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A INVENÇÃO DO TERRITÓRIO: ESTADO E POLÍTICA EM DESTAQUE

OBJETIVO GERAL OBJETIVOS ESPECÍFICOS

2.1 A INVENÇÃO DO TERRITÓRIO: ESTADO E POLÍTICA EM DESTAQUE

Na introdução, afirmou-se que a questão territorial estabelecida entre os municípios de São Miguel do Gostoso e Touros envolve mais do que um problema cartográfico, o que seria, nesse caso, resolvido por um ajuste na demarcação dos limites municipais. Colocado assim, inserimos o papel dos limites e das fronteiras num campo banal de discussão, o que de fato, não corresponde à realidade.

Na concepção de território vinculada ao domínio de atuação do Estado gravitam noções que precisam ser adequadamente esclarecidas. Por isso, inicialmente, tratar-se-á das funções e importância que os limites e fronteiras, bem como as malhas territoriais cumprem na trama constituinte do território.

Com base em Raffestin (1993) pode-se reconhecer a importância das noções de limites e fronteiras no cotidiano. A relação com os seres e os objetos ocorre pelo estabelecimento desses. Trata-se da definição de um campo no qual esta relação tem origem,

47 opera e se desfaz. Atuando como um sistema de sinais, visíveis ou não, assinalados no espaço ou em uma representação (cartográfica) que marcam um campo para uma relação ou ação diferenciada.

Ainda segundo o autor supracitado, três funções vinculam-se às fronteiras e limites. A primeira é a função legal, por onde ocorre o exercício de instituições jurídicas e normativas regulamentadoras das atividades sociais e produtivas. Qualquer que seja a dimensão da unidade territorial, a função legal está presente em formas de leis, por exemplo. Uma segunda função é a de controle. Nesta, busca-se inspecionar a circulação dos homens, dos bens e de informação em geral. Tal função é essencial devido às diferenças de relações diplomáticas e de segurança. Por último, tem-se a função fiscal considerada importante num cenário de protecionismo. Esta pode ser resgatada pela geração de impostos extraídos das transações comerciais de várias naturezas, por exemplo. A depender de objetivos e de intenções surgidas em circunstâncias específicas instauradas entre os atores políticos, no caso, as unidades de Estado, estas funções podem ser adiadas, suprimidas ou reestabelecidas.

De fato, considera-se no quadro atual de análise, que as funções se imbricam, sendo uma garantidora e, ao mesmo tempo, justificadora das outras. O controle da circulação de pessoas, mercadorias e toda ordem de informação são também portadoras da possibilidade de circulação de recursos financeiros, de dinheiro ou de capitais. Por exemplo, o controle da circulação associado a um eficiente sistema de controle fiscal (ISS, ICMS, FPM, entre outros) é fundamental para garantir recursos em forma de contribuições.

Entende-se, portanto, que pela capacidade de garantir as funções legais, fiscais e de controle, não é razoável a ideia de que a composição de limites se dá ao acaso, ou se formam por um processo natural.

Além dos limites e fronteiras, cabe esclarecer o papel da malha ou tessitura no campo analítico do território. A malha (mas também os nós e as redes) é chamada a atuar (ou se constituir) sempre que ocorre uma prática espacial induzida por ações e comportamentos, ou seja, sempre que necessário para que atores operem seus campos de ação. Malhas, portanto, viabilizam um controle ou manutenção de uma ou várias ordens de um território. Para Raffestin (1993) é a compreensão da malha ou tessitura que melhor implica a noção de limites. É também um componente de toda prática espacial, uma vez que toda ação requer, de imediato uma delimitação. Daí o autor afirmar que a constituição de um território tem como elemento fundamental uma malha.

48 Portanto, limites, fronteiras e malha territorial fazem parte da reprodução social. O elemento social é dado pelo caráter existencial de uma coletividade. É esse “jogo geométrico dos limites” (Raffestin, 1993, p. 169) que mantém e organiza as relações entre os territórios. A definição de fronteiras funciona de acordo com um projeto sociopolítico ou socioeconômico e é por meio desses projetos que é conveniente situar a problemática. Sempre que são insatisfatórios, do ponto de vista existencial, ocorrem modificações no sistema de limites. Do mesmo modo quando a malha é alvo de interesse de um ator, este se esforça por escolher o sistema que melhor corresponda ao seu projeto. Quaisquer que sejam as mudanças, gera-se uma nova quadricula, por onde se instaura, por bem ou por mal, uma nova territorialidade.

Esses elementos estão a serviço da organização do território, inscritos de forma material (muros, cercas, marcos) ou através dos instrumentos de representação, como mapas, cartas, bases de sistemas de informações geográficas. No entanto, as informações fazem referência ao exercício da formação de um território. Cabe, assim, compreender o significado e as possibilidades conceituais ligados ao termo.

