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3 DESAFIOS E PERSPECTIVAS PARA A INGERÊNCIA EM NOME DOS DIREITOS

3.3 A Reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas

3.3.1 A Invasão do Iraque em 2003: o divisor de águas

Notadamente após o episódio da segunda invasão do Iraque pela coalizão capitaneada pelos Estados Unidos da América, em março do ano de 2003, e com o recrudescimento do chamado terrorismo internacional, a partir dos eventos ocorridos no 11 de Setembro de 2001, a reforma do Conselho de Segurança entrou de forma definitiva na pauta de discussões da comunidade internacional, isto porque a ação militar norte-americana afrontou a autoridade da ONU e o seu sistema de segurança coletiva, abalando seus alicerces fundamentais.

A Organização das Nações Unidas fora idealizada, no pós-Segunda Guerra, para manter a paz e a segurança internacionais após os seus horrores, e, conforme preleciona o artigo 2º de sua Carta constitutiva, ancora-se em um sistema coletivo de segurança, no qual os seus Estados membros abrem mão do recurso da força com o compromisso de proteção mútua em caso de agressões.

A utilização da força seria, portanto, com a Carta de São Francisco, um recurso autorizado apenas em casos extremos, no entanto, sempre, através de decisão do seu Conselho de Segurança. Porém, como bem se observou na segunda invasão ao Iraque, a ausência dessa autorização acabou por gerar questionamentos acerca de sua obrigatoriedade, levando a ONU a uma crise de credibilidade jamais vista em sua história.

Sob outro prisma iniciou-se uma série de questionamentos acerca da verdadeira capacidade da Organização em manter a paz e a segurança internacionais, uma vez que inicialmente com os atentados terroristas aos EUA, e, posteriormente com a resposta estadunidense não amparada por seu Conselho de Segurança, nada foi feito para punir nem os terroristas, nem os Estados Unidos.

A crise de confiabilidade que se instaurava nas Nações Unidas àquele momento fez com que o então Secretário Geral da entidade, Kofi Anann encomendasse, ainda no ano de 2003, a um grupo de dezesseis especialistas em Política Internacional, presidido pelo ex- primeiro-ministro da Tailândia, Anand Panyarachun, e, contando com a participação do embaixador brasileiro João Clemente Baena Soares, propostas de reformulação geral da Organização.

Em dezembro de 2004, o grupo apresentou o resultado de seu trabalho por meio do informe da Assembléia Geral A/59/565322, um importante documento intitulado Painel de Alto Nível Sobre Ameaças, Desafios e Mudanças “Um mundo mais seguro: nossa responsabilidade compartilhada”, que dentre tantos temas de importância ímpar, em algumas de suas cento e uma recomendações, tratou da reforma do Conselho de Segurança, dando destaque a discussão acerca da autorização do uso da força pelo órgão decisório onusiano.

João Clemente Baena Soares, que participou do grupo de trabalho que elaborou o documento em tela, afirma que no relacionado ao uso da força:

O Relatório expõe, em sua terceira parte, uma das questões centrais, a segurança e coletiva e o emprego da força, ou seja, o Capítulo VII da Carta. [...] Ao admitir o emprego da força pelo Conselho, o Painel rejeita decisão discricionária e recomenda o respeito a critério básicos de legitimidade para a autorização ou endosso do seu uso.323

A este passo, segundo João Clemente Baena Soares, os critérios estabelecidos pelo Painel no intuito de afastar a alta subjetividade do centro decisório em matérias do uso da força passam por uma análise da gravidade da ameaça, do propósito correto, do esgotamento de todas as opções não militares, da proporcionalidade dos meios, da duração da ação e da avaliação de suas consequências.324

No tocante a ampliação do Conselho de Segurança, o Painel a considerou uma necessidade, com o reconhecimento de que o processo decisório deveria sim incorporar mais países representativos com especial atenção àqueles em desenvolvimento.325

Pelo colacionado nas linhas acima, restou evidenciada a vontade do grupo em alterar os pilares de sustentação do Conselho de Segurança, no entanto, o problema residia em como agir para alcançar tal intento.

O Painel levou ao Secretário-Geral duas posições, o que traduzia muito claramente a falta de consenso em torno de uma só proposta de reforma.

Em síntese, o modelo A, projeta a criação de seis assentos permanentes, sem veto, e três assentos não permanentes, eletivos para mandato de dois anos. E, o modelo B, não cria assentos permanentes, entretanto estabelece nova categoria de oito membros com mandato de quatro anos renovável e um membro com mandato de dois anos, não renovável.326

322 Disponível em: <http://www.un.org/spanish/secureworld/report_sp.pdf.> Acesso em: 26 ago. 2011.

323 SOARES, João Clemente Baena. Breves Considerações Sobre Reforma da ONU. In: Seminário sobre a Reforma da ONU, 2009, Rio de Janeiro. Reforma da ONU: textos acadêmicos. Brasília: FUNAG, 2009, p. 16. 324 Ibidem, p. 16 e 17.

