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A invisibilidade inerente

Agora apresento algumas questões trazidas pela minha pesquisa de doutorado, realizada na localidade de Várzea Queimada, zona rural do município de Jaicós, estado do Piauí. Essa pesquisa foi realizada com o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e foi apoiada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Brasil Plural (INCT Brasil Plural – CNPq/CAPES/FAPESC/FAPEAM).9

Várzea Queimada é uma pequena localidade rural no interior do Piauí. Sua população é de aproximadamente 900 habitantes, que vão e que vêm de outras cidades, como é o caso de Jaicós, de São Paulo e de outras que estão emergindo como alternativa válida para a busca de melhores condições de vida ou para acumular recursos para a compra de bens de consumo sonhados por diferentes gerações. Lá nasceram 34 surdos, localmente designados como mudos.

Na comunidade, todos fazem “Cena” com os “mudos”. Cena é a palavra designada para falar sobre a forma específica de comunicação gesto-visual constituída na comunidade e utilizada pelos seus membros na comunicação com mudos e entre estes. A Cena pode ser vista como um intervalo criativo entre o contexto social, o uso prático e a vivência/ experiência histórico-cultural na localidade. Ela ancora e está ancorada nas relações sociais e nos participantes do ato de fala que, de alguma forma, produzem o significado a partir da manipulação das informações dadas pela própria Cena.

Cabe lembrar que a Cena é uma língua de sinais diferente da Língua Brasileira de Sinais (Libras), legitimada pelo estado brasileiro e carro-chefe das ações do estado para a “inclusão” dos surdos na sociedade. É pela Cena, e não pela Libras, que as pessoas se comunicam em Várzea Queimada. E foi na tensão entre Cena e Libras que eu cheguei na comunidade, a partir de uma das inúmeras ações de inclusão dos surdos, realizada por uma instituição católica de São Paulo nos sertões do Piauí. Para muitos, os surdos de Várzea Queimada “não tinham língua” antes do curso realizado, e a Cena é vista como inferior, que

necessita de certo refinamento tendo como base a Libras e as outras conceitualizações das políticas públicas.

Na comunidade, a Cena “é dos mudos”. Ou seja, Cena é um dos sinais diacríticos que caracterizam um grupo. Ser mudo é, acima de tudo, fazer uso da Cena, em detrimento da oralidade. Porém, como todos na localidade são aptos a fazer Cena, não são os mudos tidos como “diferentes”. Eles sempre estiveram inseridos no processo social e respondem, em menor ou maior grau, aos anseios sociais a eles direcionados. O que quero argumentar é que, diferentemente de uma história hegemônica sobre a surdez no Brasil (e no mundo), os surdos em Várzea Queimada estão inseridos no processo social.

Eles fazem parte da comunidade de prática que constitui a Várzea Queimada, compartilhando os afazeres cotidianos, os rituais e as “regras” sociais. Eles estão na história da comunidade, seja do ponto de vista experiencial (vivenciando e partilhando histórias sobre ela), seja enquanto personagens: existe uma história nativa sobre a origem da surdez na localidade.10 Os surdos são categorizados por uma série

de elementos que os transformam enquanto sujeitos liminares, mas isso não os coloca em desigualdade com os demais. Eles sofrem os mesmos desafios que seus parentes: falta d’água, dificuldade de acesso a recursos financeiros, não letramento histórico, entre vários outros que marcam as comunidades sertanejas brasileiras.

Historicamente, eles são mudos pois fazem Cena. Fazendo Cena, colocam a comunidade de prática em ação. Todos fazendo Cena, a diferença se transforma em insignificante do ponto de vista relacional. Se todos fazem Cena, não há, teoricamente, barreiras que os diferenciam. Com a interação coletiva “na Cena”, os mudos não podem ser enquadrados como pessoas com deficiência da forma como encararíamos em outros contextos. Os mudos, em Várzea Queimada, precisam ser analisados de outras perspectivas e não necessariamente do ponto de vista do conceito hegemônico de “pessoa com deficiência”.

Porém, como já anunciado no início deste texto, a expansão da “visibilidade” da deficiência, a partir de políticas públicas, marcou também a pequena localidade no sertão piauiense. No ano de 2005, uma equipe de “doutores de São Paulo”11 realizou o primeiro diagnóstico

10 Mais detalhes sobre as teorias nativas sobre a origem da surdez na Várzea Queimada

podem ser obtidos em Pereira (2012).

11 “Doutores de São Paulo” é a expressão utilizada no vilarejo. Trata-se de um conjunto

biomédico de deficiência auditiva na comunidade. Essa história está marcada no cotidiano dos moradores da Várzea Queimada e serve como um disparador de uma série de releituras das práticas sociais da (e na) comunidade.

