• Nenhum resultado encontrado

Em seu prólogo ao Zaratustra, Nietzsche projetou uma alternativa aos dois percursos. Nesse texto, prenhe de sentidos ainda por desterrar, inicia-se a narrativa da ascese de Zaratustra, que se recolhera durante dez anos em uma caverna no interior de uma montanha. Ao completar quarenta anos, finalmente transmutado, resolve, tal como o sol que o iluminava, lançar sobre os homens a luz do que consigo mesmo aprendera. Acompanhado de sua águia e de sua serpente, ruma para as profundezas habitadas pelos homens, nas regiões situadas abaixo da montanha. Ao chegar aos bosques que circundavam a sua morada, encontrou-se com um velho que ali morava em uma cabana. Mostrando-se, o ancião, capaz de reconhecer em Zaratustra o jovem que há anos rumara para o cume da montanha em busca de iluminação, saúda-o, mas sendo perspicaz o bastante para identificar a transformação operada naquele homem tenta preveni-lo quanto aos perigos que aguardam os incendiários. Inamovível em seu propósito de ter com os homens ofertando-lhes o tesouro de sua sabedoria, Zaratustra ainda escuta as últimas advertências do ancião e sobre elas se põe a pensar:

Não vai para junto dos homens! Fica no bosque! Prefere então os animais! Por que não queres ser como eu – urso entre os ursos, ave entre aves?

– E que faz o santo no bosque? – perguntou Zaratustra. O santo respondeu:

– Componho cânticos e os canto, e quando os faço, rio, choro e murmuro. Assim louvo a Deus.

Cantando, chorando e murmurando, louvo a Deus, que é o meu Deus. Mas, vamos, qual é o presente que nos trazes?

Ao ouvir Zaratustra estas palavras, saudou o santo e lhe disse: – Que teria para vos dar? Deixai-me ir embora bem depressa, para que não vos tire nada!

E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem duas crianças.

Mas Zaratustra quando só, falou assim ao seu coração:

– Será possível? Esse santo ancião não ouviu em sua floresta que Deus morreu!. (NIETZSCHE, 2008, p. 17-18).

O que me importa destacar refere-se ao que o velho sábio oferecera a Zaratustra: uma vida calma, sem sobressaltos e ameaças, dedicada ao amor a Deus. A negativa de Zaratustra, sua ironia ante o convite, denuncia que a sua intenção é bem diversa daquela que movem o ancião. Do mesmo modo que Zaratustra nada tem a ofertá-lo, não será um presente, no sentido usual da palavra, o que ele irá oferecer aos homens viventes além do bosque. Movido pelo desejo de ensinar aos homens o caminho que leva ao Além-homem, Zaratustra chega a mais próxima cidade vizinha da floresta e lá, ao se deparar com uma multidão concentrada em um praça que se preparava para assistir ao espetáculo de um bailarino de corda, assim se pôs a dizer:

Eis, eu vos ensino o Além do Homem.

O Além do homem é o sentido da terra. Assim fale a vossa vontade: possa o Além-Homem tornar-se o sentido da terra!

Exorto-vos, ó meus irmãos, a permanecerdes fiéis à terra, e a não acreditar naqueles que vos falam de esperanças supraterrestres. São eles envenenadores, conscientemente ou não. São menosprezadores da vida, moribundos intoxicados de um cansaço da terra; que pereçam, pois!. (NIETZSCHE, 2008, p. 19).

Bem difícil será, entretanto, fazer com que os homens abandonem a ilusão metafísica, os devaneios idealistas em nome da terra. As exortações de Zaratustra são retribuídas com chistes e risadas pelo populacho. Apenas a apresentação do acrobata deterá a incômoda risadagem. O saltimbanco, ao atingir o meio do caminho entre as duas torres ligadas pela corda, em que desenvolvia o seu número, foi interceptado por um segundo acrobata, este, vestido de palhaço, proferia contra o seu companheiro de espetáculo os mais diversos impropérios, certamente para produzir um efeito cômico. Assim que ficaram bem próximos, o desbocado saltou por

cima do seu oponente fazendo com que ele perdesse o equilíbrio e terminasse por se precipitar no vazio. A turba, que antes era um ponto escuro de aglutinação, logo se dissipou e o ponto em que o corpo deveria se espatifar, em poucos instantes, foi completamente franqueado. Apenas Zaratustra manteve-se em seu lugar e foi bem próximo de em que ele estava que o corpo caiu desconjuntado, porém, ainda vivo, e então os dois puseram-se a conversar.

– Que fazes aqui? – disse ele afinal – Eu já sabia há muito tempo que o diabo me daria uma rasteira. Ele vai levar-me para o inferno. Tua alma vai morrer mais depressa ainda que o teu corpo. Não temas mais.

O homem ergueu um olhar desconfiado.

Se falas a verdade, disse-lhe, nada perderei perdendo a vida. Nada mais fui que um animal ao qual ensinaram a dançar à força de pancadas e magros alimentos.

– Não – disse Zaratustra. – Tu fizeste do perigo a tua profissão, o que não é para desprezar. Agora vais morrer por causa da tua profissão; por isso vou enterrar-te com as minhas próprias mãos. (NIETZSCHE, 2008, p. 30).

As palavras de Zaratustra podem ser interpretadas como uma exortação, cujo propósito é fazer com que os homens pensem sobre os seus medos, e igualmente, sobre como as suas vidas são estruturadas em função desse sentimento. Zaratustra algumas vezes recebe conselhos, como se dá no caso do velho sábio do bosque, em outros momentos, ouve advertências, como acontece na passagem de seu breve encontro com o outro acrobata, responsável pelo acidente fatídico. Em todos esses eventos uma atmosfera um tanto ameaçadora se faz sentir. Porém, Zaratustra não demonstra o menor sinal de ansiedade, sequer de receio, e prossegue pelo caminho, sem desviar-se, quer lhe sejam as circunstâncias favoráveis ou não.

Um tal caminho pouco tem a ver com a fixação de um trajetória segura, livre de ameaças, gatunos e salteadores. Para dizer corretamente, Zaratustra representa o avesso da ação isenta de riscos. Em primeiro plano, por ser uma ação dessa

natureza nada mais que uma ilusão, e, num segundo aspecto, pelo fato da fidelidade à terra demandar o amor ao risco.