325 Ibidem, p. 18. 326 Idem.

As duas indicativas emanadas pelo Painel traduziam o anseio de alguns Estados que, reunidos em grupos, por meio de reuniões próprias, formularam cada qual, sua proposta de reforma no que tange a ampliação do Conselho de Segurança.

Deste modo, o chamado “G-4”, formado pelo Brasil, Índia, Alemanha e Japão, apresentou proposta buscando a criação de seis assentos permanentes e quatro não- permanentes, sendo que o direito de veto dos novos permanentes apenas seria discutido passados quinze anos da reforma.327

Os países africanos, por meio do chamado “Grupo Africano”, apresentaram manifestação apoiando a criação de assentos permanentes e não-permanentes, sendo que os novos membros permanentes teriam direito a veto.328

O outro grupo fora denominado de “Unidos pelo Consenso”, formado por doze países, com destaque para Itália, Espanha, Paquistão, República da Coreia, México e Argentina que, em clara oposição as propostas anteriores, apóiam apenas a criação de assentos não permanentes, rejeitando qualquer expansão dos membros permanentes.329

Neste ponto, fazendo severa crítica à motivação de alguns dos integrantes deste último grupo, o embaixador Piragibe dos Santos Tarragô assevera que:

O “lançamento” de candidaturas pelo G4 provocou forte oposição de um número razoável de Estados-membros “não lembrados”. Estes fundaram o “Unidos pelo Consenso” (UfC), composto por países que, em sua maioria dividem rivalidade regionais com os postulantes a assento permanente. É o caso da Argentina e México (competidores com o Brasil na América Latina). Paquistão e República da Coreia (o primeiro com a Índia; e o segundo com o Japão, na Ásia), Espanha e Itália (com a Alemanha, na Europa). Outros do UfC, sem ambições regionais propriamente, prefeririam a manutenção do status quo [...] de maneira a prevenir o surgimento de “lideranças” regionais que, a seu modo de ver, poderiam limitar a realização de seus objetivos nas respectivas áreas ou subáreas.330

Ainda segundo a lição de Piragibe dos Santos Tarragô, ao adotarem a postura acima:

Tais países, que sequer teriam condições de pleitear ser “rival” dos postulantes e aspirantes a postulantes, rejeitam a concessão de novos assentos permanentes por um duvidoso argumento de que equivaleria a dar “um privilégio” a alguns poucos (com isso tornam-se, conscientes ou não,

327 MENEZES, Wagner. Reforma da Organização das Nações Unidas. In: Seminário sobre a Reforma da ONU, 2009, Rio de Janeiro. Reforma da ONU: textos acadêmicos. Brasília: FUNAG, 2009, p. 243.

328 Ibidem, p. 244. 329 Ibidem, p. 243.

330 TARRAGÔ, Piragibe dos Santos. A Reforma da ONU: A Comissão de Construção da Paz. In: Seminário sobre a Reforma da ONU, 2009, Rio de Janeiro. Reforma da ONU: textos acadêmicos. Brasília: FUNAG, 2009, p. 33 e 34.

defensores do status quo e da preservação desse “privilégio” apenas para os atuais 5 membros permanentes).331

Pelo teor da controvérsia instaurada principalmente pela proposta destoante do terceiro grupo, os projetos em torno da ampliação do Conselho de Segurança não foram levados a votação em momento algum, o que, vale ressaltar, assinala a imensa dificuldade encontrada para se discutir a reestruturação de um ente que se encontra enraizado em critérios puramente políticos.

Nesta esteira, mais uma vez socorrendo-se do pensamento de Piragibe dos Santos Tarragô, tem-se que:

Um dos primeiros e mais óbvios obstáculos à reforma reside na noção de ampliação na categoria de membros permanentes. Pois não se trata de uma ampliação como a de qualquer outro órgão da ONU em que, em geral, se determina um novo número de assentos, faz-se um rateio, com base na distribuição geográfica, e depois se transfere para os grupos regionais o procedimento de seleção dos membros a ocuparem os novos assentos. A característica singular do CSNU, cujos membros permanentes não ocuparam seus assentos em razão de sua localização geográfica particular, mas sim de atributos oriundos de uma situação histórica e geopolítica particular, além de sua própria condição de potência militar. Na gênese do Conselho havia (e continua a haver) a concepção de que só por meio de um entendimento mútuo e contínuo num foro apropriado, as potencias vitoriosas da II Guerra Mundial deveriam poder exercer o papel de mantenedoras da paz e segurança internacionais.332

Nota-se, ante o exposto, que a situação de reformulação encontra-se ligada a questões políticas que deságuam ou emanam do grande poder conferido desde a fundação das Nações Unidas aos membros permanentes de seu Conselho de Segurança.

Em conformidade com o já elucidado no início desta abordagem, na prática, para que uma reforma saia do plano das ideias e se concretize, é preciso, além da maioria positiva de dois terços da Assembleia Geral, a concordância unânime dos cinco membros com assento permanente. Caso algum deles discorde da proposta de reforma, esta não sai do papel.

Mas, de fato, o que pensam os integrantes do seleto grupo dos cinco?

