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3. A IRONIA EM O DOENTE IMAGINÁRIO, DE MOLIÈRE, E A MÃO E A LUVA, DE

3.6. A ironia nas personagens femininas em A mão e a luva

A ironia é a reflexão estética do romance moderno e é um traço quase normal nas obras machadianas, principalmente o autor “era inclinado a ver as coisas do mundo com todos os gamas da ironia” (REALE, 1982, p.11), e, dessa forma, a conviver num mundo que, apesar de injusto e contraditório, “vale a pena viver”, mesmo com o peso dos preconceitos que esmagam sua presença. Ele se defende ou mesmo se vinga usando a fala de suas personagens e dessa forma mantem a distância, usando palavras com sentimentos capciosos.

O ironista, em seu papel de ingênuo, propõe um texto, mas de tal maneira ou em tal contexto que estimulará o leitor a rejeitar o seu significado literal expresso em favor de um significado “transliteral” não expresso de significação contrastante. (MUECKE, 1995, p.58).

A ironia não é fingir dizer algo com outro sentido, no entanto, é recorrente nas falas das personagens deixar subentendido suas verdadeiras intenções, ou seja, fazer “insinuações e alusões, onde a pessoa a quem se dirige é convidada a completar por inferência a que foi deixado sem dizer; podem ter a intenção de informar ou de enganar.” (MUECKE, 1995, p.54). O termo se define como algo que se diz para zombar da outra pessoa, ou seja, elogia para censurar ou censura a fim de elogiar. Então, Machado de Assis, usando tal recurso linguístico, o faz para mostrar a malícia de suas personagens, a ver além ou através de seus comportamentos e tecer comentários, os quais parecem ingênuos, porém são carregados de sarcasmo ou de segundas intenções.

A baronesa, apesar de ter um comportamento dócil e passivo, soube dispensar a criada, Mrs. Oswald, de forma bastante irônica para poder conversar a sós com sua afilhada.

– “Mrs. Oswald – disse a baronesa – vá ver se já deram de comer aos passarinhos” (ASSIS, 2012, p.108).

Nesse exemplo, a baronesa dispensa a presença de Mrs. Oswald, mas com uma forma de zombaria, e sua condição de patroa dá este direito. Em outra situação, a criada, por sua vez, por ter origem britânica, faz um tratamento a Guiomar, mas usa com sentido de sarcasmo.

– Dormiu bem a minha rainha da Inglaterra? – perguntou Mrs. Oswald, pondo-lhe familiarmente as mãos nos ombros.

– A sua rainha da Inglaterra não tem coroa – respondeu Guiomar com um sorriso contrafeito. (ASSIS, 2012, p.106).

A resposta da moça também é ríspida e ela responde à altura do tratamento irônico, que era costume de Mrs. Oswald. E, dentre tantos jogos de palavras venenosas, a criada é quem faz comentários mais diretos e de descaso das atitudes da jovem Guiomar, a qual sempre fora tratada como se fosse catedrática, mas incapaz de perceber a realidade dos fatos do coração. Como neste comentário de Mrs. Oswald para Guiomar:

– Tem muita razão – assentiu Mrs. Oswald.

– A senhora pensa e fala como um doutor. Que se lhe há de fazer? Quem não ama não ama. Dele é que eu tenho pena! (ASSIS, 2012, p.65).

Nesse exemplo, percebe-se que a inglesa é até maldosa, porque elogia a moça, fazendo-o ironicamente, tratando-a como uma pessoa firme e afirma que ela sabe muito sobre sentimentos, enquanto se compadece do rapaz, que seria um ser apaixonado e sofredor. Mas, devido a todo o caráter dissimulado de Mrs. Oswald, o leitor deduz o sentido real daquelas colocações indiretas.

Para elucidar a fala enunciada e o comportamento esperado, no discurso que segue abaixo, da baronesa e também madrinha de Guiomar, observa-se que ela consente o casamento para continuar tendo o amor da afilhada, quebrando as normas sociais que ela, como viúva e responsável pela menina, deveria seguir.

– [...] A tua felicidade está acima das minhas preferências. Era um sonho meu; desejava-o com todas as forças; faria o que pudesse para alcançá-lo; mas não se violenta o coração – um coração, sobretudo, como o teu! Escolhes o outro? Pois casarás com ele. (ASSIS, 2012, p.111).

A dissimulação da madrinha é tamanha que, para agradar a afilhada, adotada como filha, suprindo o lugar de sua menina morta, faz-se a vontade de Guiomar, apesar de ter seus planos e sua posição social ignorada.

Também a criada Mrs. Oswald, que tinha um lugar de destaque na casa por ser inglesa, preceptora, partilhando consequentemente de todos os assuntos caseiros, mostra-se fingida à jovem, a quem quer persuadir, insistindo nas vantagens do casamento com o sobrinho da baronesa, Sérgio, o qual, casado, teria de mudar-se, e ainda mais com Guiomar, a qual iria embora com ele como marido. Assim, no diálogo abaixo entre Mrs. Oswald e Guiomar, percebem-se as palavras dissimuladas, proferidas pela criada para conseguir seu intento de fazer a moça casar com Sérgio.

– Dona Guiomar – disse ela, pegando-lhe nas mãos – ninguém pode exigir que se case sem amar o noivo; seria na verdade uma afronta. Mas o que lhe digo é que o amor não existe por ora, pode vir mais tarde e se vier, e se viesse, seria uma grande fortuna...

– Mas acabe – interrompeu a moça com impaciência.

– Seria uma grande fortuna para a senhora, para ele, ouso dizer que para mim, que os estimo e adoro, mas, sobretudo para senhora baronesa. (ASSIS, 2012, p.67).

Nesse diálogo, Mrs. Oswald usa o argumento de que a madrinha deseja a união dela com seu sobrinho, mas é a criada que planeja tal matrimônio.

A jovem Guiomar tinha muitos adjetivos ao seu favor: a juventude, a beleza e uma posição confortável dentro da casa de sua madrinha. Porém, sempre tinha que dar satisfações para a criada, Mrs. Oswald, que a abordava sempre. Ela, por sua vez, nunca discutia, mas fazia-se de desentendida. A inglesa tentava fazer com que ela aceitasse o casamento com Sérgio, sobrinho de sua madrinha, contudo, a maior interessada era a criada, a qual mostrava ser amável, porém sua aproximação era por pura ambição e a jovem sabia disso.

– Está bom, Mrs. Oswald, o que passou, passou. Sinto que as coisas chegassem a este ponto, e que ele se lembrasse de escrever semelhante carta, confessando uma paixão que acredito sincera. Mas o que o meu coração não pode corresponder. Amores não se encomendam como vestidos; sobretudo não se fingem, ou não se devem fingir nunca.

– Oh! Decerto!

– Eu gosto dele, como parente que é de minha madrinha, e também porque ela lhe tem afeição de mãe, como a mim, somos uma espécie de irmãos, nada mais.

– Tem muita razão – assentiu Mrs. Oswald...

– Gosta muito de mim, não? Perguntou Guiomar fitando os olhos na inglesa. – Oh, parece que sim! [...]

– Eu nunca vi nada – respondeu secamente Guiomar. (ASSIS, 2012, p.65).

Pelas palavras de Guiomar percebe-se que ela sabia das armações da criada e, mais ainda, ela conclui que a inglesa não gosta dela e a quer ver longe, mas nas suas palavras cria- se um jogo para mostrar ingenuidade, com que, no final, a própria jovem afirma que toda a dedicação daquela criada não a sensibiliza e muito menos parece verdadeira.