O diagnóstico trouxe um nome para os mudos: eles são deficientes auditivos e o “problema” está ancorado no parentesco. Com a leitura da equipe de São Paulo sobre a surdez bilateral profunda, as causas foram averiguadas e o veredicto disparado: é pelo excesso de casamentos entre consanguíneos que a surdez seria predominante na comunidade. Com o veredicto, vieram também algumas indicações: proibições de casamento entre primos (uma das formas preferenciais na comunidade) e a necessidade de inserção de “políticas de inclusão”.

Após a visita dos pesquisadores de São Paulo, várias ações foram disparadas em Várzea Queimada. No ano de 2008, uma reconhecida instituição de educação de surdos da cidade de São Paulo iniciou o primeiro curso de Língua Brasileira de Sinais (Libras). Instrutoras da metrópole foram para o interior do Piauí ensinar “uma língua” para a comunidade. O objetivo era ensinar a língua de sinais oficial brasileira para aquela população e também fomentar outras políticas de inclusão social para o que elas chamavam de “comunidade surda” de Várzea Queimada.

O intuito das educadoras de São Paulo estava de acordo com o ponto de vista das políticas públicas: trabalhava com conceitos hegemônicos (e em voga) de surdez, enquanto uma “diferente cultura” e de língua de sinais, vista a Libras enquanto oficial do Brasil, e com o fato de os surdos necessitarem aprender uma língua única para a inserção na comunidade surda nacional. Para elas, era indispensável fomentar a “autoestima” dessas pessoas a partir do fortalecimento delas enquanto grupo diferente dos demais da localidade. Ou seja, ensinando a Língua Brasileira de Sinais, a cultura surda seria garantida e existiria uma maior coesão do grupo de surdos da localidade. O que essa primeira ação do Estado na localidade fala é mais do que o ensino de uma língua oficial: é o pressuposto da construção homogênea de formas de “ser” surdo. Essas ações nos falam, pelo menos, três coisas: surdo se comunica em Libras, surdo “é diferente” e tem uma cultura, e surdo precisa de ações de inclusão.

comunidade com o intuito de conhecer e estudar os motivos do nascimento de um número expressivo de “deficientes auditivos” em Várzea Queimada. Esse fato é bastante importante nas histórias dos moradores de Várzea Queimada, especialmente quando o assunto é a surdez.

Pois bem, parece que essas ações dialogam muito mais com pressupostos globais sobre surdez e deficiência do que com as formas locais de pensar e se relacionar com o mundo.

Mas, as inserções de políticas públicas na localidade não param nessa ação da referida instituição. A prefeitura do município, tendo como base as ações nacionais e estaduais, lança uma série de ações para “as pessoas com deficiência em Jaicós”. Vale ressaltar que o estado do Piauí cria uma Secretaria Especial para inclusão da pessoa com deficiência, visto o envolvimento pessoal do governador e sua esposa com essas questões: uma de suas filhas é uma pessoa com deficiência, Daniele Dias, que dá o nome para um famoso centro de reabilitação na cidade de Teresina.

O interessante é que vivenciei exatamente essa efervescência da questão da deficiência no município de Jaicós. Em quase todos os eventos do municípios, os “surdos” de Várzea Queimada eram chamados para participar. Eles eram lembrados nos discursos oficiais do prefeito e de outros secretários. Ações de “resgate da autoestima” e de “inclusão” dos surdos eram amplamente divulgadas e promovidas pela administração pública.

O discurso era o mesmo que o da maioria das políticas: criou- se um sujeito específico, nomeado como “pessoa com deficiência”, que precisaria de ações do estado para a promoção do seu bem-estar. Esse sujeito, notadamente homogeneizado e hegemônico, precisaria ser atingido pelas políticas públicas. E os mudos de Várzea Queimada foram o foco privilegiado das ações. Porém, nada foi pensado sobre a realidade local para a aplicação de tais políticas.

Por exemplo, criou-se uma turma de Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA) para letrar os surdos, agora pensados enquanto os sujeitos macro das políticas. O dilema era grande quanto às formas de alfabetização: contratava-se uma professora de Libras ou se utilizaria como recurso humano uma professora nativa que dominava a língua local? Mesmo tendo escolhido a segunda opção, a ação não foi bem recebida, nem pelos mudos, nem pela comunidade em geral. Nos discursos dos moradores de Várzea Queimada, escola é coisa de “criança”, e os surdos não eram crianças. Além disso, eles estavam em uma turma específica, composta exclusivamente por surdos, o que provocou uma segregação e era vista como a “sala dos mudos”. Antes, eles eram iguais aos demais adultos não alfabetizados. Depois das ações, era “tudo para os mudos”.

