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1 A análise do poder e o “economismo”

2.1 A inversão do aforismo de Clausewitz

A filosofia política da guerra, da qual Clausewitz seria o fundador, pode ser entendida de acordo com as linhas seguintes:

Clausewitz encara a guerra como um instrumento racional de política nacional. As palavras “racional”, “instrumento” e “nacional” são os conceitos chave do seu paradigma. Nesta ordem de idéias, a decisão de empreender a guerra “deveria ser racional, no sentido de que deveria ser baseada numa avaliação de custos e lucros da guerra. A seguir a guerra “deveria” ser instrumental, isto é, deveria ser empreendida com vista a alcançar-se um objetivo, e nunca por si própria; é no mesmo sentido que tanto a estratégia como as táticas devem ser dirigidas para um só fim, particularmente para a vitória. Por último, a guerra “deveria” ser nacional, para que o seu objetivo fosse a satisfação dos interesses de um Estado nacional e para que se justifique que todo o esforço de uma nação seja mobilizado a serviço do serviço militar. (RAPOPORT, p. XIII).

Apesar de Foucault ter se apropriado de algumas das teses do paradigma da guerra e da filosofia de Clausewitz, não é adequado considerá-lo uma espécie de discípulo do famoso militar, conhecido como o filósofo da guerra. Antes de tudo,

parece ser a filosofia de Nietzsche e a sua visão emulativa da existência e do conhecimento a força motriz que impele Foucault a optar pelo princípio da guerra como base das relações políticas.

O raciocínio de Foucault pode ser ajustado, por exemplo, até certo ponto à visão clausewitziana quanto a racionalidade da guerra remeter necessariamente a uma avaliação de custos e benefícios diante da necessidade de atingir determinados fins, pois se para Foucault o conhecimento e a verdade são a origem da guerra, toda “verdade” resulta da tomada de posicionamentos dos homens que refutam ou adotam certas verdades, a depender dos possíveis benefícios que elas possam promover, sendo esta, aliás, uma das características do vitalismo nietzschiano, ou seja, uma variante do ceticismo calcada na idéia de que a verdade ou o que se chama verdadeiro é fundamentalmente o que confere vida, afirmando-a em suas potencialidades.

O que o pensamento de Clausewitz mais evidentemente parece ter aguçado em Foucault, foi a percepção da política e da guerra como a representar as duas faces de uma mesma moeda. Mas o que seria a guerra?

Não comecemos por uma definição da guerra, difícil e pedante; limitemo-nos à sua essência, ao duelo. A guerra nada mais é que um duelo em escala mais vasta. Se quisermos reunir num só conceito os inumeráveis duelos particulares de que a guerra se compõe, faríamos bem em pensar na imagem de dois lutadores. Cada um tenta, por meio da sua força física, submeter o outro à sua vontade; o seu objetivo imediato é abater o adversário a fim de torná-lo incapaz de toda e qualquer resistência.

A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade. (CLAUSEWITZ, 1996, p. 7).

Como o que aqui se configura é o interesse pela interação entre guerra e política, segue-se:

[...] a guerra não é somente um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, uma realização destas por outros meios. O que se mantém sempre característico da guerra releva puramente da especificidade dos meios que ela põe em prática. [...] a intenção política é o fim,

enquanto a guerra é o meio, e não se pode conceber o meio independentemente do fim. (Ibdem., p. 27).

A política é o pano de fundo circundante do palco em que se desenvolve a guerra. Clausewitz, ao considerar que a guerra é a continuação da política por outros meios, concebe-a como uma forma de adensamento das relações políticas. Presume-se que o fim da política também se identifica com a pretensão de submeter a vontade do adversário, sendo que a diferença primordial resulta dos meios efetivamente aplicados. A guerra identifica-se com o sangue inerente ao encontro dos batalhões, das armas que sepultam os corpos em meio à poeira e aos pedidos de misericórdia. A necessidade de recorrência ao uso da força física mostra-se como elemento distintivo entre os confrontos políticos e os bélicos. Dessa maneira Clausewitz restringe o campo de atuação da guerra.

