com efeito, o número 3 do artigo 285.º remete, expressa e inequivocamente, para o regime dos artigos 292.º e 293.º do CC e o número 3 do artigo 284.º remete (a respeito da falta e dos vícios da vontade), igualmente, para “as disposições do Código Civil relativas à falta e vícios da vontade.”, sendo que apenas nos estamos a reportar aos preceitos sobre invalidade.

regime que iria reger o acto ou regulamento que foi substituído pelo contrato. Parece, salvo melhor opinião, ter sido essa a intenção do legislador, apesar de o ter feito em moldes restritos e tendo apenas em vista a figura do contrato com objecto passível de acto administrativo, com um regime de invalidade geral. Com efeito, a teleologia da norma é a de adequar o regime da invalidade deste tipo de contratos ao seu objecto, seja este um acto ou um regulamento administrativo.

Assim, se, por exemplo, for celebrado um contrato substitutivo de um acto cujo regime para a respectiva nulidade seja atípico, por esta contemplar um prazo de argui- ção, o regime da invalidade do respectivo contrato seguirá esta regra que se previa para o acto, implicando que a nulidade do contrato esteja sujeita a prazo de arguição.

Surge, também, um outro problema de interpretação do artigo 285.º, este rela- tivo ao regime que se deverá aplicar à invalidade dos contratos sobre regulamentos, ou contratos sobre o exercício do poder regulamentar. Perante um contrato sobre o exercício do poder regulamentar, deverá o respectivo regime da invalidade seguir, ao abrigo do número 1 do artigo 285.º do CPA, o regime do acto administrativo, ou po- der-se-á defender a aplicação do regime da invalidade do regulamento administrativo?

Cumpre definir sumariamente a presente figura142, de forma a poder-se apre-

ender, com mais propriedade, as suas reais implicações. Os contratos sobre o exercício do poder regulamentar são negócios jurídicos onde a Administração decide contratu- alizar o seu poder regulamentar de modo a vincular-se a realizar qualquer tipo de comportamento positivo ou negativo143, ora condicionando a actuação futura da emis- são de normas regulamentares ora substituindo essas normas por contratos

142 Sobre este tipo de contratual vide, na doutrina, ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, A Recusa de Aplica- ção de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade, Coimbra, 2012 p. 516;

Alexandra Leitão, Contratos Interadministrativos, Coimbra, 2011, p. 247 e JORGE ALVES CORREIA, Con-

trato e poder público administrativo – em especial, os “novos” contratos com objecto passível de regulamento administrativo, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho,

IV, Coimbra Editora, 2012, pp. 195 a 225.

143 Cfr. ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ, A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade, Coimbra, 2012 p. 516. Podemos acompanhar, no geral, o conceito da

Autora: “(…) contratos administrativos endoprocedimentais celebrados entre a Administração e os parti-

administratrivos, pelo que se mantém a anteriormente referida distinção entre contra- tos obrigacionais e contratos decisórios.

Tal como nos contratos obrigacionais relativos a actos administrativos, tam- bém dentro destes parentes regulamentares se encontra uma subdistinção: entre os contratos em que a Administração apenas se vincula à emissão ou omissão de emissão de um regulamento administrativo – existindo, de novo, o referido binómio sobre a vinculação quando ao an, sendo este o espaço mínimo de discricionariedade da deci- são, consubstanciando a magna opção entre fazer ou não fazer ; e os contratos em que é estipulado um certo conteúdo – existindo, portanto, uma margem mais ampla de discricionariedade a ser preenchida e parametrizada, que consubstanciam uma vincu- lação quanto ao quomodo, ou se se preferir, quanto ao quid.

Os contratos substitutivos de regulamentos administrativos (ou contratos deci- sórios relativos a regulamentos administrativos) são contratos celebrados com o fito de definir os contornos de uma disciplina jurídica que poderia, em alternativa, ser conformada unilateralmente pela Administração através de um regulamento adminis- trativo, substituindo essa actuação unilateral pela via bilateral.

Pode, assim, o modo de produção destes efeitos jurídicos ser alcançado por diferentes vias. Importa, no entanto, referir que a admissibilidade dos contratos subs- titutivos de regulamento administrativo ainda não se encontra segura, muito menos sedimentada no panorama administrativo Português, dado que implica um cruzamento próximo com as sempre sensíveis questões de competência, de tramitação e de vincu- lação.

Como atrás explanado, entendemos que se deverá aplicar a este tipo de contra- tos o regime da invalidade previsto para o regulamento administrativo144 e não aquele

quanto à emissão futura de um regulamento administrativo”. No entanto também admitimos os contratos

decisórios nos contratos sobre o exercício do poder regulamentar pelo que acrescentamos, também: com o

objectivo de o substituir, apesar de estes últimos receberem já outro nomem iuris.