E isso se repetiu com a Dança de São Gonçalo, manifestação tradicional da comunidade. Durante as ações da instituição de educação

de surdos de São Paulo, um dos agentes da prefeitura municipal “percebeu a potencialidade” dos surdos na Dança de São Gonçalo e propôs, como uma forma de inserção social e resgate da cultura local, que fosse formado um “Grupo de São Gonçalo por Pessoas Surdas”.12

Mais uma vez, cabe relacionar isso com as propostas do governo do estado do Piauí de resgate de uma “identidade nacional” e de identidades regionais a partir de ações que contemplem coisas “tipicamente piauienses”. O governo do estado lançou a campanha e um vídeo com o hino estadual. Nele, figuras folclóricas do Piauí são trazidas em imagens como “os vaqueiros”, o São João, algumas comidas típicas como o baião de dois e a “margarida na manteiga”. Junto com essa proposta, vem uma série de investimentos nesse tipo de ações, que contemplam, enaltecem e visibilizam a “cultura piauiense”.13

O grupo foi criado, primeiramente, para fazer uma apresentação para a presidente da Fundação Nacional de Cultura, que estaria na cidade de Jaicós. Para prestigiar os “surdos de Várzea Queimada”, ela passaria uma noite na localidade para assistir à apresentação do grupo. Depois da primeira apresentação, o grupo virou uma das ações de “resgate da autoestima” dos deficientes auditivos da comunidade.

Porém, a Dança de São Gonçalo não é dançada por todos. Ela é um processo ritualístico em que as mulheres dançam para o santo agradecendo ou solicitando casamento. Os homens apenas assistem. No “São Gonçalo por pessoas surdas”, todos os surdos de Várzea Queimada são chamados a dançar: homens e mulheres, de todas as idades. Mais uma vez, a ideia de um grupo homogêneo, os surdos, daria o suporte teórico da ação.

Além das ações municipais, outras políticas públicas federais reconfiguraram as relações locais e as formas de a comunidade encarar os mudos. Na esteira das novas definições de “pessoa com deficiência” trazida

12 Rodas de São Gonçalo são formas utilizadas pela população de Várzea Queimada

para pagar uma promessa feita ao santo. Geralmente são promessas para arrumar relações maritais, feitas por mulheres. Elas devem “pagar” tantas rodas de São Gonçalo quantas foram acordadas com o santo casamenteiro. Na forma tradicional, mulheres da comunidade são chamadas para dançar, sendo aos homens reservado o direito de assistir, exceto quatro deles que são responsáveis pela condução da música (os “caqueiros”).

13 O que legitima essa ação são discursos de que o Piauí sempre fora um estado esquecido

pela nação e faz um chamamento aos governos municipais para o resgate da cultura local. Não menos importante é o vídeo, semelhante ao produzido pelo estado do Piauí, com o Hino Nacional Brasileiro vinculado a imagens que “valorizam a cultura nacional”, enfocando diferentes aspectos regionais (danças gaúchas, carnaval, “baianas” etc.).

pela Convenção, os anos de 2009 e 2010 foram marcantes para os mudos de Várzea Queimada. Quase todos obtiveram o Benefício de Prestação Continuada (BPC), ampliando em um salário mínimo a renda familiar mensalmente. Considerando a realidade de Várzea Queimada, esse dinheiro os coloca em um status diferenciado na localidade: eles acabam assumindo grande parte das obrigações financeiras da família e transformam-se em “superiors” do ponto de vista da renda familiar. Além disso, a concessão ou não do BPC para os mudos é fruto de várias especulações na comunidade.

Se o Bolsa Família, um benefício também bastante comum (e importante) na localidade tem os seus critérios quase que universalizados (a maioria absoluta das famílias recebe “o cartão”) e bem definidos, os motivos de obtenção do BPC não estão tão evidentes para os habitantes de Várzea Queimada. Com isso, várias suposições são feitas, que jogam com diferentes opiniões sobre por que determinado indivíduo recebeu o Benefício e outros não. Mais uma vez, uma série de critérios de diferenciação é acionada e gera, de alguma forma, pressupostos de “exclusão”. “Agora é tudo para os mudos” é a frase da vez quando se trata das políticas públicas na localidade.

Quando se propõe a mudança nas formas tradicionais de organização, seja com a implantação do São Gonçalo por pessoas surdas, seja pelo privilégio da “surdez” enquanto fator diacrítico para a construção de políticas, está-se valorizando a construção de um grupo que, antes disso, não era encarado enquanto passível de classificação “pela surdez”, mas sim pelas características liminares que o vinculavam.

