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Uma vez expostos os principais avanços em direção à legalização do aborto no Brasil, serão trazidas à baila exemplos da visão de alguns países a respeito do mesmo tema, a forma que a lei local trata a interrupção da gestação de forma voluntária e os resultados atingidos na prática, na saúde pública e direitos humanos.

Para tanto, tratar-se-á a respeito da legalização do aborto nos Estados Unidos da América (EUA), por sua relevância no cenário geopolítico mundial, a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), pelo pioneirismo na área e Portugal, pelas semelhanças entre o seu ordenamento legal e o do Brasil.

Em relação ao aborto na antiga União Soviética, pode-se ressaltar que após a Revolução Russa de 1917, na qual foi derrubada a monarquia Tzarista russa, com a ascensão dos Bolcheviques, liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov, mais conhecido como Lenin, foram trazidos novos ideais de igualdade de gênero pioneiros no mundo todo, os quais objetivavam inserir a mulher como participante ativo da vida social e política do país, como forma de fortalecer a revolução.

Muitos desses paradigmas, inclusive, ainda não são adotados em países ocidentais atualmente. Conforme relata Goldman (2014. p. 17-18):

Sob o socialismo, o trabalho doméstico seria transferido para a esfera pública: as tarefas realizadas individualmente por milhões de mulheres não pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores assalariados em refeitórios, lavanderias e creches comunitários. Só assim as mulheres se veriam livres para ingressar na esfera pública em condições de igualdade com os homens, desvencilhadas das tarefas de casa. As mulheres seriam educadas e pagas igualitariamente, e seriam capazes de buscar seu próprio desenvolvimento e seus objetivos pessoais.

Nessa mesma seara, ao perceber que aumentava exponencialmente o número de mulheres que realizavam abortos de forma clandestina, veio o decreto que tornava o aborto legal, amparado pelo Estado, mas permitido somente se feito por médicos, Goldman (2014. p. 270) acerca do tema relata:

Reconhecendo que a repressão foi inútil, o decreto permitia às mulheres fazerem abortos gratuitos em hospitais, mas apenas pelos médicos; as babki (parteiras camponesas) ou parteiras teriam de enfrentar sanções penais e seriam privadas do seu direito à prática da profissão. O decreto explicava que “as reminiscências morais” e as “dolorosas condições econômicas do presente” tornavam o aborto necessário. Oferecia às mulheres uma alternativa segura, legal e economicamente justa aos becos do passado

Tal mudança permitiu acesso a maior segurança na realização dos procedimentos, agora realizados somente por profissionais qualificados, entretanto, nem todas as mulheres tinham acesso ao aborto legal, uma vez que era realizado somente nas cidades e o país era, em sua vasta maioria, composto de áreas rurais.

Contudo, após preocupante decadência na taxa de natalidade, de acordo com Goldman (2014. p.300), no ano de 1936 tal decreto foi revogado e o aborto foi novamente criminalizado, acompanhe-se:

Em junho de 1936, em meio a uma grande campanha de propaganda, o Comitê Executivo Soviético Central (TsIK) e o Sovnarkom emitiram um decreto que declarava o aborto como ilegal. Aqueles que praticassem a operação estariam sujeitos a no mínimo dois anos de prisão, e inclusive a mulher que se submetia ao aborto estaria sujeita a multas altas depois da primeira infração. A nova lei oferecia incentivos para a maternidade mediante um subsídio para novas mães, bônus grandes para mulheres com muitos filhos e licenças maternidade mais longas para funcionárias administrativas. Também aumentou a quantidade de clínicas de maternidade, creches e cozinhas de leite. Somado às medidas pró-natalidade, ficou mais difícil conseguir um divórcio, e as multas e penas para os homens que negassem pagar pensões alimentícias aumentaram. A proibição do aborto foi a peça- chave de uma campanha mais ampla para promover a “responsabilidade familiar”.

Apesar de suas inúmeras limitações, a experiência soviética foi muito importante para o avanço da discussão sobre o aborto na Europa e restante do mundo, uma vez que mostrou que era possível legalizar o aborto e haver apoio do Estado, como uma alternativa à realização clandestina e perigosa à saúde da mulher.

Os Estados Unidos da América (EUA) se encontram atualmente como um dos países mais influentes na cultura ocidental, através de seu grande poderio econômico e bélico, alcançado ao longo dos séculos XIX e XX, através de vitórias nas duas grandes guerras mundiais.

Conforme Cabral (2009), a discussão acerca do aborto sempre gerou grande polemica, chegando a levar a sociedade estadunidense a se dividir entre pro-life (pró- vida), com maior viés religioso e conservador e pro-choice (pró-escolha), que defende a liberdade de escolha da mulher sobre continuar com a gestação.

