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CAPÍTULO I O mal como acesso concreto à Transcendência 29 

1.6 A ontologia e a história 84 

O mito, por assim dizer, é a nossa mentalidade histórico-crítica do drama humano, não pode ser vivido nem como acontecimento histórico, nem como uma

explicação etiológica e, menos ainda, como gnose, ou seja, uma forma de consciência que pretenda dar cabo de um conhecimento universal e totalizante. O mito é essencialmente símbolo. A função simbólica está em significar a plenitude originária que o sobrenatural, o natural e o psicológico mantêm cindida. Tal plenitude não pode ser mais visada ou dada, mas deve ser intencionada e significada a partir da função simbólica.

Ricœur afirma mais de uma vez que a narração do mito adâmico é antropológica, pois nela o homem não constitui a origem do mal. O mito fornece uma expressão mítica da experiência penitencial de Israel, ele está enraizado na confissão judaica dos pecados, explicita a tendência de universalizar o pecado como atos maus originados de uma decisão singular.

No mito adâmico, o mal não pode ser reduzido ao mal atual, porque está no homem com um fundo de uma trágica pecabilidade, por isso, esse mito reafirma algo de trágico. Ele evidencia que a antropologia não se basta e que a simbólica do mal não pode exaurir a questão do mal. Em suma, não pertence à esfera da competência de uma antropologia do mal a solução dos problemas que foram suscitados. A resposta viria, segundo, Ricœur, no campo de uma poética da liberdade e através do homem que ascende à possibilidade de uma antropologia filosófica192 ou mesmo uma cristologia capaz de incluir na vida mesmo de Deus, em uma dialética da pessoa divina, a figura do servo sofredor evocada como possibilidade suprema do sofrer humano193.

A confissão é uma dimensão do mal que mostra a santidade absoluta de Deus e pela qual o mal decorre de uma escolha humana, a escolha de Adão. Adão com seu ato exprime a humanidade inteira, unifica dentro de uma culpabilidade indivisa: designa o nós pecadores na confissão dos pecados e na comunhão

192A Simbólica do Mal, 2013, p. 346. 193Ibidem, p. 347.

pecadora. O mito adâmico concentra a tensão que está inserida na confissão judaica, a saber, a santidade de Deus e o mal no homem. Se a raiz do pecado é formada pelo ser do homem, a acusação profética não retorna a Deus que é criador dessa natureza? O fiel que comete o mal não se acusara perante Deus ao mesmo tempo que Deus o acusa? E se Deus é acusado, a dupla confissão judaica não é profundamente abalada?

O mito adâmico dentro de um momento de tensão da experiência penitencial judaica tem por função “estabelecer um ‘começo’ do mal, um acontecimento pelo qual o pecado deu entrada no mundo e, através do pecado, a morte”194. Ele é o mito do surgimento do mal dentro de uma criação boa. Desta forma, a Origem é uma origem da bondade da criação e da maldade da história. O mito adâmico satisfaz a dupla confissão do judaísmo: a perfeição absoluta de Deus e a maldade radical do homem que é “o próprio espírito da sua penitência”195.

Para Ricœur, o mito adâmico explora o ponto de ruptura entre a ontologia e a história. Ao homem é atribuída a responsabilidade do mal que ele “começa” no sentido de uma criação “[...] que teve início absoluto no ato criador de Deus”196. É através do homem e de seus atos que o mal entrou no mundo, em uma criação boa. O mito elabora uma antropologia de ambiguidade que sobrepõe e opõe dois regimes existenciais, a inocência e a pecabilidade (condição do ser humano de estar propenso ao mal mediante uma escolha livre, ou seja, a concepção da responsabilidade pelos atos não conformes à lei moral197).

194Ibidem, p. 261. 195Ibidem, p. 262. 196Ibidem, p. 253.

197Cf. GIACOIA Jr., Oswaldo radi. Reflexões sobre a noção de mal radical, in Studia Kantiana. Revista da Sociedade Kant Brasileira. Vol. I, nº. 1, set. 1998, pp. 183-202.