Mas essas ações vão além e produzem também perigos para o desenvolvimento e a manutenção da Cena, língua de sinais local. Quando as políticas públicas produzem saberes hegemônicos que auxiliam na produção de grupos, elas trabalham com certos conceitos que, em sua esteira, trazem outras questões como a necessidade de padronizar a língua de sinais por meio da Libras.14

Nonaka (2011) já pontuava o risco de assistirmos, em pouco tempo, ao desaparecimento de um número incontável de línguas de

14 Não podemos esquecer das considerações de inúmeros autores sobre os elementos que

são indispensáveis para a produção de uma “língua”. Bourdieu (1996) e Gumperz (1972) argumentam sobre isso, ressaltando que para que haja uma língua é necessário o “código” e também os falantes. Esses falantes constituiriam a “comunidade de fala” responsável pela manutenção dessa língua. Tratando-se da constituição da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como oficial no país, faz-se necessário também a constituição de um grupo, qual seja, o que é nomeado como pertencente à “cultura surda”. Fiz algumas considerações sobre o papel da Libras na consolidação da nação (PEREIRA, 2009).

sinal pelo mundo. Sem dúvida, a extinção de várias línguas de sinais já ocorreu. Entretanto, como não existiram pesquisas, não conseguimos nem mesmo precisar os locais onde elas existiram, como e quando elas desapareceram. Essas formas locais estão sendo englobadas pelas políticas de “inclusão dos surdos”, que, geralmente, trabalham com perspectivas hegemônicas sobre o que seria uma língua e como se daria a educação ou a inserção dos surdos nas sociedades globalizadas.

A autora nos fala da fragilidade das relações sociais que mantêm vivas as línguas de sinais rurais ou indígenas (aquelas não oficiais nos países). Da mesma forma que as demais línguas de sinais não oficiais, é na complexidade das relações sociais em Várzea Queimada que a Cena se mantém acesa. É na produção cotidiana, dentro dos encontros face a face, que essa linguagem se perpetua, se complexifica, se aprimora e se torna passível de reprodução. É na relação imbricada entre cultura e linguagem que ela continua viva.

Revisando a literatura sobre as línguas rurais ou indígenas de sinais, podemos ver que a grande maioria das comunidades nas quais essas formas de comunicação se desenvolveram vem sofrendo a influência de políticas públicas. Em quase todas as comunidades, a linguagem local tende a ser substituída pelas línguas nacionais, com a argumentação de que é necessária a inserção dos surdos nas “culturas surdas nacionais”, sendo a língua a primeira forma de aproximação.

Devemos pensar, assim, que ao mesmo tempo que as políticas vêm aumentando significativamente a qualidade de vida de uma parcela significativa da população, especialmente surdos, elas também homogeneízam formas de vida. No embate da produção de políticas globais aplicadas em nível local, os modos de vida das comunidades acabam sendo os menos privilegiados, o que acarreta profundas transformações. Quando pensamos em uso da língua, e aqui saliento a Cena de Várzea Queimada, devemos pensar que nem sempre a homogeneização proposta pela Libras (ou por outras políticas) pode ser aplicada com todos os seus elementos.

É nesse sentido que urge uma reflexão sobre a Cena enquanto uma língua que corre sérios riscos de desaparecer. Autores já apontaram essas questões e demonstraram a importância de nós, cientistas, assumirmos a responsabilidade da descrição, documentação e reflexão sobre essas formas específicas de comunicação que estão na berlinda. Como argumenta Nonaka (2009, p. 214) “Indigenous sign languages tend

to arise suddenly, spread rapidly, and disappear quickly”.

Para que possamos assumir de vez o desafio de documentar essas outras línguas, os autores apontam a importância de estudos etnográficos

que descrevam as comunidades onde essas formas de comunicação nasceram. É a antropologia, e suas formas clássicas de trabalho, que está sendo chamada para contribuir nessa questão.

As descrições etnográficas das comunidades onde as línguas de sinais não oficiais surgiram e se mantêm podem auxiliar também no estabelecimento de políticas públicas que levem em consideração o pluralismo linguístico entre os surdos no território. Já tivemos inúmeros avanços com a criação da Lei de Libras, mas ainda precisamos pensar em como transformar a diversidade em material de elaboração de políticas públicas; diversidade não apenas no nível discursivo, mas também em seu uso prático, a começar pelo respeito à preservação e ao uso de uma língua de sinais específica no território nacional, com a elaboração de estratégias educacionais, sociais, entre outras, que levem em consideração essas nuances.

O retorno às políticas ou das formas possíveis de