Tal discussão levou ao caso Roe vs. Wade, em 1973, no qual a Suprema Corte decidiu que o aborto voluntário realizado no primeiro trimestre de gravidez não seria mais criminalizado. Conforme exposto por Cabral (2009. p.1):

Em síntese, no caso Roe v. Wade (1973), a Suprema Corte norte-americana estabeleceu que as mulheres tinham o direito ao aborto, como consequência do direito à privacidade protegido pela Emenda nº 14 à Constituição norte- americana. A decisão declarou a inconstitucionalidade da Lei estadual do Texas e conferiu as mulheres uma total autonomia para interromper a gravidez durante o 1º trimestre de gestação. Admitiu-se, ainda, a existência de alguns critérios de limitação aos abortos praticados nos 2º e 3º trimestres de gestação. De uma forma geral, pode-se dizer que a decisão da Suprema Corte afetou quase a totalidade das Leis estaduais que disciplinavam a prática do aborto nos Estados Unidos.

De acordo com Pereira (2015), a Suprema Corte estabeleceu que a gestação seria dividida em trimestres, sendo que no primeiro trimestre, uma vez que o abortamento oferece tantos riscos à mulher quanto um parto, a pratica seria legalizada, não havendo motivos para a interferência do estado em tal procedimento. Já a partir do segundo trimestre, o procedimento poderia ser regulamentado, visando preservar a saúde da mulher. E após o terceiro trimestre da gestação, uma vez que já é viável a sobrevivência do feto fora do útero, o aborto poderia ser, inclusive, proibido.

Tal decisão causou, devido a própria natureza do tema, grande polêmica na sociedade estadunidense, conforme explana Sarmento (2005. p.7):

Por honestidade intelectual, é mister reconhecer que a referida decisão provocou na época, e ainda provoca, até hoje, intensa polêmica nos Estados Unidos. Além da crítica substantiva relacionada ao resultado atingido, foram levantadas fortes objeções contra a legitimidade democrática de um tribunal não eleito para decidir questão tão controvertida, sobrepondo a sua valoração àquela realizada pelo legislador, tendo em vista a ausência de qualquer definição no texto constitucional sobre a matéria. Sem embargo, apesar dos esforços dos militantes do grupo Pro-Life e de sucessivos governos do Partido Republicano, no sentido de forçar uma revisão deste precedente, ele, nas suas linhas gerais, ainda hoje se mantém em vigor nos Estados Unidos.

Deste modo, após tal decisão da Suprema Corte, nos Estados Unidos as Mulheres possuem a liberdade de escolher se querem, ou não, dar prosseguimento à gestação, tendo o apoio necessário do Estado, desde que realizado dentro do período já estabelecido em lei.

Na França, houve grande luta de movimentos sociais pró-escolha, tendo como principais expoentes o Manifesto das 343 pelo Nouvel Observateur, no qual centenas de personalidades femininas assinaram declarando já ter realizado um aborto clandestino e posteriormente o surgimento dos movimentos Choisir e MLAC (Movimento pela Liberalização do Aborto e da Contracepção) que, de acordo com Lavinas (2015. p.1), “reuniu à época não apenas feministas, mas também membros da classe médica que passam a praticar aborto seguro, ainda que ilegal e passível de prisão”.

Tais movimentos levaram a aprovação da lei nº 75-17 em 1975, conforme explana Sarmento (2005. p. 9):

O debate constitucional na França deu-se em termos um tanto diferentes do que nos Estados Unidos, pois a iniciativa de legalizar o aborto partiu do legislador e não do Judiciário. De fato, em 1975, foi aprovada a Lei nº 75-17, que teria vigência temporária por 5 anos, permitindo a realização, por médico, da interrupção voluntária da gravidez nas dez primeiras semanas de gestação, a pedido da gestante, quando alegue que a gravidez lhe causa angústia (detresse), ou, em qualquer época, quando haja risco à sua vida ou saúde, ou exista forte probabilidade de que o feto gestado venha a sofrer, após o nascimento, de “doença particularmente grave reconhecida como incurável no momento do diagnóstico”. Pela lei em questão, deveria a gestante, antes do aborto, submeter-se a uma consulta em determinadas instituições e estabelecimentos, que lhe forneceriam assistência e conselhos

apropriados para a resolução de eventuais problemas sociais que estivessem induzindo à decisão pela interrupção da gravidez.

Sarmento (2005) lembra que no ano de 1979, tais normas tornaram-se definitivas, deste modo o aborto voluntário nas dez primeiras semanas de gravidez tornou-se legalizado, em um modelo semelhante ao adotado posteriormente em Portugal. Em 1982, nova lei surgira, prevendo a obrigação da Seguridade Social francesa de arcar com 70% dos gastos decorrentes da interrupção da gestação.

O ordenamento jurídico de Portugal divide as mesmas raízes romano- germânicas do brasileiro, trazendo grandes semelhanças na forma como se regulamenta a sociedade, por todo o histórico como colônia até o século XIX. No entanto, apesar de tais similaridades, em Portugal a interrupção voluntária de uma gestação (IVG) não é criminalizada.

Conforme relata Dias (2017), até fevereiro de 2007 o aborto em Portugal era criminalizado e possuía tão somente três excludentes de ilicitude, semelhantes às existentes no Brasil, quais sejam a má formação do feto, estupro e risco de morte para a mãe. Entretanto, naquele ano foi realizado um referendo nos quais os portugueses responderam nas urnas a pergunta “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?”, tendo o “Sim” vencido com 59% dos votos.

Tal referendo deu origem a Lei nº 16/2007 de 17 de abril, a qual tornou a IVG legal e estabeleceu parâmetros para o procedimento. O dispositivo alterou a redação do artigo 142 do Código Penal Português, tendo agora a seguinte redação (PORTUGAL. p.33. 2007):

Artigo 142.º - Interrupção da gravidez não punível

1 — Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida, quando:

a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;

b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;

c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excepcionando -se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo; d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas;

e) For realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez. (grifo nosso)

Para tanto, foi estabelecido a necessidade de uma consulta prévia e um período de reflexão de, no mínimo três dias, conforme enumerado nas alíneas 4 e 5 do artigo supracitado, bem como consentimento expresso da gestante ou seu representante legal, caso seja menor de 16 anos, acompanhe-se (PORTUGAL. 2007. p. 34):

4 — O consentimento é prestado:

a) Nos casos referidos nas alíneas a) a d) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção; b) No caso referido na alínea e) do n.º 1, em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo, o qual deve ser entregue no estabelecimento de saúde até ao momento da intervenção e sempre após um período de reflexão não inferior a três dias a contar da data da realização da primeira consulta destinada a facultar à mulher grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável.

5 — No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, o consentimento é prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua alta, por quaisquer parentes da linha colateral.

6 — Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.

Passados dez anos desde a legalização, Portugal é atualmente um dos países que menos aborta na Europa e os números vem diminuindo ao longo dos anos, conforme Dias (2017.p.1):

É difícil precisar, mas estima-se que, na década de 1970, o número de abortos em Portugal ultrapassava 100 mil. Destes, 2% resultavam em morte (o aborto era a terceira causa de morte das mulheres). Naquela época, todos os abortos eram ilegais - por isso, o número é apenas uma estimativa. Dados mais recentes, de 2008, mostram que o país registrou 18.014 abortos. O número cresceu ligeiramente nos primeiros anos da legalização, mas desde 2013 está em queda constante. Em 2015 foram 10% menos abortos do que em 2008.

Cabe mencionar, conforme Madeira (2016) que tal direito estende-se inclusive para mulheres imigrantes, independentemente de sua situação legal no país, resguardando-se a privacidade e o sigilo profissional em todas as etapas do processo

de interrupção da gravidez. Outrossim, médicos que não concordem com a realização do procedimento podem alegar “objeção de consciência” e indicar o procedimento a outro médico.

Deste modo, Portugal passou a tratar a interrupção voluntária da gestação como procedimento permitido e o Estado passou a fornecer ajuda àquelas mulheres que escolhem não levar adiante a gestação, desde que até a décima semana, tendo a disposição da gestante saúde de qualidade.

A legalização da interrupção voluntária da gravidez em outros países da

América Latina, segundo Centenera (2017) também figura como um grande impasse,

uma vez que, em sua vasta maioria, os países possuem legislações restritivas à pratica. Apenas 4 países permitem que seja interrompida a gestação sem apresentar justificativas, até a 12ª semana, quais sejam o Uruguai, Cuba, Porto Rico e a Guiana, bem como a Cidade do México.

A maioria dos países com proibição absoluta do aborto estão situados na América Latina, região que concentra também o maior número de gravidezes não planejadas no mundo, Centenera (2017. p.1) menciona que “segundo a ONU, a cada ano centenas de milhares de mulheres abortam de forma clandestina, e as complicações decorrentes dessas intervenções representam uma das principais causas de mortalidade materna”.

Grande parte dos países possui as mesmas três exceções que a legislação brasileira, quais sejam, quando a gravidez colocar em risco a saúde da mulher, se decorrer de estupro ou se o feto for inviável fora do útero. Além disso, estes países também possuem em comum grande presença religiosa, conforme Freitas (2016. p. 3):

Embora a influência religiosa seja um fator comum a todos os países latino- americanos em que o aborto é restrito, essa também é uma característica de vários países europeus em que o procedimento é completamente descriminalizado.

[...]

Os países da América Latina têm em comum, além da religião, uma escassez de mulheres no Executivo e no Legislativo - tanto para fazer leis sensíveis às questões relacionadas a mulheres quanto para garantir que elas sejam

cumpridas. Na região, apenas 25% dos cargos legislativos são ocupados por mulheres

Portanto, nota-se que a forte presença da religião não é o único fator que influencia na proibição da interrupção voluntária da gestação nos países da América Latina, mas também a escassa representatividade feminina nas esferas políticas responsáveis pela tomada das decisões e fiscalização dos direitos conferidos às mulheres.