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1.5 O Regime de Proteção Internacional dos Direitos Humanos

1.5.2 A Internacionalização dos Direitos Humanos

1.5.2.1 O direito internacional humanitário

88 Ibidem, p. 116 e 117.

89 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Pacto da Sociedade das Nações. Art. 13. Disponível em: <http//www.onu-brasil.org.br.> Acesso em: 23 mar. 2011.

90 A Segunda Guerra Mundial foi o confronto militar mais arrasador de todos os tempos. Há divergências quanto ao número total de pessoas que perderam a vida entre 1939 e 1945, em decorrência do conflito. Alguns autores falam em quarenta milhões de mortos. Mas o historiador estadunidense James Gormly eleva esse número para cinquenta milhões, entre os quais cerca de 25 milhões de civis. Vastas regiões e um número enorme de cidades foram totalmente destruídas. Disponível em: <http://www.culturabrasil.pro.br/guerrafria.htm>. Acesso em: 06 abr. 2011.

91 COMPARATO, op. cit., p. 211.

Em uma primeira análise “o Direito Humanitário constitui o componente de direitos humanos da lei da guerra”.93 Tem o direito humanitário o condão de ser o regramento que se

aplica em hipóteses de guerra, colocando limites aos atos do Estado, e, afiançando a observância, nesta situação especial, dos direitos fundamentais dos militares postos fora de combate e da população civil envolvida no conflito. Caracteriza-se, desta forma, o direito humanitário como a primeira manifestação de que no plano internacional mesmo em situações de conflito bélico existem limites à liberdade e autonomia dos Estados.94

Uma análise mais detalhada do tema coloca-o muito próximo do retro citado jus in

bello, que demarca o procedimento justo na guerra.

Neste campo, mesmo entendendo que o recurso à guerra é um modo agressivo dos Estados resolverem suas contendas, não fazendo uso das soluções diplomáticas e jurídicas, a ela se impõem uma cadeia de regras de caráter humanitário advindas de convenções ou pautadas nos costumes. Tais normas compõem o Direito Internacional Humanitário.95

O Direito Internacional Humanitário, desta forma, origina-se dos primeiros estudos e debates acerca do Direito Internacional e de suas consequências em relação às situações de guerra, tendo, a exemplo do que já ocorrera com a Teoria da Guerra Justa, os seus primeiros estudos realizados por São Tomas de Aquino, classificando como imprescindível a uma guerra justa, que o beligerante proceda com reta intenção.96

O Direito Internacional Humanitário também toma o pensamento de Hugo Grócio, que sublinha a necessidade de introduzir restrições às situações de conflitos, protegendo a vida e a integridade física das pessoas inocentes ou não envolvidas deliberadamente, em sua obra The Rights of War and Peace, onde o jurista holandês formaliza alguns dos temas principais do direito internacional, apontando as causas justas e injustas para que seja deflagrado um conflito, as obrigações impostas pelos tratados, os direitos dos embaixadores, assim como, lecionando sobre a paz no período pós-guerra, trazendo as condições para as tréguas, os direitos dos prisioneiros e as sentenças.97

Cabe assinalar que até meados do século XIX, os Estados imersos em uma determinada disputa, eventualmente, podiam firmar acordos para resguardar as vítimas das guerras. Todavia, esses tratados somente se aplicavam ao conflito para o qual haviam sido forjados.

93 BUERGENTHAL. Thomas. International Human Rights. Minnesota: West Publishing, 1988, p.14. 94 PIOVESAN, op. cit., p. 116.

95 ARAÚJO, Luis Ivani Amorim. Curso de Direito Internacional Público. 10ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2000, p. 329.

96 Ibidem., p. 328.

Somente no ano de 1864 é elaborada a Convenção de Genebra, com o objetivo de aliviar o destino dos militares feridos nos exércitos em campanha. Foi o primeiro tratado internacional nesta seara, sendo válido para qualquer conflito vindouro entre os países signatários. A partir de sua elaboração dá-se o primeiro passo em um processo de sucessivas formalizações de acordos internacionais sobre o assunto em comento.98

Neste diapasão, até o final da Primeira Guerra Mundial, a proteção dos indivíduos que se encontravam em guerras internacionais provinha dos direitos e obrigações dos Estados beligerantes, tomando por suporte o conjunto de normas ratificado por eles.