De uma maneira bem ampla, todos percebem a necessidade de se efetivar uma reestruturação no Conselho de Segurança. O que difere entre eles é o pensamento acerca do conteúdo a ser remodelado, e, o engajamento demonstrado nessa tarefa.

A França e o Reino Unido estão mais ativos, buscando impulsionar os trabalhos com maior permeabilidade a uma ampliação maior, inclusive com a introdução de uma categoria intermediária, porém não aceitam mudanças no veto. Os Estados Unidos e a Rússia sustentam

331 Ibidem, p. 34.

uma postura mais moderada, intentando manter a reforma dentro de limites numéricos, sem restrições ao uso do veto, e sem a alteração do método de trabalho do órgão. Os EUA apóiam declaradamente a admissão das antigas potências do Eixo, Alemanha e Japão, por motivações financeiras. Já a China, em claro apoio aos países em desenvolvimento, expressa simpatia a inclusão de novos membros que pertençam a este grupo, dando preferência para os africanos, ao mesmo tempo em que não aceita a indicação japonesa, em função da memória da guerra que travaram no passado.333

Diante de tantas posições divergentes nenhum dos três projetos de reforma foi levado a votação na Assembleia Geral das Nações Unidas, já que não havia certeza, entre os respectivos co-patrocinadores, de que conseguiriam reunir o apoio necessário para suas aprovações334. Posto isto, o assunto continua a gerar intensos e fervorosos debates.

O caminho tomado até o presente momento no que confere ao destino das reformulações do Conselho de Segurança não pode ficar adstrito às discussões que apenas questionam uma ampliação de seus membros permanentes ou não. Isto jamais solucionará o mais grave dos problemas do órgão nos últimos anos, qual seja a crise englobando dúvidas sobre sua legitimidade, confiabilidade e senso de justiça.

Mas como solucionar tal demanda?

Ao lado desta indagação, levantam-se, ainda, os seguintes questionamentos envolvendo tal processo: será que uma reforma no Conselho é possível, em face da atual estrutura de poder sob a qual se ergue a ONU? Se possível uma reforma, em que moldes ela tem que ocorrer para que se possa recuperar a credibilidade perdida e aferir legitimidade às decisões do Conselho?

Aqui, para que se possa medir o grau de dificuldade em oferecer resposta a segunda pergunta ventilada, toma-se emprestado o pensamento do ex Secretário Geral Kofi Annan, para quem, “todo membro da ONU concorda que o Conselho tem que ser reformado porque não reflete mais a realidade política de hoje. Sobre o que falta entendimento é como reformar”.335

Partindo do pressuposto de que diversos países passaram a reivindicar uma reformulação, com solicitações calcadas na grande influência de poucos Estados – os detentores do poder no sistema internacional herdado da Segunda Guerra – assim como na representação desproporcional e no uso do poder de veto pelos membros permanentes para

333 TARRAGÔ, op. cit., p. 36; SOARES, op. cit, p. 20. 334 VIOTTI, op. cit, p. 88 e 89.

satisfazer interesses pessoais, é mais do que provável que a problemática em tela não possua fácil resolução.

Dificilmente os atuais membros permanentes concordarão com qualquer proposta que altere o quadro político delineado por seus líderes desde a criação da ONU, em 1945.

Mas qual seria a motivação desses Estados para “bloquear” qualquer tentativa de mudança no modelo que vige desde a fundação da Organização?

Thales Castro, no trecho abaixo, oferece uma pista significativa para que se possa construir entendimento acerca da negativa de diálogo dos “poderosos” na direção de uma reestruturação do Conselho de Segurança, ao asseverar que:

A missão precípua do CSNU não é, necessariamente, manter a paz e a segurança internacionais, como consta, idealmente, na carta da ONU [...] Sua finalidade essencial é preservar os pilares da ordem mundial com modificações estruturais resultantes da uni-polaridade após a extinção da URSS em 1991, salvaguardando status quo. Com isso, se enfatiza que o objetivo do CSNU é evitar novos questionamentos bélicos sistêmicos da ordem mundial vigente por meio de um processo deliberativo de conservação consensual do poder, da autoridade e dos interesses no plano da hegemonia unicêntrica336

Wagner Menezes manifesta opinião semelhante, porém com uma pitada de otimismo, ao expor que:

De fato a ONU não é um ente celestial ungido por poderes divinos, mas é a maior conquista institucional da humanidade na sua história; imperfeita e aquém do que se deseja, é verdade, permissiva de um sistema de utilização de poder, sujeita as manobras estratégicas de políticas hegemônicas, mas diante disso tudo, um mundo sem ela, não teria alternativa de ser melhor, sem palco, permeado pela ausência do diálogo entre os povos, dominado pelo poder incondicional.337

Ante as visões trazidas à baila nas linhas acima, parece não existir um caminho que leve a comunidade internacional à tão sonhada reforma do Conselho de Segurança, enquanto o político superar o jurídico, enfraquecendo qualquer tentativa de se perfilar as alterações ocorridas nas últimas décadas nas mais diversas esferas, ao órgão decisório das Nações Unidas.