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A judicialização da política e das relações sociais no Brasil

CAPÍTULO 2 – O ESTADO CONSTITUCIONAL E A JUDICIALIZAÇÃO DAS

2.2. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil

intensa de uma diversidade de sujeitos, conferindo maior legitimidade às decisões eventualmente proferidas99.

É esse o cenário jurídico no qual se inserem as demandas da população homossexual por isonomia e reconhecimento de direitos. Cabe, então, averiguar os diferentes âmbitos de apreciação dos pleitos de gays e lésbicas, para compreender seu deslocamento em direção às Cortes, no contexto brasileiro.

judiciário, pela primeira vez, como uma via de aprofundamento das conquistas igualitárias – em especial, a jurisdição constitucional101.

Note-se que a conjuntura de redemocratização vivenciada no período de elaboração e promulgação da Constituição de 1988 semeou nos brasileiros uma consciência de sua condição de sujeitos de direitos. Por conseguinte, intensificou-se a luta individual e coletiva de busca por justiça, desaguando no Judiciário grande parte das crescentes demandas sociais – fenômeno potencializado pela facilitação do acesso à Justiça providenciado pela Carta. Desse modo, cortes e magistrados tornaram-se figuras corriqueiras.

A aproximação entre sociedade e Judiciário, movida pela crença no potencial da Justiça para possibilitar conquistas não alcançadas em outras instâncias estatais, logo instigou, todavia, questionamentos quanto à amplitude de suas competências em face daquelas tradicionalmente outorgadas a outros poderes. Essa transferência do campo decisório ao Judiciário, relativo a matérias tanto relevantes quanto triviais do espectro político e social, é o que se compreende pelo fenômeno da judicialização da política e das relações sociais102.

A tendência pode ser facilmente visualizada na explosão de contendas referentes às relações familiares. Reconhecimento e dissolução de uniões, investigações quanto à filiação, guarda de menores, violência doméstica, disputas patrimoniais entre herdeiros, direitos da pessoa idosa ou da criança e do adolescente – são alguns dos temas que abarrotam os Tribunais do país, em função da crença popular de que o Judiciário seria a via mais adequada à composição dos conflitos. É onde tem desembocado, também, lides concernentes ao reconhecimento jurídico de relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo, seja na forma de união estável ou casamento – esta, particularmente, em razão da mais absoluta inércia legislativa em abordar a matéria.

Há que se assinalar que, não obstante comporte reflexos políticos, as decisões tomadas pelo Poder Judiciário – das quais, por imperativo constitucional, seus membros não podem se eximir103 – se desenvolvem em conformidade a uma lógica própria ao conhecimento jurídico. Dessa forma, a judicialização de matérias socialmente relevantes

101 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha;

BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:

Revan, 1999, p. 18-19.

102 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7547>. Acesso em: 26 nov. 2012.

103 ALMEIDA, Cecília Faria de. Ativismo judicial – Supremo Tribunal Federal em foco. In: CASTRO, Dayse Starling (Coord.). Direito Público. Belo Horizonte: Instituto de Educação Continuada, 2012, p. 161-162.

pressupõe sua submissão à argumentação jurídica – nem sempre em sintonia com as nuanças do discurso político104.

Pode-se dizer, também, que, ao ancorar no Judiciário a disputa de interesses, os indivíduos expressam seu descrédito nas instâncias democráticas tradicionais e, assim, abrem mão do exercício de sua cidadania perante os outros poderes. O decaimento da função pública do indivíduo moderno e da noção de coletivo, de bem-comum, é reflexo de uma relação inversamente proporcional que se firma entre o prestígio da Justiça, como restauradora da trama social, e a decepção para com o Legislativo e o Executivo. Com efeito, mais que sancionador, o Judiciário assume uma postura positiva, propícia ao reconhecimento e concretização de direitos e garantias não atendidos nas demais instâncias. Em suma, constata VIANNA, ao “cidadão sucede a sua versão judiciária: o sujeito de direitos”105.

