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O direito como integridade: uma alternativa ao voluntarismo judicial

CAPÍTULO 2 – O ESTADO CONSTITUCIONAL E A JUDICIALIZAÇÃO DAS

2.3. Constitucionalismo e democracia

2.3.5. O direito como integridade: uma alternativa ao voluntarismo judicial

também a superação da relação estrita sujeito-objeto, visto que, acolhida a intersubjetividade, abre-se o “caminho para a democracia”159.

Com este escopo, recorre-se mais uma vez à lição de DWORKIN, a quem STRECK também faz remissão, porquanto sua teoria parte de um olhar pragmático da realidade, para sugerir os limites à atividade judicial interpretativa.

Repare-se que, na perspectiva convencionalista, o direito nunca poderá ser compreendido como um sistema fechado ou completo, visto que, diante de casos inéditos, não alcançados pela literalidade das convenções estabelecidas, não há se falar em qualquer pretensão jurídica digna de tutela. Toda decisão nesse campo dar-se-ia ao sabor da mais pura discricionariedade. Somente para ocorrências futuras tais situações poderiam comportar pretensões tuteláveis, após aprovadas pelos procedimentos convencionalmente acordados na comunidade. Desse modo, essa postura pressupõe (a) o respeito dos magistrados às convenções, estejam eles de acordo ou não com seu conteúdo; e (b) a inexistência de direito para além do previsto nas convenções ou destas extraído mediante técnicas também convencionalmente reconhecidas163.

A corrente pura do convencionalismo anui, portanto, à existência de vácuos normativos, campo no qual os juízes não deveriam fingir descobrir normas jurídicas implícitas aplicáveis à espécie, porque elas simplesmente inexistem164.

Decerto, mesmo quando são obrigados a atuar no que consideram um vazio de previsões jurídicas, o juiz convencionalista, como qualquer outro indivíduo integrado no processo construtivo do direito, buscar manter a coerência entre aquilo que elabora e as normas, valores e princípios jurídicos já estabelecidos, para que, ao menos, o conjunto de padrões mantenha-se funcional. É o que DWORKIN denomina coerência estratégica165.

Há, contudo, um segundo tipo de coerência, ao qual o convencionalismo não se vincula. Trata-se da coerência de princípio, a qual implica que os padrões jurídicos, inclusive os oriundos da atuação judicial, remetam à ideia de um sistema jurídico dotado de uma concepção una e harmônica de justiça. Rejeitada por adeptos do convencionalismo, juízes adeptos à ideia de direito como integridade dão especial atenção à coerência de princípio, aceita como fonte de direitos – razão pela qual defendem a existência de direitos para além dos explicitamente convencionados em decisões políticas do passado, decorrendo dos princípios que a estas subjazem e as justificam166.

Ao se preocupar excessivamente com a previsibilidade do direito, o convencionalismo fracassa por não conseguir explicar a maneira como as práticas jurídicas se desenvolvem e se transformam ao longo do tempo. É uma visão que destitui o sistema jurídico de boa parte de sua flexibilidade167.

163 DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 143-144.

164 Idem, ibidem, p. 154-156.

165 Idem, ibidem, p. 162.

166 Idem, ibidem, p. 163-164.

167 Idem, ibidem, p. 182-183.

Enxergar o direito como integridade, por sua vez, potencializa a organicidade e capacidade de transformação do direito para se amoldar às transformações do mundo.

Uma virtude política à parte, a integridade toma a própria comunidade personificada como um agente moral, e, assim, não aceita a incoerência de princípio na atuação do Estado – quando decisões políticas se justificam isoladamente, mas seu conjunto é incapaz de representar um grupo coerente e articulado de princípios convergentes a um ideal de justiça168.

DWORKIN sustenta que:

Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos mais gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam. Assim, cada membro aceita que os outros têm direitos, ainda que estes nunca tenham sido formalmente identificados ou declarados169.

É por isso que, embora seja geral a anuência à ideia de equidade política e participação equânime no controle de decisões legislativas como virtudes do modelo democrático – as quais pressupõem necessária, no âmbito parlamentar, a conciliação, a fim de que se discutam e se resolvam matérias de natureza moral –, questões eminentemente de princípio não deveriam se sujeitar às soluções conciliatórias. Seria inadmissível, por exemplo, que temas como a discriminação racial dependessem de conciliação entre grupos favoráveis e contrários170.

Ocorre que a justiça não se afere somente pelos meios empregados, mas também pelos resultados efetivamente alcançados – e independentemente da equidade dos procedimentos, pode-se chegar, afinal, a tratamentos anti-isonômicos dispensados a determinadas pessoas, sem qualquer justificativa de princípio para isso171. Daí a necessidade de submissão destes impasses, por vezes, às Cortes Constitucionais.

Veja-se que, sob essa perspectiva, o direito analisado pelo juiz não se limita a uma apreciação de decisões políticas pretéritas, tampouco a atuar em prol de projeções futuras. A integridade requer o recurso a ambos, porquanto compreende o direito como um conjunto de práticas em contínuo desenvolvimento, dotado tanto de história quanto de expectativas e programas172. É nesse sentido que DWORKIN afirma que:

168 DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 223-227.

169 Idem, ibidem, p. 254-255.

170 Idem, ibidem, p.216-217.

171 Idem, ibidem, p. 219.

172 Idem, ibidem, 2007, p. 271.

O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram [...]173.

Aproximando direito e literatura, ambos práticas interpretativas construtivas, DWORKIN retrata a postura que a integridade requer dos juízes com ela compromissados:

como nos romances em cadeia, em que um conjunto de autores escreve a obra sequencialmente, juízes se inserem no percurso do direito, que lhes exige contribuição pessoal em sua estruturação contínua. Cada um recebe capítulos já escritos por outras pessoas para, então, interpretando-os, redigir o seguinte. Há uma responsabilidade de continuidade da obra compartilhada por todos, como se a autoria fosse única. O autor empenhado na construção de seu capítulo deve ter capacidade de explicar, em linhas gerais, tudo o que seus antecessores fizeram, inserir sua parte e, ao fim, deixar margem criativa aos sucessores. Busca-se, portanto, a leitura que melhor se ajuste ao conjunto da obra, atualizando-a às luzes de seu tempo174.

Assinale-se que a integridade rejeita a existência de um momento em que o sentido e amplitude da norma jurídica se fixam para a posteridade. Decisões são tomadas em conjunturas específicas. Alterados os valores, contexto social e político, prender-se a sentidos anteriormente empregados seria anacrônico e a norma dificilmente lograria realizar sua finalidade pacificação social. É, afinal, a plasticidade emprestada aos padrões normativos, isto é, à forma como são lidos, que garante sua durabilidade e a organicidade do direito.

Pelas razões acima expostas, afigura-se a integridade como concepção do direito a ser apropriada pelas sociedades que adotam o modelo de Estado Constitucional, a exemplo do Brasil, e empregada com mais afinco por aqueles diretamente empreendidos na construção e renovação do ordenamento jurídico, dentre os quais, os membros da magistratura, em seu ofício de caráter marcadamente hermenêutico.

É sobre esses alicerces que deve se estruturar o argumento quanto ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Para tanto, na esteira do que recomenda a integridade, vê-se a importância da atividade de compulsar os capítulos já preenchidos da história para vê-se compreender a mutação do contexto familiar e a realidade de privação a direitos vivenciada por homossexuais, de fundo eminentemente discriminatório – como feito no capítulo anterior.

Revelada a necessidade de atuação incisiva, nesse caso, de instâncias contramajoritárias em prol da concretização de direitos fundamentais de que são privados os homossexuais, ante a remota probabilidade de que tais disfunções sejam corrigidas pelo

173 DWORKIN, Ronald. O império do direito. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 274.

174 Idem, ibidem, p. 276-278.

sistema democrático-representativo, resta encaminhar a análise do caso para que, diante da bagagem jurídica apreensível de imediato pelo julgador, se descortinem os princípios subjacentes à Constituição e, especificamente, ao Direito de Família, de forma a promover uma leitura sistemática e coerente do direito brasileiro acerca das demandas por reconhecimento dessa parcela da população.