O quadro em comento somente sofre alterações substanciais com a mudança na forma de se fazer guerra e com a observância de seus efeitos danosos. Sobre esta alteração paradigmática, Dalmo de Abreu Dallari leciona que:

Toda guerra é, em princípio, um momento de irracionalidade, de substituição de todos os avanços conquistados, às vezes penosamente, durante a longa marcha civilizatória da humanidade pela força bruta, é um momento de retorno à barbárie. Por esse motivo, quando no século dezenove as guerras se tornaram mais “tecnológicas”, ficando mais fácil matar o inimigo à distância, e quando os meios de divulgação já permitiam a difusão mais ampla de informações sobre os males causados pela guerra, começou um esforço de homens de boa vontade, no sentido de estabelecer limites às ações de guerra. Foi assim que se desenvolveu o chamado “Direito de Genebra”, que tem seu ponto de partida com a celebração de um acordo multilateral, conhecido como Convenção de Genebra, em 1864, sendo esse um marco fundamental no desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário. Depois disso vieram diversos tratados e acordos internacionais, fixando limites ético-jurídicos para as violências em ações de guerra, tratando da proteção devida às populações civis envolvidas numa circunstância bélica e, além disso, colocando as exigências mínimas quanto ao tratamento a ser dispensado aos prisioneiros de guerra, para que se preserve a dignidade humana.99

Somente ao final da Segunda Guerra Mundial, a preocupação sublinhada por Dallari ocupou de forma mais incisiva o ideário internacional. Isto pode ser explicado pelos efeitos catastróficos desse conflito para a humanidade, que, sob a pressão dos movimentos de direitos humanos, começava a pensar na defesa direta da pessoa humana em situações de guerra. E, em virtude da influência dessa nova vertente humanitária, foram elaborados, no mês de agosto do ano de 1949, mais quatro Convenções de Genebra, numeradas de I a IV, na seguinte ordem: Convenção para a melhoria da sorte dos feridos e doentes das Forças Armadas em campanha; Convenção para a melhoria da sorte dos feridos, doentes e náufragos das Forças

98 REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 365.

99 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direito ou Barbárie. In: Revista do Advogado. Associação dos Advogados de São Paulo, n.º 67, ano 2002, p. 81.

Armadas no mar; Convenção relativa ao tratamento dos prisioneiros de guerra; e, por fim, Convenção relativa à população civil em tempo de guerra.100

A grande inovação das Convenções em tela consiste na regulação, pela primeira vez, dos confrontos armados ocorridos dentro do território dos Estados, recebendo tratamento de modo expresso pelo artigo 3º, fixador de uma pauta mínima de humanidade a preponderar nos embates, com igual aproveitamento às quatro Convenções e com a seguinte redação:

ARTIGO 3. Em caso de conflito armado de caráter não-internacional que ocorra em territórios de uma das altas partes contratantes, cada uma das partes em conflito deverá aplicar, pelo menos, as seguintes disposições: 1) As pessoas que não tomarem parte diretamente nas hostilidades, incluindo os membros das forças armadas que tiverem deposto as armas e as pessoas que ficarem fora de combate por enfermidade, ferimento, detenção ou qualquer outra razão, devem em todas circunstâncias ser tratadas com humanidade, sem qualquer discriminação desfavorável baseada em raça, cor, religião ou crença, sexo, nascimento ou fortuna, ou qualquer outro critério análogo.

Para esse efeito, são e continuam a ser proibidos, sempre e em toda parte, com relação às pessoas acima mencionadas:

a) atentados à vida e à integridade física, particularmente homicídio sob todas as formas, mutilações, tratamentos cruéis, torturas e suplícios;

b) tomadas de reféns;

c) ofensas à dignidade das pessoas, especialmente os tratamentos humilhantes e degradantes;

d) condenações proferidas e execuções efetuadas sem julgamento prévio realizado por um tribunal regularmente constituído, que ofereça todas as garantias judiciais reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados.

2) Os feridos e enfermos serão recolhidos e tratados.

Um organismo humanitário imparcial, tal como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer seus serviços às Partes em conflito.

As Partes em conflito deverão empenhar-se, por outro lado, em colocar em vigor por meio de acordos especiais todas ou parte das demais disposições da presente Convenção.

