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3. A IRONIA EM O DOENTE IMAGINÁRIO, DE MOLIÈRE, E A MÃO E A LUVA, DE

3.1. O caráter ficcional no romance

O gênero romance é responsável pelo contato do presente com os fatos passados. A ficção permite ao autor ser um fingidor e repassar, de acordo com a tradição, suas convicções, permitindo que a imaginação baseada na realidade possa transgredir os fatos verdadeiros, mas tudo dentro do senso comum e com efeito de real, construindo uma narrativa detalhada quanto às ações das personagens e dos espaços que ocupam, para criar mais proximidade com os leitores. Desta maneira como descreve a citação abaixo, a prosa, que ultrapassa o valor estético tão exigido pela poesia, foi à forma preferida de Machado de Assis.

Somente a prosa pode então abraçar com igual vigor as lamúrias e os lauréis, o combate e a coroação; o caminho e a consagração; somente sua desenvolta ductilidade e sua coesão livre de ritmo captam com igual força os liames e a liberdade, o peso dado e a leveza conquistada ao mundo, que passa então a irradiar com imanência o sentido descoberto. (LUKÁCS, 2000, p.58)

Observa-se que no romance A mão e a luva o enredo apresenta certa monotonia dos fatos e, aos poucos, a personagem Guiomar toma uma atitude corajosa, lutando pelo seu ideal, até conseguir unir-se a Luís Alves, que garantirá seus anseios de prosperar e ser uma dama da sociedade. Além de a narrativa inculcar o desejo de ascensão social, quebrando as normas sociais, consolida um casamento com um pretendente quase estranho daquela família. Também é intrigante que o primeiro enamorado da jovem, Estevão, tenha todos os requisitos do bom marido, principalmente por ser muito apaixonado por ela. Porém, ele é dispensado, porque ela, desde sempre, soube que queria casar-se com alguém resoluto e ambicioso; por isso, durante o texto, razoavelmente longo, as ações convergem para efetivarem os seus propósitos. Nesse gênero literário, o autor pretendeu expor sua vontade, como se pode entender conforme a seguinte citação:

O romance é a forma de aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma,

que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência. (LUKÁCS, 2000, p.91).

Assim, Machado de Assis optou pela prosa e, nessa proposta especificamente, o gênio da literatura dá asas às personagens femininas, para exporem a desestabilização dos controles de uma sociedade advinda do feudalismo. “O romance é o gênero em que a linguagem está a serviço do realismo, isto é, da apresentação corriqueira da vida cotidiana” (LIMA, 2009, p.218), por isso há no enredo uma baronesa, membro autêntico da aristocracia, vivendo em relação harmoniosa com uma criada e uma afilhada muito pobre, mas todas com necessidade de complementarem-se naquele ambiente. E, visando o elemento humano como centro da narrativa, com suas vontades e comportamentos é que Bakhtin (1975) dá um valor específico ao romance, que capacita o homem a entender o mundo plural; um gênero literário recomendado para enfatizar a diversidade dentro de uma cultura, como mostra o trecho abaixo.

A proximidade entre o romance e os tempos modernos se estabelece porque, estando em processo de feitura, ambos não detinham uma fisionomia própria. A experimentação do novo será feita de maneira diversificada porque a marca comum do controle institucional atuará em combinação com os traços localmente diversificados. (LIMA, 2009, p.219).

Consequentemente, a confecção do romance conjuga relações diversificadas e até divergentes, mas o autor tem espaço para desenvolver cada personagem dando liberdade no processo de crescimento de cada uma e, ao mesmo tempo, aprimorando sua produção artística, porque a instituição foi sendo contemplada com os desejos do autor, mas ao mesmo tempo focalizava uma sociedade em mutação e bastante complexa, a qual a verdade não pode ser abandonada.

Assim, todo o texto é comentado e explicado pelo narrador na sua unicidade, que assume uma posição neutra, mas que conduz o leitor para um conhecimento mais intenso da cena e das ações das personagens. E como se pode reconhecer esta atitude, conforme a próxima citação:

[...] embora um autor onisciente possa ter predileção pela cena e, consequentemente, permita a seus personagens falar e agir por eles mesmos, a tendência predominante é descrevê-los e explicá-los ao leitor com sua voz própria. (FRIEDMAN, 2002, p.175).

Através dessa forma de narrar, os leitores podem apreciar o crescimento das personagens; no entanto o autor vai incrementando as ações delas, mediante sua visão, deixando para os interlocutores claramente sua interpretação e revelação daquilo que lhe é

essencial dentro de sua apreciação de mundo. Também é na identificação com o autor que se obteve este romance com a marca do seu idealizador, não deixando de ter credibilidade com as condições reais daquele tempo.

Por isso, Machado de Assis como cidadão, de certa forma, repassa o desconforto do escritor, o qual, advindo da classe pobre, ainda mulato e inconformado com sua situação, direciona suas angústias para as personagens deste romance. “A finalidade da ficção não é a de incursionar nesse conflito, e sim fazer dele sua matéria, moldando-o „à sua maneira‟.” (SAER, 2012, p.5). A partir dessa premissa, o texto é conduzido pela vontade do autor e é nele que notadamente o narrador vincula, nas suas descrições, os elementos mais próximos ao real. Portanto, o que na escrita clássica era tão cultuado como a função estética e romântica, nesta produção realista o autor aproxima-se do leitor, procurando no senso comum o efeito do real. Então, a significação das palavras são responsabilidades do autor; por isso, na ideia seguinte, nota-se que é uma escritura autônoma, sem função preconcebida.

Tudo isso diz que ao “real” é reputado bastar-se a si mesmo, que é bastante forte para desmentir qualquer ideia de “função”, que integrada numa estrutura e que o “ter-estado-presente” das coisas é um principio suficiente da palavra. (BARTHES, 2004, p.188).

Por essa razão, de dar à narrativa tantos detalhes e enchê-la de comentários, à primeira vista monótona, é que se tem condição de visualizar o contexto histórico da obra, bem como o comportamento das personagens, as quais vivem na sua particularidade, mas fazem parte da injunção do autor, que é trazer à tona o casamento por interesses.

Para tanto, os elementos dentro do texto se combinam e representam um real, o qual transcorre de certa forma previsível, mas que por ser fictício apresenta um final inesperado, em que Guiomar consegue reverter o pedido de casamento do sobrinho da baronesa, Sérgio, manipulando a situação de também ser pedida em matrimônio pelo jovem advogado, Luís Alves. Nesse caso, a própria jovem sabia que sua madrinha tinha um coração generoso e decidiria por sua felicidade, contrariando as regras sociais daquele tempo. Na citação abaixo, o autor esclarece este processo criativo.

O imaginário é por nós experimentado antes de modo difuso, informe, fluido e sem um objeto de referência, manifestando em situações que, por serem inesperadas, parecem arbitrárias, situações que ou se interrompem ou prosseguem noutras bem diversas. (ISER, 1996, pp.14-15).

A realização do imaginário, amalgamando o que é real do que é ficção, dá ao texto narrativo uma condução própria, ou seja, um desfecho totalmente inesperado; mas nesta

transgressão pode-se ver germinar a mudança que aos olhos dos leitores contemporâneos “representam a condição para reformulação do mundo formulado” (ISER, 1996, p.16). Assim, o caráter ficcional no texto, a transgressão do real e a mediação da vontade do autor ou a decomposição das regras sociais vigentes, mesmo que pela ótica do escritor que se realiza na sua escritura, como contestar, na ficção, o casamento por interesses. Por isso, a literatura tem a vantagem de ser libertária e subjetiva.