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CAPÍTULO 2: AS CONQUISTAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.4 A Lei n° 11.645/2008

Como resultado de discussões, reivindicações e mobilizações dos povos indígenas, de indigenistas e de movimentos sociais engajados na defesa da causa, em 10 de março de 2008, a Lei n° 11.645/2008 acrescentou a temática indígena ao artigo 26-A, já alterado por sua vez pela Lei n° 10.639/2003. Naquele momento, Fernando Haddad era o ministro que estava à frente da pasta da Educação Nacional. De fato, ao estabelecer a obrigatoriedade curricular do tratamento da história e cultura indígena, a Lei previa que:

Art. 1º. O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. (NR)

Ao analisarmos a Lei n° 11.645/2008, não podemos deixar de retornar aos conceitos das políticas de promoção da igualdade racial. Como vimos, Jaccoud e

Beghin (2002) fazem uma distinção entre as políticas compensatórias, as repressivas e as políticas que objetivam valorizar as diferenças, ainda que ambas encerrem o mesmo sentido, qual seja, combater a discriminação e a desigualdade etnicorracial.

Ficam evidentes no texto da Lei os objetivos de reconhecimento e valorização das diversidades etnicorraciais. Ou seja, é uma política de qualidade permanente e o foco não está apenas nas populações marginalizadas, mas se destina a toda a sociedade. Seguindo essa concepção, pode-se compreender que, embora haja certa tendência em classificar quaisquer políticas e ações voltadas para os segmentos sociais minoritários como pertencentes ao campo das políticas afirmativas, a Lei n° 11.645/2008 se adéqua melhor às políticas de ação valorativa uma vez que investe contra o problema na sua base, ou seja, busca formar as novas gerações num contexto em que haja respeito às diferenças, além de ser destinadas não apenas a um grupo específico, mas a toda a sociedade.

A referida Lei é considerada pelos movimentos negros e indígenas como instrumento indispensável na luta contra as desigualdades etnicorraciais, uma vez que a instituição escolar possui a aptidão legal para contribuir com a desconstrução de preconceitos e estereótipos negativos associados a esses grupos. Isto, ao mesmo tempo em que pode colaborar na construção de novas representações sobre os negros e índios no Brasil, distanciadas dos atávicos preconceitos vigentes entre nós. Entretanto, como se sabe, uma lei pode tornar-se letra morta quando sua aplicabilidade representa mais um problema do que uma solução. O depoimento de uma das gestoras entrevistadas ilustra bem esse pensamento quando faz a seguinte afirmação:

a gente sabe que lei pode ser letra morta, não significa que ela vai ser cumprida, mas é uma coisa que vai garantir a dar um estatuto de que pelo menos seja controlada, que faça valer numa lei, positivada, mas não significa que vai ser cumprida... Tem uma força de lei, tem que ser cumprida, todo mundo tem que olhar pra isso, mas não é tão simples assim, você desconstruir um discurso que praticamente na mente do imaginário coletivo. Então, é toda uma reconstrução de um discurso pra poder ele ser tão incorporado (G2).

Vale destacar que são muitos os instrumentos de política acionados visando a garantir o cumprimento da legislação em foco, o que é indicativo de que as reivindicações e lutas das forças interessadas ganharam permeabilidade nos

aparelhos de Estado. Nesse sentido, para apoiar e garantir o cumprimento da Lei anterior, a de n° 10.639/2003, outros mecanismos legais foram elaborados, como o Parecer CNE/CP 003/2004 e a Resolução CNE/CP 001/2004. Esses documentos visam a instituir e fixar as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Posteriormente, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana foi elaborado como um documento pedagógico que objetiva orientar os sistemas de ensino e as instituições educacionais para a implementação da Lei n° 10.639/2003.

É necessário atentar para o fato de que no momento de publicação dos documentos mencionados, a Lei n° 11.645/2008 ainda não havia sido aprovada e, por essa razão, não há alusão à história indígena. Ainda assim, o Plano Nacional sofreu algumas pequenas modificações no texto original para incluir a temática indígena por ocasião da publicação da última Lei. Entretanto, como expresso no título e logo na apresentação do texto, fica claro que o foco continua sendo a História e Cultura Afro-brasileira e Africana, mesmo que “a compreensão trazida pela Lei n° 11.645/2008, sempre que possível, (esteja) expressa (naquele) Plano Nacional” (grifo nosso).

Não há, contudo, consenso entre as entidades negras na aceitação da substituição da Lei n° 10.639/2003 pela Lei n° 11.645/2008. Algumas correntes do MNU questionam a real necessidade de trazer a temática indígena para esse contexto, afirmando que a mesma já estava presente na LDBEN e no Plano Nacional, além de exercerem o direito à formação própria de seus educadores e educadoras e do ensino na língua materna. Isso, por si só, já asseguraria o reconhecimento cultural desses povos. Outras correntes argumentam que essa mudança pode originar certa confusão entre os profissionais da educação, que deixariam de compreender a complexidade da questão racial do negro no Brasil, entendendo que está sendo tratada apenas mais uma diversidade.

Entretanto, sabemos que, embora os formatos possam ser considerados diferentes, as situações sob as quais se encontram os indígenas não estão em melhores condições que as que se encontram os negros no Brasil. E, a despeito de já existirem determinadas políticas que objetivam a valorização daqueles povos, o tratamento da questão em sala de aula, como já foi discutido, é um diferencial

significativo que atua na base das estruturas da discriminação etnicorracial. Além disso, a educação escolar indígena de que tratam os arts. 78 e 79 da LDBEN se refere apenas à oferta da educação para os indígenas. Por essa razão, não possibilita aos não indígenas o conhecimento sobre as manifestações culturais e a contribuição desses povos na história da sociedade brasileira, o que comprometeria a supressão dos preconceitos e os estereótipos ainda muito presentes.

Para além de problematizações decorrentes de interpretações subjetivas nos dispostos das leis que, por sua vez, podem estar ligadas à detenção de protagonismos históricos dos movimentos sociais, a Lei n° 11.645/2008 imbrica as duas temáticas em seu todo. Portanto, a separação binária comumente observada em várias instâncias educacionais entre a Lei n° 10.639/2003 e a Lei n° 11.645/2008 pode ser considerada uma forma de segregação entre seus próprios protagonistas. Cabe destacar que a segregação e o preconceito consistem na carência de uma reflexão apurada de uma determinada realidade. Por fim, aquele que atua nessa direção, invariavelmente, reproduz preconceitos.

CAPÍTULO 3: A IMPLEMENTAÇÃO CURRICULAR DA HISTÓRIA E