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A legalização do aborto como alternativa ao problema de saúde pública

Conforme todo o exposto até aqui, fica evidente que a proibição do aborto não diminui a ocorrência deste procedimento, uma vez que acaba sendo realizado de forma clandestina, muitas vezes sem as mínimas condições sanitárias e, inclusive, por profissionais não preparados. Tudo por conta da falta de regulamentação do procedimento, haja vista que a gestante que interrompe voluntariamente a gravidez não tem amparo algum do Estado.

Deste modo, resta cristalino que a alternativa lógica a seguir seria a legalização do procedimento no país, não como forma de incentivo ao abortamento, mas como segurança de que a gestante que escolher não levar uma gestação até o fim a possa interromper dentro da legalidade, bastando que assim o queira, sem questionamentos, punições ou qualquer tipo de discriminação, inclusive podendo contar com o Estado para ampara-la neste momento delicado.

2.3.1 Os movimentos sociais na luta pela legalização

Não há que se falar sobre aborto sem mencionar a visão dos movimentos sociais a respeito do tema

,

importantes atuantes nas lutas pela regulamentação e legalização da interrupção voluntária da gestação

.

De acordo com Ribeiro (2011, p. 01), conceitua-se movimento social da seguinte forma:

Em linhas gerais, o conceito de movimento social se refere à ação coletiva de um grupo organizado que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político, conforme seus valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e de um contexto específicos, permeados por

tensões sociais. Podem objetivar a mudança, a transição ou mesmo a revolução de uma realidade hostil a certo grupo ou classe social. Seja a luta por um algum ideal, seja pelo questionamento de uma determinada realidade que se caracterize como algo impeditivo da realização dos anseios deste movimento, este último constrói uma identidade para a luta e defesa de seus interesses. Torna-se porta-voz de um grupo de pessoas que se encontra numa mesma situação, seja social, econômica, política, religiosa, entre outras.

Dada a definição de movimento social

,

faz-se necessário elucidar o seu papel na luta pela descriminalização

.

O chamado movimento “pró-escolha” luta pelo direito da mulher de escolha entre ter ou não o filho

,

antagonizado pelo movimento “pró- vida”

,

o qual se coloca contrário a descriminalização do aborto

.

Tais movimentos são perfeitamente definidos e explicados por Sagan (1997. p

.

121)

:

Na caracterização mais simples, um adepto do "pró-escolha" sustentaria que a decisão de abortar uma gravidez deve ser tomada apenas pela mulher; o Estado não tem o direito de interferir. E um adepto do "pró- vida" afirmaria que, desde o momento da concepção, o embrião ou feto está vivo; que essa vida nos impõe a obrigação moral de preservá-lo; e que o aborto equivale a um homicídio. Os dois nomes - pró-escolha e pró-vida - foram escolhidos com vistas a influenciar aqueles que ainda não se decidiram: poucas pessoas desejam ser contadas entre aqueles que são contra a liberdade de escolha ou aqueles que se opõem à vida.

Portanto

,

denota-se que o movimento pró-escolha não é pró-aborto

,

mas apenas a favor da liberdade para as mulheres escolherem o destino do próprio corpo

.

Tal qual o que se evidencia por Boiteux (2016. p.1)

,

a qual menciona que o movimento defende que “a proibição do aborto é uma política de controle social da mulher que tem por objetivo retirar dela o domínio sobre seu próprio corpo. ”.

Em 1971 os movimentos sociais tiveram grande impacto na legalização do aborto na França. Tendo como uma das principais ativistas a figura de Beuvoir que manifestou-se na revista francesa Le Nouvel Observateur (traduzido aqui para português)

,

acompanhe-se (BEUVOIR. 1971

.

p

.

1)

:

Um milhão de mulheres abortam todos os anos na França. Elas abortam em condição arriscada por causa da clandestinidade a que são condenadas, ainda que essa operação, se praticada sob supervisão médica, seja muito simples.

Silenciamos sobre esses milhões de mulheres. Declaro ser uma delas. Declaro ter abortado. Da mesma maneira que demandamos acesso livre aos métodos contraceptivos, nós pedimos o aborto livre.

Tal declaração evidencia que não é de hoje que as mulheres lutam pelo direito de escolher se querem

,

ou não

,

levar adiante a gravidez. Nesta mesma seara afirma Reis (1994. p.5):

Os movimentos feministas [...] foram decisivos para a legalização do aborto da França, o serão no Brasil, pois a moderna mulher brasileira também não mais aceita ocupar uma posição subalterna, depender do homem, obedecê- lo como a criança obedece a seus pais (como era obrigatório na França sob o império do Código de Napoleão que decretava "o dever de obediência ao marido"), nem muito menos admite sujeitar-se aos rigores de uma lei obsoleta e injusta.

Isto posto, pode-se afirmar que, ao longo do tempo, com o maior acesso a informação, mais mulheres brasileiras tomarão posicionamento diante deste impasse, ao adquirirem a consciência de sua igualdade perante o homem, como seres humanos dotados de livre arbítrio e total domínio sobre o próprio corpo.

É inegável o fato de que mulheres com melhores condições financeiras conseguem pagar por abortamentos mais seguros, em clinicas nas quais, mesmo que ainda clandestinas, há profissionais qualificados para tal tarefa, equipamentos adequados e acompanhamento médico após o procedimento, neste mesmo sentido aduz Sarmento (2005. p. 51):

As gestantes de nível social mais elevado, quando decidem pelo aborto, têm como realizá-lo, apesar da sua ilicitude, com acompanhamento médico e em melhores condições de higiene e segurança. Já as mulheres carentes acabam se submetendo a expedientes muito mais precários e perigosos para pôr fim às suas gestações.

Por esta razão na luta pró-escolha figuram, também, representantes das camadas mais vulneráveis da sociedade, conforme afirma Werneck (2009. p. 441):

Diferentes organizações de mulheres, incluindo as de mulheres negras e suas articulações nacionais, estão envolvidas na luta pelo direito ao aborto no brasil. a partir da defesa da descriminalização, estas organizações reafirmam o posicionamento de que o acesso livre ao abortamento, quando necessário, deve ser um direito de escolha da mulher em nome da autonomia sobre o próprio corpo. Ou seja, a máxima “nossos corpos nos pertencem” está na base da tomada de decisão sobre fecundidade e procriação de cada uma em particular e das mulheres em geral.

Tal participação se dá, uma vez que as principais atingidas pela proibição do aborto são justamente mulheres com baixas condições econômicas. Ocorre que de vítimas da desigualdade, tais mulheres passam a criminosas ao interromperem uma gravidez que não teriam condições de levar adiante, conforme aduz Negrão (2009. p.485):

Segundo as estatísticas existentes, entre 1970 e 1989, no estado de São Paulo, 765 casos de aborto chegaram às cortes, 102 foram julgados e 32 condenados (4%). Estes dados permitem afirmar que a criminalização do aborto no brasil não impede as mulheres de fazer aborto, mas consegue transformar todas as mulheres que o fazem em delinquentes, sujeitas ao risco de morrer ou ter sequelas graves.

Neste mesmo sentido, Ardaillon (1998. p.1) afirma que a criminalização do aborto no Brasil “só estabelece uma ilegalidade para as mulheres pobres, cuja maioria é de raça negra”. Estas afirmações sintetizam o fato de que a proibição do aborto no Brasil acaba servindo como grande meio de segregação, tratando de forma muito desigual os menos favorecidos economicamente.

2.4 A criminalização do aborto como uma questão de saúde pública e a afronta