144 Este regime, também dentro da linha de pensamento que apresentamos atrás, poderá não ser, necessari-

amente, o regime geral previsto no CPA mas poderá ser o regime que seria aplicável ao concreto regulamento administrativo que o contrato veio substituir, caso de contratos substitutivos de regulamentos administrativos.

previsto para o acto administrativo. Esta posição, no entanto, parece contrariar a letra do número 1 do artigo 285.º do CCP.

Apresentam-se como possíveis duas vias metodológicas145 para se poder con- cluir e firmar esta interpretação do artigo 285.º: através de uma (i) redução teleológica do alcance da norma do número 1 do artigo 285.º, ou através de uma (ii) interpretação correctiva dessa mesma norma.

A interpretação correctiva teria, no presente caso, a virtuosidade de ultrapassar a remissão expressa para o acto administrativo, relativamente ao regime da invalidade de todos os contratos sobre o exercício de poderes públicos, não aplicando a referida norma para o caso dos contratos sobre o poder regulamentar, criando, assim, uma excepção de regime para este tipo de contratos. De acordo com TEIXEIRA DE SOUSA146, esta figura147 “(…) pode manifestar-se tanto na aplicação da lei a um caso que ela

exclui, ou seja, na eliminação de uma excepção prevista na lei, como na não aplicação da lei a um caso que ela abrange, isto é, na construção de uma excepção não prevista na lei.”. No entanto, e por força do disposto no número 2 do artigo 8.º do CC148, este

tipo de interpretação não é aceite no ordenamento jurídico Português.

A solução que preconizamos pode, no entanto, ser alcançada por via de uma redução teleológica da norma do número 1 do artigo 285.º do CCP, de forma a que, através de uma interpretação restritiva do alcance da expressão legal de contratos so-

bre o exercício de poderes públicos, se possam excluir os contratos sobre o exercício

do poder regulamentar.

Com efeito, e como se referiu, não nos parece que o legislador tenha tido a intenção de incluir, no texto do número 1 do artigo 285.º do CCP, os referidos contra- tos sobre o exercício do poder regulamentar, ou não teria remetido o seu regime de

145 Desconsideramos, aqui, a possibilidade da utilização de uma interpretação ab-rogante, ou revogatória,

dado que entendemos não ter aqui aplicação.

146 Cfr. Introdução ao Direito, Almedina, 2012, p. 382.

147 Cuja origem pensada e escrita se reportará à Ética a Nicómaco, de Aristóteles.

148 Dispõe a supra referida norma que “[o] dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo”.

invalidade para o acto administrativo. Com efeito, a remissão para o regime do acto, para os referidos contratos, tornar-se-ia numa peculiaridade sistemática: das três for- mas de actuação administrativa149, acto, regulamento e contrato, os contratos sobre o exercício do poder regulamentar comungam de todas menos do acto administrativo.

Parece também concorrer para este entendimento o facto de o legislador se ter referido expressamente aos contratos com objecto passível de acto administrativo, para só depois se referir, também aos restantes contratos sobre o exercício do poder público. Tal demonstra que era naqueles que o seu fito regulador se baseou.

Pelo que se afigura legítimo150 operar uma redução teleológica da letra do nú- mero 1 do artigo 285.º do CCP, de forma a restringir o alcance da expressão contratos sobre o exercício de poderes públicos para que a mesma apenas abranja aquilo q ue, teleologicamente, o legislador quis abranger151, excluindo do seu âmbito os contratos sobre o exercício do poder regulamentar. Seguindo a lição metodológica de BAPTISTA

MACHADO152,“[o] intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do

texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo (…)”. Para tal concorrem não apenas o elemento teleológico da interpre-

tação jurídica como o próprio elemento sistemático, que aqui reclama uma coerência de regimes aplicáveis ao regulamento administrativo ou a actuações de feição norma- tiva.

149 Excluindo a actuação através de operações materiais.

150 Tal como referido por OLIVEIRA ASCENSÃO, “[o] próprio art. 9/1 do Código Civil português funda positivamente esta indispensável operação, ao opor à letra o pensamento legislativo e preferir este último. Consagrou assim, quer a interpretação extensiva, quer a interpretação restritiva.” Cfr. O Direito. Intro- dução e Teoria Geral, 6.ª Edição, Almedina, 1991, p. 398, nota de pé de página 1.

151 Como bem refere TEIXEIRA DE SOUSA, a este respeito, “[n]a interpretação restritiva, o resultado da interpretação é mais restrito do que o significado literal da lei: o espirito da lei fica aquém da letra da lei, pelo que não se justifica que se infira uma regra que seja aplicável a todos os casos que são abrangidos pela sua letra.” Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, Almedina, 2012, p. 377.

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