A discussão sobre território está presente desde as manifestações políticas clássicas da Grécia, num debate entre o tamanho, a estrutura e o uso das cidades livres gregas. Mas é sem dúvida, por seu vínculo com o exercício político, através da constituição dos primeiros Estados nacionais europeus que o território adquire status de elemento estratégico e vital.

De fato, o território sempre suscitou referências identitárias, sociais, políticas, jurídicas e econômicas, acalorando debates sobre nacionalidades, regiões e lugares, que circundados por fronteiras políticas, individualizam-se jurídica e politicamente. A exaltação política e a exatidão geométrica do território cristalizaram-se, sobretudo, a partir do século XVII. (Cataia, 2011, p.116)

Nesta perspectiva, o solo é o elemento material fundador do Estado sobre o qual se desenvolve todo o trabalho social através do controle estatal, havendo, portanto, uma equivalência do território ao Estado (Cataia, 2011). O Estado Nacional é o gerente do poder dos povos sobre os territórios por eles ocupados. Tal formulação considera-o como única fonte de exercício de poder, que adquire, através do solo, uma expressão espacial.

Por isso, afirmar-se que a posse, o controle e a submissão do território tem marcado a história dos Estados modernos. Nesses, a construção de um imaginário nacional

49 apoia-se na concepção de território como patrimônio da nação, garantido pela ordem estatal, para o uso das futuras gerações (Castro, 2010).

Sobre tal perspectiva as fronteiras tornaram-se importantes e passaram, junto com o exercício da soberania, a constituir a expressão territorial e consequentemente os limites da soberania do Estado.

Sobre o conceito de território afirma-se:

Ele é o recipiente físico e o suporte do corpo político organizado sobre uma estrutura de governo. Descreve a arena espacial do sistema político desenvolvido em um estado nacional ou uma parte deste que é dotada de certa autonomia. Ele também serve para descrever as posições no espaço das várias unidades participantes de qualquer sistema relações internacionais. Podemos considerar, portanto, o território como uma conexão ideal entre espaço e política. Uma vez que a distribuição territorial das várias formas de poder político se transformou profundamente ao longo da história, o território também serve como uma expressão dos relacionamentos entre tempo e política. (Gottmann, 2012, p. 523)

Percebe-se que a principal característica desse conceito de território acima exposto, persiste na representatividade política do Estado em suas diversas formas de governo.

Também é necessário considerar que o Estado mantém, sob sua tutela, o acesso e a regulação aos recursos do solo, seja qual for a esfera de representatividade, desde a organização internacional à ação municipal. Nesse aspecto, dois fatos precisam ser considerados para que a relação entre solo e Estado seja atual. Primeiro, considerar o contemporâneo contexto das complexas fontes dos capitais que circulam de forma global através da financeirização. Segundo, reconhecer os novos papéis atribuídos ao Estado no contexto neoliberal, especialmente no que concerne a permanente abertura de mercados e redução de barreiras ao acesso a matérias-primas, ao movimento de mercadorias e à aplicação de capitais no território (Harvey, 2008).

Revela-se, desta forma, a expressão recente dos Estados. Como reforça Cataia (2012, p. 119), “desempenham o papel crucial de apoio aos empresários, assumindo parte de seus custos de produção, garantindo monopólios e ‘quase-monopólios’ às expensas de outros capitais”. Ou seja, o Estado racionaliza o uso dos recursos para assegurar a mobilidade do capital através dos arranjos institucionais, das normas e infraestruturas seletivamente

50 elaboradas e implantadas com vistas a garantir o sucesso dos investimentos dos grandes capitais (Cataia, 2012).

Há, portanto, um marcante exercício político nessa concepção. Através de sua influência política (ou seu poder de decisão) sobre a sociedade, o Estado (de início o Estado nacional) foi considerado uma instituição exclusiva da constituição de territórios (de início também nacional).

Castro (2010) lembra que a palavra política possui dois sentidos. A concepção mais restrita se refere à ação institucional do Estado, cujas decisões afetam toda a sociedade sob sua jurisdição. E a concepção mais ampla, refere-se ao conjunto de medidas/decisões que afetam diretamente atores sociais organizados em classe ou grupos de identidades específicas (uma empresa, um sindicato, uma associação, uma igreja, entre outros) vinculadas a uma área. Para a autora, a política compreende a expressão de modos de controle ou organização de conflitos sociais, de conflitos de interesses, de decisões e de ações que envolvem uma coletividade. Sua origem se liga a presença de grupos com diferentes interesses, tanto mais conflitantes à medida que há maior variedade e diversidade de composições no interior da sociedade. Essa última concepção de política é a que melhor se aplica aos problemas causados quando a insatisfação existencial da sociedade motivar a necessidade de revisão dos limites.

Não se pode ignorar a força do Estado sobre as instâncias políticas e territoriais. Mas, pensando numa concepção mais ampla de política, é também preciso admitir novos atores de representação e novas escalas de ação territorial dessas representações, desmistificando certo estatuto de exclusividade historicamente atribuído ao Estado.