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3. A IRONIA EM O DOENTE IMAGINÁRIO, DE MOLIÈRE, E A MÃO E A LUVA, DE

3.2. A função do riso para o teatro moderno

A função do riso é moralística dentro da peça teatral, por isso Molière transgrediu o gênero trágico, onde o objetivo era sensibilizar o público através do sofrimento ou das lutas pessoais. Ele foi mais racional e astuto, mostrando escancaradamente as aberrações de um doente imaginário e sua criada, que pertencem ao gênero comédia, para denunciar as atrocidades e até imoralidades cometidas pelos médicos e por um pai desumano.

Assim, o autor usa o palco e nele as personagens servem de instrumentos para representar o contexto histórico em que estão inseridas. A citação abaixo pode esclarecer sobre a escolha da comédia e dar ideia do momento em que foi construído o texto, e de sua função social.

Denunciar vícios, comportamentos reprováveis, desvios da ordem que o sistema social estabelece como valor inquestionável e, de tal forma preparar explícita ou implicitamente sua repressão ou correção: uma tal defesa das instituições parece ser o caminho para justificar um papel igualmente institucional, mas que chegou a tal posição fixando posições alternativas, transgressivas ou simplesmente suspeitas..., que busca, pelo contrário, no fútil e no marginal, a garantia de inocuidade. (D‟ ANGELI; PADUANO, 2007, p.9).

O caminho alternativo, que foi enfatizado acima, diz respeito à tragédia, a qual dá para o teatro um viés sério e, principalmente, utiliza de uma linguagem formal, por isso requintada. Porém, o riso que é provocado na peça teatral tem outro objetivo, que pretende ser inofensivo, usando um vocabulário bem coloquial, mas ao mesmo tempo denuncia aquilo que afligia o autor, mediante as questões do hipocondrismo e do casamento por interesses.

Além do mais, há os desmandos da classe médica, que tinha por interesse exclusivo o de se beneficiar com a medicina, dando vazão a sua pratica corrompida e alienada. Logo, uma criatura como Nieta, uma subalterna, é capaz de se indignar e provocar seu patrão para

reverter aquela situação de alienação absurda. A citação abaixo esclarece a mola propulsora da comédia.

A indignação que condena a imoralidade de uma sociedade que dita as leis e ao mesmo tempo se arroga o direito de descumpri-las representa em um nível mais alto a consciência adulta, a mesma que alimenta as lutas políticas, os sermões edificantes, as campanhas de moralização, e que se alimenta da persuasão de que possa existir uma moral mais alta, ou moral absoluta, a qual todo contrato social deve se conformar. (D‟ANGELI; PADUANO, 2007, p.16).

O objetivo de Molière na peça foi bem claro, porque o médico deveria servir ao doente, tentando curá-lo, já que se especializou para esse fim. Entretanto, frente ao charlatanismo desmedido daqueles profissionais da saúde da família, que eram imorais e abusavam da ignorância do paciente na peça O Doente imaginário, ficou claro que eles subvertiam sua função positiva naquela sociedade. Então, o que Nieta percebia era a inversão dos papéis dos médicos e por isso armou um plano para afastá-los daquela moradia.

Ao utilizar a comédia, denuncia aquele sistema corrompido, no qual o patrão, por ser o dominador, tem o poder de enganar, mas ao mesmo tempo é o enganado, por dois lados: pela esposa e pelos médicos, os quais fingiam serem amigos e leais, no entanto queriam o dinheiro dele. O escritor e ator, usando justamente a criada para fazê-lo notar a incoerência dos tratamentos receitados, ele próprio cria na casa uma situação de ataques no nível linguístico. O chefe da casa cobra a atenção da criada e esta, por sua vez, finge ser dominada. Mas é ela que conduz a peça para afastar os enganadores, porque ela sabia que Argan, na verdade, não sofria de nenhum mal.

Entre remédios, médicos, contas de farmácias, foi possível qualificar a tamanha dependência do doente. Inclusive, por ele ter muito dinheiro, o tipo enganador, que tem poder para comprar sua boa qualidade de vida, diante da promiscuidade dos médicos, ele se torna o enganado.

Justamente, pelo fato que a criada trouxe para dialogar com o patrão e este, pelo fato de ser doente, não age com a razão. Na citação abaixo há uma descrição de como é a relação entre o médico e o paciente.

Uma espécie de contraprova paradoxal deste fato é a frequência, na literatura, do termo enganador enganado, que atribui o papel mais baixo da tabela intelectual não a quem não dispõe ou não faz uso dos instrumentos racionais, mas a quem os vê voltarem-se contra si. Esta situação limítrofe nos leva a considerar a possibilidade de que também a razão, como a moral, possa sofrer do cômico um ataque direto, mais do que indireto, atribuído, portanto ao sujeito do discurso ao mesmo tempo em que o resultado dos

mecanismos de sedução obscuros e residuais do objeto. (D‟ANGELI; PADUANO, 2007, p.20).

Seria mais racional que o patrão, por ser a personagem dominante, tivesse mais conhecimento do que a criada da casa. No entanto, através do uso da linguagem cômica, ou seja, no fluxo da conversa fútil, é possível observar que Nieta tinha sempre uma segunda intenção por trás de sua fala superficial.

Ainda mais, havia entre eles um diálogo homogêneo, porque enquanto Argan insistia em permanecer doente e frágil, por isso ele se convencia da sua saúde precária, tornando-se voluntariamente um ser dependente e fraco. Por outro lado, a criada, Nieta, desenvolvia seu plano de reforçar, mediante sua fala carregada de crítica, porque ela estava convicta do charlatanismo dos médicos; principalmente por ser subalterna, contradizia sumariamente os achaques contínuos do patrão.