A proposta de inversão do aforismo clausewitziano permitirá a Foucault extrair férteis conseqüências para o desenvolvimento de suas teses. Se a política pode ser encarada como a continuação da guerra por outros meios, uma primeira resultante é um efeito de abertura em relação ao que se concebe como guerra.

Segundo essa visão, a guerra passa a ser o pano de fundo, o elemento gerador das disputas políticas, desapegada de suas limitações espaciais e do necessário emprego da força física, o que não significa o completo abandono desse tipo de força, mas apenas sua restrição por meio da ponderação de limites. A política como guerra por outros meios, consiste na compreensão do poder como elemento potencialmente identificável em qualquer relação social cujas estratégias se fariam sentir e estariam contidas se materializariam nas práticas classificatórias e divisórias. Além das técnicas de sujeição, existem paralelamente as técnicas de si, formas de resistir e combater o poder, direcionáveis tanto ao exterior como ao interior, resultantes da precariedade do poder. À medida em que a concepção de guerra

Clausewitz proclama que a guerra tem como objetivo abater o adversário privando-o de qualquer capacidade de resistência, Foucault, à sua maneira, mostra-se disposto a destacar o jogo dos contra-poderes.

Foucault concebe que toda relação de poder identifica-se com uma relação de forças, cuja interpretação mais específica passa pelo reconhecimento de estratégias localizáveis historicamente. Essas relações de forças, duelos representativos da guerra, seriam supostamente extintas ou diminuídas pelo poder político. Mas para Foucault, a principal função do poder político não seria a extinção das relações de força, o que significaria uma contradição com a própria lógica do poder político, mas o restabelecimento contínuo de novas relações de força, permitindo novos desequilíbrios, instrumentos de sujeição na tessitura das relações sociais.

A política seria a instância, o conjunto de instituições aplicadoras de táticas ratificadoras, ou até mesmo modificadoras das formas adquiridas pelas disputas travadas na sociedade, a depender da relação de forças configurada em dado momento. Assim, a história da política é a história das modalidades e das estratégias de combate.

A paz não pode ser considerada senão como trégua, o instante de calmaria que antecede ou demarca o final das batalhas que brevemente irão recomeçar. Muitas vezes, os momentos de paz relativa podem servir como indícios de novas estruturas de relações de forças, da emergência de novos interesses ou novos pontos de estrangulamento de expectativas conflitantes.

Mas existe ainda uma terceira conseqüência advinda da inversão do aforismo:

[...] a decisão final só pode vir da guerra, ou seja de uma prova de força em que as armas, finalmente, deverão ser os juízes. O fim do político seria a derradeira batalha, isto é, a derradeira batalha suspenderia afinal, e afinal somente, o exercício do poder como guerra continuada. (Ibdem, p. 23).

Em momentos passados foi afirmada a existência de três filosofias da guerra. Inicialmente, tratou-se de apresentar em seus delineamentos mais gerais a concepção política, associada ao nome de Clausewitz. Nada foi informado acerca das duas outras visões, chamadas de concepções escatológicas e cataclísmicas.

O problema a ser apresentado surge da afirmação de Foucault sobre a possível extinção do político a partir de uma guerra final, o que permitiria enquadrá- lo como representante de uma das outras correntes.

A visão escatológica baseia-se na crença de uma guerra final, cujo potencial destrutivo determinará o fim da história ou a passagem para um novo período histórico da humanidade, possibilitando, dessa maneira, a realização de um desígnio maior. Em sua variante messiânica, o cumprimento do grande destino, será concretizado por uma força militar inquebrantável. Esta vertente englobaria os discursos associados às idéias de guerra santa ou de raça eleita. Outras versões prevêem a instauração da paz universal por imposição dos vencedores. Uma outra corrente, propugna que o responsável pelo projeto de paz mundial surja em meio ao caos absoluto advindo da guerra final, como ocorre na escatologia cristã e na escatologia comunista.

