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CAPÍTULO I O mal como acesso concreto à Transcendência 29 

1.4 A justificação 74 

O tema da liberdade, como pudemos notar, encontra-se diante da escolha pelo mal da qual deve ser libertada. Uma liberdade que se torna indisponível é uma liberdade que “se escraviza a si mesma, se afeta e se infecta através de sua própria escolha”169. Pode-se colocar que, se a liberdade é responsável por sua servidão, ela é incapaz de mover o jugo que ela carrega. O livre-arbítrio é, assim,

transforma numa situação padecida, em servidão [...] em suma, por mais que a liberdade do homem possa ser ‘serva’, nela o mal não é originário como a bondade”[“Il servo arbitrio è un

atto dell´uomo, perché viene da lui, ed è anche uno stato, perché si tramuta in una situazione subita, in servitù [...]; insomma, per quanto ‘serva’ possa essere la libertà dell´uomo, il male però in essa non è originario quanto la bontà”] (CHIODI, Maurizio. Il camino della libertà.

Fenomenologia, ermeneutica, ontologia della libertà nella ricerca filosofica di Paul Ricœur,

prefazio de Paul Ricœur, Brescia: Morcelliana, 1990, p. 181)

167A Simbólica do Mal, 2013, p. 169. 168Idem.

prisioneiro da situação que ele mesmo criou170. Essa catividade do servo-arbítrio é o ato e o estado de um ser pecador no qual o próprio ato de se escravizar se abole enquanto ato e se transforma em um estado.

Esse estado de servidão que resulta de um ato de auto escravidão, é indicado pela mancha como uma positividade na qual o mal é uma coisa qualquer, coisa que se há de tirar. A exterioridade significa que o mal não é somente intenção, mas “o mal vem ao homem como o “fora” [de fora] da liberdade, como o outro no qual a liberdade é envolvida”171. O mal, desta forma, não vem identificado com o homem, mas é algo que está “já-aí está diante de nós e nos atrai”172.

O simbolismo da mancha remete à servidão da liberdade pelo esquema de infecção que “significa que a sedução pelo fora é, em última instância, uma afecção do si por si mesmo, uma autoinfecção através da qual o ato de se amarrar, transforma-se no estado de estar amarrado”173. Ou seja, a direção da infecção e da catividade. A infecção serve para clarear a ligação entre exterioridade/interioridade. Nela a “sedução” infecta, mas não destrói. O esquema da infecção significa que o si coloca-se em si-mesmo, que o mal radical não é a destruição do próprio ser do homem e de seu destino originário. Já na ideia de catividade a visão ética do mal não é somente um ato, mas um estado. A identificação de um ato e de um estado como visão ética permite ver que há no homem uma sobreposição e uma coabitação do mal radical e da bondade original. Ou seja, o mal radical não é a natureza da liberdade. Ele é

170“A catividade é, literalmente, uma situação social, intersubjetiva; ao tornar-se símbolo do

pecado, essa cifra mostrou o carácter de alienação inerente ao pecado; o pecador está ‘no’ pecado, como o hebreu ‘na’ servidão; o pecado é, por conseguinte, um mal ‘ no qual’ o homem é apanhado” (Ibidem, p. 110).

171Ibidem, p. 173 172Ibidem, p. 174. 173Idem.

somente uma modalidade existencial, porém não arruína o seu ser. É precisamente nesse sentido que Ricœur fala de servo-arbítrio. Esse é um ato do homem, pois o ato de ligar vem do homem. Esse ato de ligar-se a si mesmo é um estado, pois “se muda” em uma situação de servidão.

A liberdade, mantendo intacta sua natureza original, torna-se por sua escolha necessitária da salvação. Ocupada e infectada por seu próprio pecado, a liberdade tem necessidade de desamarrar-se, porque “a problemática fundamental da existência não será tanto a da liberdade, entendida no sentido de uma escolha a tomar em face de uma alternativa radical, como a da libertação. O homem cativo do pecado é um homem a libertar. Todas as nossas ideias de salvação, de redenção - ou seja, de resgate – procedem dessa cifra inicial”174. O desejo de justificação procede da experiência de servidão, de catividade, bem como da impotência de desligar-se de sua falta. Apesar de tudo isso, a justificação é implorada e atendida.

A possibilidade de recusar o componente de espera, que caracteriza o desejo de justificação, é sempre concebível. Ele pode assumir o encargo de se justificar na negação de uma justiça que vem de fora. É-lhe permitido tomar sobre si o pecado e reivindicar para ele o poder de apagá-lo. Na necessidade de justificação existe sempre o componente de espera. Como também existe a possibilidade de recusa desse componente.