Instado a se manifestar a respeito de temas politicamente sensíveis, como as uniões homoafetivas, cujos parâmetros normativos constitucionais são, com frequência, demasiadamente abertos ou genéricos, voltam-se os holofotes ao Judiciário brasileiro, especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. A repercussão social direta assumida por vários destes casos indica que a Corte vem, com alguma frequência, desvinculando-se do ideal de Judiciário contido, constrito à mera aplicação da lei. Nesse cenário, o STF, órgão de cúpula no exercício da jurisdição constitucional, ganhou relevância diante dos demais Poderes, visto que até a competência do próprio Legislativo, como constituinte reformador, encontra limites erigidos pela Carta, as chamadas cláusulas pétreas – cujo sentido e extensão, repise-se, são fixados caso a caso pela Corte Constitucional. O amplo acesso ao Tribunal que se concretizou nos anos seguintes à promulgação da Constituição, pelas vias abstrata e difusa, reverteu ainda em maior número de decisões interpretativas de toda ordem106.

Mais que uma questão de crescimento da atuação judicial, a atenção dirigida à Justiça brasileira deve-se à redescoberta do potencial desse Poder na consecução de um programa constitucional que outorga à população direitos rotineiramente desrespeitados, restaurando a plena cidadania de sujeitos que dela são indevidamente alijados107.

104 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha;

BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:

Revan, 1999, p. 22-23.

105 Idem, ibidem, p. 24-26.

106 MIARELLI, Mayra Marinho; LIMA, Rogério Montai de. Ativismo judicial e a efetivação de direitos no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: S.A. Fabris, 2012, p. 157-158.

107 VIANNA entende que este despertar da sociedade para a importância do Judiciário na busca por justiça e melhores condições de vida é um fenômeno que envolve VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, op. cit., p. 42-43.

No caso brasileiro, a transição para a democracia, operada subitamente no fim da década de 80, foi peculiar por lançar indivíduos que desconheciam o verdadeiro sentido de liberdade e cidadania a um regime em que seu exercício lhes era necessário. Nesse contexto, o recurso ao Judiciário não deixa de ser um meio didático de adaptação e amadurecimento democrático. A ausência de instâncias capazes de responder a contento a uma série de impasses levou o direito a assumir a função de instrumento de estruturação do próprio espírito cívico, da qual se desincumbiram os demais Poderes108.

Sem embargo, os prognósticos quanto à expansão da confiança no Poder Judiciário em Estados Constitucionais variam. Nesse sentido, INGEBORG MAUS recorre à psicanálise para ilustrar uma sociedade órfã, na qual, depostos seus antigos dominadores, se reconhece na instância judicial a destituída figura paterna, um superego, responsável por orientá-la e censurá-la. A devoção à Justiça é tamanha, que a própria crítica ao exercício da jurisdição constitucional passa a ser encarada com desconfiança, como contrária à democracia109.

A confiança popular no Judiciário assim enxergado sintoniza-se com a inserção constitucional de valores substanciais na jurisdição e com o próprio produto da atividade legislativa, no qual se introduzem conceitos morais vagos, cuja definição fica a cargo dos magistrados. Agregam-se, dessa forma, a prontidão do Poder Judiciário para ampliar suas competências e a cega atribuição social do papel de superego às instâncias judiciais. Corre-se, por conseguinte, o risco de que uma jurisdição desimpedida molde à sua vontade os termos de Constituições de natureza aberta, sob o pretexto de está-la meramente interpretando, no cometimento de um velado decisionismo110.

Um Judiciário que encarna o superego da sociedade órfã enxerga-se como disciplinador de ímpetos sociais conflitantes e extremados, representados inevitavelmente no ambiente parlamentar. Incumbir-se-ia, dessa forma, da composição das discordâncias da comunidade, sob o pretexto da harmonização do direito, ao tempo em que imporia discricionariamente as posições morais de seus membros a uma sociedade infantilizada, dependente da figura de um juiz-tutor111.

108 VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Rezende de; MELO, Manuel Palácios Cunha;

BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:

Revan, 1999, p. 153.

109 MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade: o papel da atividade jurisprudencial na “sociedade rfã”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 58, nov. 2000, p. 184-185.

110 Idem, ibidem, p.189-191.

111 Idem, ibidem, p. 195-196.

Embora se reconheça a pertinência da crítica de MAUS, acreditamos, porém, que a questão candente no que diz respeito à judicialização das relações sociais se refere à legitimidade democrática do desempenho pelo Judiciário não apenas da função de aplicador de normas previamente convencionadas, mas, principalmente, de partícipe no processo de construção do direito, extraindo consequências às vezes não tão explícitas dos enunciados constitucionais e definindo, em último grau, quais direitos as pessoas efetivamente têm.