A perspectiva cataclísmica visualiza a guerra como um flagelo a estender-se por toda a humanidade ou sobre uma parte dela. Também a visão cataclísmica pode ser decomposta em duas variantes: a etnocêntrica, tendente a atribuir a origem dos males ao "outro", denotando uma tendência maniqueísta; e a global, que compreende a guerra como flagelo que vergasta toda a humanidade, sem que se possa determinar algum responsável específico pela destruição. Atualmente, algumas tentativas de abordagens científicas da guerra, consideram a ordem mundial como um sistema dinâmico de relações marcadas por um frágil equilíbrio,

potencialmente estável, mas também sujeito a rupturas, dependendo do jogo das tensões intra-sistêmicas (Cf. RAPOPORT, 1996, p. XV-XVII).

Por mais provável que possa parecer, não seria cabível associar o modelo foucaultiano de guerra à hipótese escatológica. Muito embora Foucault refira-se a uma derradeira batalha em sua aula de 1976, este ponto de vista sobre a guerra não será mantido. Caso se desejasse sustentar, de qualquer modo, seu pensamento atrelado ao paradigma escatológico, tal ligação jamais poderia estreitar-se a ponto de identificar uma coalizão com a variante messiânica, pois não há em Foucault qualquer defesa de uma suposta classe ou mesmo de indívíduos eleitos ou escolhidos, supostamente capazes de instaurar a paz.

Quanto à visão cataclísmica, da guerra como catástrofe que atinge parcial ou totalmente a humanidade, parece igualmente não se combinar às teses de Foucault, sobretudo em sua variação etnocêntrica, tendenciosamente inclinada a associar o mal aos outros. Similar é a situação do modelo global, pois se a guerra e a destruição não dependem de algum elemento ou agente específico, em Foucault, pelo contrário, encontra-se a tese de que a guerra, as lutas são travadas por todos na sociedade, além de que as instituições seriam os principais agentes específicos fomentadores da guerra.

O problema da afirmação de Foucault sobre uma guerra final deve ser compreendido em seu contexto, ou melhor, atentando-se para as circunstâncias de uma aula que não pretendia delinear enunciados definitivos.

Em uma entrevista concedida em 13 de outubro de 1977, Foucault se põe a trilhar um caminho bem diverso quanto à questão dos enfrentamentos serem ou não limitados:

[...] é mais a luta perpétua e multiforme que procuro fazer aparecer do que a dominação morna e estável deum aparelho uniformizante.

Em toda parte se está em luta [...], e, a cada instante, se vai da rebelião à dominação, da dominação à rebelião; e é toda esta agitação perpétua que gostaria de tentar fazer aparecer. (FOUCAULT, 2003, p. 232).

Esta concepção permanecerá inalterada nos trabalhos posteriores de Foucault. Ao postular que o poder difunde-se no interior das relações sociais, os choques e as batalhas dos homens não podem ser considerados como manifestações ocasionais, externas a essas mesmas relações, mas sim como algo intrínseco a elas em maior ou menor intensidade. Quanto ao Estado, seu aparelho e as instituições que o sustentam, (como a prisão) nada mais são do que um dos pontos localizáveis em que as relações de poder atingem seu máximo nível de adensamento.

Ademais, no que diz respeito a essa discussão, caso se atente que Clausewitz concebia a guerra como a continuação da política por outros meios, seria então a guerra um elemento intrínseco ao ser da política, de tal maneira a guerra não pode ser considerada uma anomalia, como algo do qual os homens pudessem um dia se livrar. Em razão de analogia, a postura de Foucault ao considerar que a política é a continuação da guerra, permite presumir, que também por outros meios a guerra no horizonte da história, mescla-se a qualquer linha de fuga possível.