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CAPÍTULO I O mal como acesso concreto à Transcendência 29 

1.5 O mal na totalidade de sentido 78 

1.5.1 O sentido e o Mito Adâmico 81 

Para Ricœur o significante total que engloba a experiência da falta pode ser colocado pela opção da multiplicidade de mitos186 do começo e do fim do mal. Entretanto, há de se elaborar uma tipologia desses mitos. Mas há de se perguntar como fazer com que a neutralidade filosófica não seja afetada pelas etapas tipológicas da interpretação dos mitos?

182A Simbólica do Mal, 2013, p. 185. 183Ibidem, p. 187.

184Idem.

185“O mito como narrativa que relaciona a experiência presente da culpa com a totalidade do

sentido” (Ibidem, p.188).

Essa é a dificuldade que a opção pelo mito nos impõe, mas ninguém pode se interrogar a partir de um lugar que não existe, por isso é preciso se situar em algum lugar e, esse lugar, para Ricœur, no qual se pode escutar, ouvir e compreender a instrução dos mitos em seu conjunto, é no mito adâmico.

O mito adâmico, a exemplo de outros mitos, dá à história um movimento que tem começo e fim, de como o homem era inocente e passou a ser culpado. Esse mito é um mito antropológico por excelência187. A sua elaboração é de situar historicamente, na linha da experiência hebraica do pecado e da culpa, em conjunto com o juízo, e da misericórdia e finalizar com a reflexão de Paulo sobre o velho Adão e sobre o novo. Ricœur toma o texto bíblico do mito adâmico para mostrar que a função simbólica desse mito só pode ser mostrada por meio da narração humana. Tudo isso implica a dissolução dos pressupostos teológicos dos mitos teogônicos e trágicos, pois afirma o monoteísmo ético de um deus bom. A análise desse mito mostra uma afirmação central que a origem radical do mal é distinta da origem do ser bom das coisas. Logo, se a criação é início absoluto das coisas, o homem é o início do mal com o seu ato livre.

Precisa-se ter em mente que o mundo dos mitos não é um universo tranquilo e reconciliado, mas um espaço que prepara uma abordagem filosófica. O mito adâmico tem por intenção “ordenar todas as outras figuras a partir da de Adão, e em compreendê-las em ligação com ela, e como que na fronteira da narrativa cujo principal protagonista é Adão”188. Assim, em primeiro lugar, esse mito convém a uma cristologia, ou seja, ao anúncio da salvação por Cristo em uma doutrina da justificação pela fé. É um mito que contém um começo e um fim. Ao narrar o início de uma criação boa, esse mito, admite que a primeira e a última palavra da história humana não é o mal.

187A Simbólica do Mal, 2013, p. 251. 188Ibidem, p. 254.

O mal que é o cativeiro do homem deve ser superado. Superado por uma redenção anunciada pelo mito adâmico e comprovada pelo filósofo fundado na força reveladora do símbolo. Na verdade, o que é a “descrição do pecado e a simbolização de sua origem, por meio do mito adâmico” senão “o reverso de uma palavra de libertação e de esperança”189.

Essa narrativa sugere que a conduta é um drama, uma ação promulgada, especialmente se notarmos a figura da serpente. Ela é o símbolo do desejo que é vítima de si mesmo, o cativo infinito do desejo que perverte o homem no sentido de um limite que orienta a liberdade. A serpente é a exterioridade do mal, pela qual o homem cede por sedução pelo que está fora. Ou seja, o mal já está lá e que todos o encontram sem o iniciar. O mal que escapa à liberdade responsável do homem é o testemunho ulterior que o homem não é a origem do mal e que de outra parte, tal origem não é dualistamente coextensiva ao bem, pois o homem não é o pecador absoluto, nem pecador em segunda, mas por sedução. O mito assim, recapitula todo mal da história em um único acontecimento e unifica a humanidade na figura de Adão, que é o paradigma da multiplicidade e unidade humana.

A segunda razão é que a narração bíblica da queda procede simbolicamente de uma significação que esclarece a existência humana e dá uma compreensão mais adequada ao advento da salvação na qualidade de prolegômenos da fé.

A Terceira, o mito adâmico não somente introduz uma oposição no mundo dos mitos que polariza duas tendências “aquelas que transferem o mal para além do humano e aquela que o concentra numa escolha má, a partir da qual começa pela pena de ser homem”190. Esse mito também é portador do conflito

189Ibidem, p. 442

190Hermenêutica dos Símbolos e Reflexão Filosófica I, in O Conflito das Interpretações,1999,

da origem do mal. Desta maneira, “a apropriação do mito adâmico acarreta a apropriação em cadeia dos outros mitos que falam a partir do lugar de onde o mito dominante se dirige a nós”191. Nesse mito, em particular, existe uma tensão escatológica, pois em si, contém a promessa de cumprimento, por isso ele pode ser lido a partir dos símbolos do fim. As histórias de Abraão, dos patriarcas, do Filho de Davi, do Filho do Homem representam as etapas de uma originária e progressiva escatologização. Pelo movimento do fim, compreendemos o início. Em Paulo, o perdão supera a imagem jurídica do pagamento, para conquistar o sentido de remissão no processo escatológico. De tal modo, o perdão é algo mais que um simples fato psicológico ou de uma relação dual, pois torna-se um fato comunitário e cósmico.

A dinâmica dos mitos desobstrui um espaço orientado através do qual é possível recolher a mensagem de um conjunto de mitos a partir da perspectiva da confissão judaica e cristã dos pecados. Na realidade, o ângulo de perspectiva é mais cristão que judeu, pois ele mostra a convergência do mito adâmico à cristologia, o anúncio da salvação através de Jesus Cristo. Podermos dizer que o anúncio é que forma a verdadeira pressuposição da mediação de Ricœur sobre a falta.

Cabe-nos agora abordar o mito adâmico como ruptura entre a ontologia e a história.