A queda como acontecimento começa no instante que encerra a inocência e começa a culpabilidade. Se o instante marca a análise entre o passado e o futuro, ele constitui ponto de união. Por causa dessa função do instante, de separação e união, toda atividade humana se refere ao destino originário do homem e seu mal radical. Ricœur nos diz que: “toda dimensão do homem – linguagem, trabalho, instituição, sexualidade – tem como empresa a dupla marca do bem como destino e da tendência para o mal”198. É possível interpretar os dois estados, inocência e culpabilidade, como duas modalidades coexistentes na compreensão de homem. O homem é simultaneamente bom e pecador. O pecado não sucede à inocência, mas a perde através do instante. O instante aplica o papel da coisa-em-si do kantismo199, a inocência deve ser pensada não mais com um estado histórico anterior, mas com uma realidade que limita a pretensão de um fenômeno histórico do pecado a se igualar no ser do homem. Para Ricœur:

Afirmar o mundo como aquilo no qual o pecado desviou, ou a inocência como aquilo a partir do qual o pecado se desviou, ou ainda, metaforicamente, o Paraíso como o lugar de onde o homem foi expulso, é atestar que o pecado não é nossa realidade originária, não constitui o

198 Ibidem, p. 265.

199Para Kant “o entendimento pensa um objeto em si, mas apenas como objeto transcendental,

que é a causa do fenômeno e, por conseguinte, não é ele o próprio fenômeno” que espécie de coisa em si mesma (objeto transcendental) seja a matéria é-nos dada, sem dúvida, completamente desconhecida” (KANT, I., Crítica da Razão Pura, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 371). Ou seja, o que Kant chama de a coisa em si, não se pode conhecer; porque eu conheço a coisa em mim. O que eu conheço, conheço submetido a mim; submetido ao meu espaço, ao meu tempo, às minhas categorias, isto é a coisa em mim, que ele chamará "fenômeno", opondo-o ao "noumeno", a coisa em si. Quando eu conheço algo, transformo, modifico a coisa em si, que, como tal, é inadmissível. É contraditório que eu conheça a coisa em si porque quando a conheço está em mim, ingressa em minha subjetividade, que a modifica. Para uma melhor abordagem do problema ver: BONACCINI, J. A. Kant e o problema da coisa

em si no Idealismo Alemão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2003; HATMANN, N. A filosofia do idealismo Alemão. Trad. J. Gonçalves Belo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian 1983.

nosso primeiro estatuto ontológico. O pecado não define o ser-homem; para lá do seu devir-pecador está o seu ser-criado200.

A inocência significa o ser-criado e é este estado da criatura que constitui a bondade original do homem à imagem de Deus. Se a inocência, a partir do pecado, é um estado anterior àquele caracterizado pela culpabilidade, devemos reconhecer que a razão de sua identidade com a semelhança divina - “façamos o homem à nossa imagem”201- coexiste com o pecado do homem. O instante da queda não suprime o instante da criação, ou melhor, o instante da existência humana comporta simultaneamente a inocência e a pecabilidade. Assim, o mal transcende o estatuto ontológico do homem.

Se a inocência significa a bondade do homem em sua origem e o status de criatura, mesmo se não vivesse seu destino para o bem, o homem não cessaria de ser bom, pois constantemente é criado. Por exemplo: João não pode cessar de ser uma criatura, mesmo que ele rejeite o seu status de criatura. Desta forma, somente a recusa é histórica enquanto a criação é ontológica.

A distensão temporal do mito exprime a coabitação no homem de uma natureza originariamente boa e de um mal radical, porém contingente. Diante da contingência, o mal perde seu caráter de fatalidade e deve ser susceptível a um fim. Ricœur nota que a contingência do mal não dissolve por inteiro seu aspecto trágico e inelutável que o mito adâmico relata.

Ricœur afirma que “por mais radical que seja o mal, ele jamais será originalmente como a bondade”202. Ou seja, o mito da queda somente é possível no contexto de um mito de criação e inocência, no qual a bondade é sempre mais

200A Simbólica do Mal, 2013, pp. 269-270. 201Gn, 1, 26.

originária que o mal. Se todos os mitos da queda narram o momento de criação e do cair do homem, eles também nos mostram a riqueza simbólica na qual o mal surge no Instante, o homem não é um malvado absoluto, um mal primordial. Contudo, “o mal não é simétrico do bem, a maldade não substitui a bondade do homem. Eles não são mais que corrupção, o obscurecimento e a fealdade de uma inocência, de uma luz e de uma beleza que, ainda assim, continuam a existir”203. O pecado no momento da queda não sucede à inocência, mas no Instante, perde-a. Ricœur nos coloca que não posso deixar de ser criado, pois se o deixo, não existo, logo se existo não deixo de ser bom, pois fui criado bom. Logo, quando há o acontecimento do pecado, a inocência cessa, no Instante. O acontecimento do pecado é a descontinuação e a fratura do meu ser criado e do meu vir a ser mau.