A vontade de se justificar revela uma consciência culpável que se isola da comunhão dos pecadores, que rompe com a dimensão teológica do pecado e que, de maneira secreta, satisfaz-se em seu narcisismo. Curvando-se sobre si- mesma, a consciência torna-se escrava de sua vontade de justiça sem a promessa. Ela se fecha como uma vontade desesperante e desesperada no ciclo de interdito e do desejo que produz a morte. A perspectiva paulina mostra que a vontade

desesperada de justiça coincide com a boa vontade, ou seja, com a vontade que aprova a exigência de um mandamento santo, justo e bom, crendo que ele pode fazer o que ele quer e que ele pode obter a justiça pelas obras prescritas pela lei.

Na realidade, a vontade da própria justiça é pecado e conduz à morte. Ela se opõe à vontade de Deus no que concerne ao sentido e à função da lei que, de certa maneira, rompe com Deus.

Da filosofia existencial, do eu cativo do pecado de sua própria justiça, que exalta o sujeito a ser criador de sua própria existência, é que Ricœur suspeita, pois essa filosofia é sinal de um eu cativo, desejoso de formar um círculo com ela mesma, distanciando-se de suas condições de existência e de sua raiz ontológica175.

175Segundo Melo “A forma que Jaspers analisa o tema da liberdade, da finitude, do fracasso,

da transcendência é diferente dos autores de sua época, porque o autor estabelece uma análise singular da realidade própria da existência (...) Para Jaspers, a existência se configura de dois modos, como Existenz e como Dasein. A existência empírica ou o Dasein apresenta-se no pensamento jasperiano com um significado distinto de outros pensadores que também utilizaram este termo, pois significa a existência humana que se orienta unicamente de sua relação com o mundo. Pode-se dizer que é o existente que está-aí, ou seja, presença objetiva no mundo ou a realidade fornecida pela experiência (...) A compreensão sobre o homem como aquele ser que se exerce na dimensão do Dasein nos convida, pois, a pensá-lo como mera manifestação empírica, o que significa que o existente é visado somente no âmbito das realizações no mundo e das suas determinações. Como escreve Jaspers: ‘a existência empírica (Dasein) existe somente em relação com seu mundo circundante, diante do que reage e sobre o que atua’” (JASPERS, 1968, p. 109. Tradução nossa). Esse ser que ‘aí está’ e que partilha com os outros a pertinência a um mundo se diferencia da existência que se coloca no âmbito das possibilidades. “Segundo Jaspers, a existência se configura também como um ‘poder-ser’, ou seja, como abertura para empreender escolhas que se realizam no campo da liberdade e, assim, da autenticidade. Diferentemente do Dasein, que permanece no campo do vivido objetivamente, a existência possível será sempre a existência que se escolher. O que nos permite afirmar que para o nosso autor a existência possível estará sempre à frente de si, projetando-se no risco das opções” sic. (MELO, Fernanda Araújo. Para uma filosofía da transcendencia em Karl Jaspers, in Revista Estudos Filosóficos, nº 8/2012). Ver também: HERDEU Y BOHIGAS, J. Transcendencia y revelación de Dios. Metafísica de las “cifras”

según Karl Jaspers, metafísica del testimonio según Jean Nabert. Barcelona: Ed. de la Facultat

Como então libertar essa liberdade que está presa sob o jugo de sua escolha? Que condições podem existir para essa libertação e, consequentemente, sua justificação?

O homem confessa sua responsabilidade pelo mal, entretanto, não pode romper as correntes que o aprisionam a esse mal. O poder do mal mantém a liberdade na prisão de seus atos maus, tornando-a extraviada. Isso é mostrado pelos símbolos primários da falta que se exprimem através das imagens de cativeiro e de mancha que infecta.

A instância da culpabilidade é reduzida, aparentemente, ao exterior, caracterizando pela mancha como um mal que infecta, em um símbolo de uma liberdade que escraviza a ela mesma, como que por autoinfecção. Isso suscita algumas interrogações: por que a liberdade não é capaz de se libertar do mal que ela coloca? Por que essa impotência engendra nela o desejo de justificação e quais são as condições para tal? Essas duas questões só podem ser resolvidas se incluímos o mal em uma totalidade significante.

1.5 O mal na totalidade de sentido

Toda a Simbólica do mal aponta para um conceito contraditório, o de servo-arbítrio. Ele é um conceito-limite, pois a simbólica nunca o conseguirá alcançar176 e porque isso opera sobre ele como um regulador. Em si, ele é um conceito contraditório, porque é simplesmente enunciação de um paradoxo entre os termos servo e arbítrio. Esses dois termos não podem coexistir logicamente: