• Nenhum resultado encontrado

O problema envolvendo o cenário internacional coevo pode ser identificado pelo exame do próprio direito internacional, que através da Carta de São Francisco, afiança o direito de soberania aos Estados, vedando a utilização da força contra os seus pares e a ingerência em seus assuntos interiores; ao mesmo tempo em que impõe aos Estados, o compromisso de respeitar os direitos humanos, prevendo, para tanto, limitações à sua soberania, ao não intervencionismo e, ao uso da força. Demonstra-se, in casu, notória incongruência, que estabelece o primeiro dilema a ser enfrentado por esta investigação.

Desta forma, com a edificação das relações internacionais tomando como alicerces princípios basilares, como a igualdade soberana entre os Estados, a proibição do uso da ameaça e da força e a não intervenção nos assuntos domésticos estatais, a princípio, qualquer situação onde não haja a observância destes verdadeiros vetores das relações interestatais pode ser considerada manifesta violação ao direito internacional.

Sob prisma reverso, entretanto, com a expansão do processo de internacionalização e proteção dos direitos do homem, a comunidade internacional foi tomada por um ideário de consciência em relação à garantia desses direitos, com o entendimento de que o homem busca sua posição de protagonista nestas relações, atuando como sujeito, via de institutos e mecanismos que foram surgindo, sobretudo no decorrer da segunda metade do século XX, para consolidar o respeito à sua dignidade.

Destarte, neste contexto, temas concernentes ao homem e à sua dignidade passam a afrontar, pode-se assim dizer, o discurso da primazia da soberania estatal como sustentáculo para a submissão de seus cidadãos às mais terríveis privações de direitos.

A proliferação de conflitos envolvendo abusos aos direitos humanos, especialmente nos Bálcãs e na África, despertou debates acerca da relação entre os direitos humanos e a soberania, colocando, de um lado, o ideário de que a soberania de um Estado se condiciona à sua aptidão para proteger e promover os direitos fundamentais de seus cidadãos; e, de outro, o pensamento de que a soberania, tal qual imaginara Jean Bodin, deve ser absoluta e inviolável, afastando qualquer utilização da força advinda de agentes externos, nas soluções de seus problemas de direitos humanos.

Para os adeptos da segunda posição, a possibilidade de qualquer interferência tem o condão de derrubar o respeito e a confiança entre os países, herança do modelo westfaliano, tornando ainda mais instável o já dificultoso cenário da política internacional.

De tal modo, a inovadora década de 1990 foi a responsável por expor ao mundo o inegável avanço no reconhecimento e na proteção dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que revelou como estas relações estavam ainda indefinidas, dada a proteção internacional

seletiva dos direitos humanos, quase sempre submetida aos interesses geopolíticos das principais potências.153

Reafirma-se assim que o mundo mergulhou em uma era onde a questão envolvendo a defesa e a propagação dos direitos humanos passou efetivamente a fazer parte dos debates internacionais, obedecendo, dentre outras inovações, os padrões da chamada globalização, com o surgimento de uma ordem internacional pautada em temas antes considerados individuais, exclusivos dos Estados.

Destarte, a combinação entre a ampliação do regime internacional de proteção dos direitos humanos e o reconhecimento das crises humanitárias catastróficas observadas especialmente nos últimos anos do século passado, oportunizaram o uso de instrumentos diferenciados para a efetivação dos direitos humanos no plano global.

A análise de Jürgen Habermas sobre o tema destaca que:

Com a fundação das Nações Unidas empreendeu-se um segundo assalto no sentido de estabelecer forças supranacionais capazes de agir em prol de uma ordem global pacifica, que ainda continuava incipiente. Com o fim do equilíbrio bipolar, o terror, e apesar de todos os retrocessos, parece abrir-se a perspectiva de uma “política interna internacional” no campo da política internacional de segurança e direitos humanos.154

O desenvolvimento mais incisivo desta nova fase das relações jurídicas interestatais, dá-se, com o final do bipolarismo entre os Estados Unidos da América e a União Soviética, a partir do reconhecimento, ao menos no campo teórico, de que um Estado, sem a cooperação de seus pares, não é capaz de solucionar tensões referentes à temas mais abertos, fazendo com que o dicionário internacional, com tal transformação, passasse a contar com novos vocábulos como o multilateralismo e a interdependência, acirrando, portanto, os discursos sobre a não- negligência estatal em sede de direitos humanos, propiciando, deste modo, uma postura ingerente, no sentido de garantir tais direitos em uma dimensão além das fronteiras estatais, com efeitos erga omnes.

No que se relaciona ao plano político, o contexto internacional era, indubitavelmente, o mais apropriado, com o final da Guerra Fria, a falência do comunismo, o ápice das democracias, e, fundamentalmente, com a aceleração e intensificação do processo de globalização econômica.

Ao esboçarem entendimento sobre o quadro em exame, André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros apontam que:

153 KOERNER, Andrei. Ordem Política e Sujeito de Direito no Debate sobre Direitos Humanos. In: Lua Nova. São Paulo, 2002, n. 57, p. 89.

Tratou-se apenas de transpor e adaptar ao direito internacional a evolução que no direito interno já se dera, no início do século, do Estado-polícia para o Estado-providência. Mas foi o suficiente para o direito internacional abandonar a fase clássica, como o direito da paz e da guerra, para passar à era nova ou moderna da sua evolução, como direito internacional da cooperação e da solidariedade.155

Entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990, difundiu-se a percepção de que “o maior perigo enfrentado pela maior parte das pessoas no mundo atual provém de seus próprios estados, e que o principal dilema da política internacional é saber se as pessoas em perigo devem ser resgatadas pelas forças militares de fora.”156

Em igual período, as intervenções militares com desígnios humanitários, autorizadas pelas Nações Unidas ou desenvolvidas unilateralmente, passavam a empreender-se, sem contar com o consenso internacional, sob a justificativa de estar-se cumprindo um dever moral de ingerência da sociedade internacional em relação àqueles Estados considerados criminosos ou em colapso, nos quais maciças violações aos direitos humanos tomavam o contorno de crimes contra a humanidade.

No entanto, por mais bem intencionado que o discurso coordenado pela ONU tenha se apresentado, ressalta-se, desde já, que a Organização fundada em 1945, se guia pela vontade, ou melhor, boa vontade de seus Estados-Membros. Nesta senda, a política e os jogos de poder fazem parte de seus quadros.

Como principal mostra da estruturação política que se levanta por detrás do discurso de igualdade defendido por sua Carta, tem-se a forma como se organiza o Conselho de Segurança da ONU157, concentrando suas decisões nas mãos de apenas cinco membros: os Estados Unidos, a Rússia, o Reino Unido, a França e a China, que, sendo permanentes, contam com o poder de veto, controlam os debates, e, anulam a posição dos outros dez membros transitórios que formam o grupo de quinze Estados integrantes do órgão mais decisivo das Nações Unidas.158

Mas, a distribuição de poder tão assimétrica demonstrada acima é fruto do acaso? É evidente que não, e, buscando a explicação para tal fato é preciso recordar que o sistema instaurado no momento histórico de surgimento da ONU, privilegiou os países considerados vencedores no conflito, que, a partir de então, assumiram os postos de “donos

155 PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto. Manual de Direito Internacional Público. 3ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993, p. 661.

156 WALZER, op. cit., p. XV.

157 Vide artigo 23 da Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.onu-brasil.org.br/doc1.php>. Acesso em: 31 mar. 2011.

158 O Conselho de Segurança das Nações Unidas é composto por um total de 15 (quinze) membros, sendo que somente 05 (cinco) destes têm representação permanente e os outros 10 (dez), são eleitos pela Assembléia Geral para um período de 02 (dois) anos.

do poder” no mundo, ostentando tal posição, até os dias hodiernos, também nos assentos permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, possuindo, deste modo, o monopólio de suas decisões.

O grifo a esta configuração onusiana tem razão de ser, pelo fato de que, muito embora a questão humanitária tenha despertado em muitos, nos últimos anos, uma ansiedade verdadeira, comprometida com ações tendentes a minimizar a violação de direitos e o sofrimento de milhares de pessoas, nas mais diversas partes do planeta; para outros, a temática dos direitos humanos serve, tão somente, como um instrumento legitimador de atos perpetrados visando satisfazer pretensões imperialistas, com a subjugação de culturas, por meio de intervenções pautadas em fins egoísticos, escondidas sob o falacioso discurso da proteção internacional da dignidade humana. Aqui se tem a revelação do segundo dilema a ser examinado por esta pesquisa.

Os Estados que se declaram os líderes mundiais na defesa dos direitos humanos, são, em muitas ocasiões, os precursores de sua violação, bastando, para isso, que sejam contrariadas suas pretensões particulares.

Percebe-se que a causa dos direitos humanos, em diversos casos, é deturpada, sendo colocada a serviço das ambições geopolíticas das nações mais poderosas, através da estigmatização de governos mundo afora, tratando-os como “regimes inimigos da liberdade e da democracia” pelo simples fato destes não se alinharem aos interesses das maiores potências mundiais.

Ao mesmo tempo, porém, lideranças perfilhadas aos modelos econômicos, políticos ou culturais das potências, mesmo que empreendam violações gravíssimas à dignidade humana, recebem uma “anistia”, com a tolerância de seus atos de barbárie por boa parte da opinião pública internacional.

Do que se infere o fato de que uma nação com maior poder econômico, político e militar, como os Estados Unidos, possa trazer a pena capital nas legislações de trinta e cinco estados de sua federação sem despertar grande indignação do restante do globo.

Sob outra via, entretanto, a mesma tranquilidade acerca do tema não se aplica, v.g., sobre as disposições referentes à pena de morte presentes no regime islâmico do Irã.

Em semelhante estrada, o que dizer dos atos do governo colombiano, que no auge da chamada Guerra ao Narcotráfico, pôde aplicar políticas de eliminação de populações indígenas em seu território, tomando como justificativa o discurso de combate ao tráfico de drogas?

Não é preciso dizer muito. Basta entender que o regime da Colômbia era, na América Latina, um dos mais próximos aos EUA, e, com o apoio, inclusive financeiro, deste, atuava, violando os direitos humanos de seus nacionais, porém, não despertava grande atenção da mídia do ocidente.

O que se quer advertir com os fatos lembrados acima é que o exercício da ingerência em situações concretas de grave crise humanitária não pode se furtar de um debate que envolva as demandas éticas e políticas que se encontram por detrás das decisões de intervir ou não intervir, evitando-se, com tal postura, que se desencadeie a omissão de uns diante de grandes flagelos ou o abuso de poder de alguns Estados em detrimento de outros.

Há, ante o aludido, inequivocamente, uma contraposição de discursos e intenções na seara dos direitos humanos e das intervenções humanitárias.

Neste sentido, o presente capítulo, em suas próximas linhas, apresentará os elementos esclarecedores da problemática em tela, visando a compreensão de tema tão intrigante da moderna doutrina jurídica internacionalista.