A aplicação das disposições anteriores não afeta o Estatuto Jurídico das Partes em conflito.101

O sistema de proteção consagrado pelo “Direito de Genebra” repousa sobre alguns princípios, como a neutralidade, significando que a assistência humanitária não pode ser utilizada como instrumento de intromissão no conflito, em contrapartida, todas as categorias de indivíduos protegidos devem abster-se de qualquer ato hostil; a não discriminação, pautada na ação protetiva sem distinção de raça, sexo, nacionalidade, língua, classe social ou opiniões políticas, filosóficas ou religiosas; e, a responsabilidade, configurada pela máxima de que o

100 REZEK, op. cit., p. 365.

101 COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA. Artigo 3º comum às quatro Convenções de Genebra. Disponível em: <http://www.icrc.org/por/resources/documents/treaty/treaty-gc-0-art3-5tdlrm.htm.> Acesso em 15 abr. 2011.

responsável pela sorte dos indivíduos protegidos e pela fiel execução das regras convencionais é o Estado preponente, e não o corpo da tropa.102

Ante ao exposto formou-se o cenário ideal para o surgimento de um Direito Internacional Humanitário, que, nos dizeres de Carlos Roberto Husek, caracteriza-se por constituir:

Um conjunto de normas internacionais, que se originam em convenções ou em costumes, especificamente destinadas a serem aplicadas em conflitos armados, internacionais ou não internacionais, que limitam, por razões humanitaristas, o direito das partes em conflito a escolher livremente os métodos e os meios utilizados no combate e protegem as pessoas e os bens afetados.103

Com a cogente necessidade de se concretizar as normas do Direito Internacional Humanitário, dois protocolos complementares às quatro convenções retrocitadas são elaborados em 1977 a fim de reafirmar e desenvolver seus propósitos.

Segundo Rezek, o Protocolo I se referia a conflitos internacionais, incluindo-se nesta classe as chamadas “guerras de libertação nacional”. O seu texto desenvolve, de maneira especial, a proteção a proteção das pessoas e dos bens civis, bem como os serviços de socorro às vítimas, além de aperfeiçoar a estrutura de identificação e sinalização protetivas. Já o Protocolo II dedica-se ao trato mais detido do artigo 3º, comum às quatro Convenções de 1949, e versa sobre os conflitos internos do gênero da guerra civil, excluindo, no entanto, em clara homenagem ao princípio da não-ingerência internacional em assuntos internos dos Estados, os tumultos e agitações de caráter isolado nos quais não sejam possíveis a identificação nas fileiras rebeldes do mínimo de organização e responsabilidade.104

Deve-se enfatizar que os dois Protocolos de 1977 tiveram motivação nos frequentes conflitos internacionais regionalizados, no imediato período subsequente à Segunda Guerra Mundial, que demandavam regulamentos que compreendessem acontecimentos que escapavam à tipicidade já conhecida das guerras anteriores, como as guerras para libertação nacional, os combates para descolonização e os conflitos de caráter revolucionário, com consequências para as populações talvez bem maiores do que as guerras tradicionais.

O somatório de dispositivos protetores estabelecido pelo aparato de Genebra permite apreender que tal estrutura abarca normas gerais e completas, no sentido de que não se restringem a determinadas categorias de pessoas, tendo, pois, aplicação entre todos os

102 REZEK, op. cit., p. 365 e 366.

103 HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional Público. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 191. 104 REZEK, op. cit, p. 366.

indivíduos atingidos de forma concreta ou potencialmente pelas consequências de um enfrentamento militar.

E, apontando a importância do Direito Internacional Humanitário, da OIT e da SDN para o processo de internacionalização dos direitos humanos, Flávia Piovesan declara que a contribuição de cada um deles:

[...] registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocas entre os Estados; visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam os interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados.105

Do exposto, pode-se atentar para uma situação evidente, qual seja, uma transformação no trato dado pelos Estados à questão da luta pelo reconhecimento e valorização dos direitos humanos, especialmente, no período que vai desde a primeira reunião em Genebra, no ano de 1864, sobre o Direito Internacional Humanitário, passando pelo início do século XX, com as colaborações da SDN e da OIT, aportando finalmente em meados dos anos de 1940, onde os horrores colecionados pelo saldo de dois conflitos internacionais de grande monta fizeram eclodir uma nova forma de pensar a humanidade, rompendo com o modelo westfaliano e inaugurando um sistema internacional de proteção aos direitos humanos, tendo como elemento impulsionador o sistema delineado pela Carta das Nações Unidas.

Os malefícios da Segunda Guerra Mundial com sua escalada de destruição originaram a criação de um sistema ético diferenciado com a inserção dos direitos humanos na nova agenda internacional que àquela fase se instaurava.

Neste sentido, o modelo internacional inaugurado a partir da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de meados do século passado, passa a ocupar lugar de extrema relevância no desenrolar das relações internacionais no período imediatamente posterior ao segundo conflito mundial, buscando, como será visto abaixo, no tópico que encerra este capítulo, traçar diretrizes aplicáveis entre os Estados para a busca da proteção contínua dos direitos humanos, com a finalidade precípua de manutenção da paz e da segurança internacionais.