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1.2 BLAU NUNES: UM NARRADOR DE MIL E UMA HISTÓRIAS

1.2.1 A Lenda e o Caso: As Mutações de Blau Nunes

Lendas do Sul faz parte do conjunto da obra ficcional de João Simões Lopes

Neto, publicado em vida, em 1913 pela editora Pelotense, e em 2ª edição pela editora Globo de Porto Alegre, num único volume, juntamente com Contos

Gauchescos. É um livro que reconta lendas ancestrais do Rio Grande do Sul,

passadas pela tradição oral. Em Lendas do Sul, o escritor apropria-se de narrativas folclóricas para falar “da fundação das instituições e dos valores democráticos baseados na coragem pessoal no Rio Grande do Sul” (ZILBERMAN, 1992). É por meio das lendas que Simões Lopes Neto insere o toque do sobrenatural e do fantástico, ultrapassando as fronteiras do real histórico na representação do gaúcho. A abertura de Lendas do Sul conta com uma nota introdutória do autor expondo um breve panorama da origem das lendas sul-riograndenses e como elas se misturaram aos motivos gaúchos. Além disso, o autor enfatiza seu objetivo de manter a feição expositiva das lendas proveniente da tradição oral como maneira de resgatar sua estrutura.

Convém recordar que o primeiro povoamento – branco – do Rio Grande do Sul foi espanhol: seu poder e influência estenderam-se até depois da conquista das Missões: provém disso que as velhas lendas riograndenses acham-se tramadas no acervo platino de antanho. Vem da Ibéria, a topar-se

com a ingênua e confusa tradição guaranítica (v. g. a lenda M’boitata´), a mescla cristã-árabe de abusões e misticismos, dos encantamentos e dos milagres: desses elementos confundidos e abrumados (p. ex. A Salamanca do serro do Jarau), nasceram idealizações novas e típicas, adaptadas ou decorrentes do meio físico e das gentes ainda na crassa infância das concepções.

É, como entre os conquistadores brancos corria intensa e rápida a febre da riqueza – o sonho escaldante do Eldorado – a fulgir nas areias e dos cascalhos, espadanando das entranhas misteriosas e apojadas do novo Mundo, a preponderante vivaz das suas ficções é sempre a imantada ânsia – pelo ouro!, forte sobre a dor e a própria morte...

Com a entrada dos mamelucos paulistas outras doutras feições vieram do centro e norte do Brasil: O saci pererê, o caapora, a uiara, que esfumaram- se no olvido.

Por último uma única se formou já entre gente lusitana radicada a incipiente, nativa: A do negrinho do pastoreio.

A estrutura de tais lendas perdura; procurei delas dá aqui uma feição expositiva – literária e talvez menos feliz – como expressão da dispersa forma porque a ancianidade subsistente transmite a tradição oral, hoje quase perdida e mui confusa: ainda por aí se avaliará das modificações que o tempo exerce sobre a memória anônima do povo. (SIMÕES LOPES, 1988, p.131)

Na sequência da nota, encontramos uma carta do escritor Coelho Neto, datada de 20 de novembro de 1909, parabenizando Simões Lopes pelo êxito do trabalho, ressaltando ainda a qualidade do texto “Negrinho do Pastoreio”, única lenda originalmente local cuja dedicatória está em seu nome. A carta destaca também o grande apreço de Coelho Neto pelo trabalho do amigo e o orgulho de ter sido ele um dos incentivadores do trabalho literário de Simões. Revela ainda, pelo registro datado, que os textos de Lendas do Sul preexistem à data da primeira edição.

Lendas do Sul possui dezessete lendas, sendo as três primeiras com

argumentos do Sul. Ambas as obras, Contos Gauchescos e Lendas do Sul, estão interligadas pelo mesmo tema e narrador, porém, em “A salamanca do Jarau” Blau é também protagonista da lenda.

A maioria das lendas selecionadas toma de fato um cunho de compilação, diferenciando-se somente as três primeiras, “A M’boitatá”, “A salamanca do jarau” e “O negrinho do pastoreio” que, ao abordarem o Rio Grande do Sul como cenário, recebem um formato de narrativa.

O autor faz então uma divisão ao organizar as lendas; as três primeiras mencionadas recebem o título de Lendas do Sul, enquanto as catorze restantes,

agrupadas sob o título de “argumento” de outras lendas, encontram-se nas seguintes categorias: Missioneiras, do Centro e Norte do Brasil.3

As três Lendas escolhidas pelo autor para representarem as expressões folclóricas do Sul já possuíam outras versões populares. O trabalho de Augusto Meyer (Folclore do Rio grande do Sul, s/d) identifica essas versões e também o que foi acrescentado para representar a estrutura e as relações sociais do universo gaúcho. Assim, tanto em “A salamanca do Jarau” quanto em “O negrinho do pastoreio” Simões reutiliza a tradição e redimensiona seus motivos, que ganham função diferente das originais.

Observando o projeto do autor, é possível notar que mesmo sob o título de lendas os textos que delas são construídos continuam narrando o universo do gaúcho e sua trajetória, ainda dentro de uma perspectiva histórica, recheadas com o sabor da invenção. Por isso mesmo o narrador Blau Nunes, o mesmo de Contos

Gauchescos, toma maior relevância como protagonista de “A salamanca do jarau”.

“O negrinho do pastoreio” ganha então o espaço das estâncias, dos pampas gaúchos; como dono um estancieiro cruel e como madrinha a figura de nossa senhora, responsável por resgatá-lo das maldades de seu patrão e restaurar a liberdade cerceada.

É obvio que por trás do enredo lendário há a representação da estrutura patrimonialista e patriarcal de repressão, mas com uso do recurso fantástico propiciado pelos motivos lendários o autor consegue conferir às histórias uma linguagem poética.

Muito da compilação feita por Simões Lopes foi utilizado por outros autores, especialmente Érico Veríssimo, com o aproveitamento de muitas partes das lendas como, por exemplo, “A salamanca do Jarau”, quando compôs O tempo e o vento. Essa lenda permite a associação com as questões da liberdade e do livre arbítrio como resposta aos conflitos sociais, representada pela solidão de Blau e seu momento de crise. Ela ainda faz referência às ameaças do progresso, configuradas nos símbolos da busca do boi barroso e da sedução da teiniaguá, como representante e protetora das riquezas do Cerro do Jarau.

3 As Missioneiras compõem “A mãe do ouro”, “Cerros bravos”, “A casa de M’bororé”, “Zaoris”, “A

Anguera”, “Mãe mulita” e “São Sepé” (a única que foge do formato, pois além de ser em versos, segundo o autor, foi coletada de um velhíssima mestiça, Maria Gendória Alves, moradora na picada que atravessa o rio Camaquã, entre os municípios de Canguçu e Encruzilhada, que sofrivelmente a recitou pelo ano de 1902). As do Centro e do Norte do Brasil agrumam “O Caapora”, “O Curupira”, “O Saci”, “A Uiara”, “O Jurupari”, “O lobisomem” e “A mula sem-cabeça”.

Portanto, na composição das lendas Simões não poupa a demonstração do rompimento do código ético de valores da sociedade gaúcha, nem a denúncia da sedução da ganância responsável pela metamorfose do gaúcho livre e destemido, agora vítima das propriedades privadas – antes campos abertos – que castra a principal característica do gaúcho: a liberdade.

Ademais, temos também discussões filosóficas, algumas com fins didáticos de reconhecimento da origem do ser, do sentido da existência e o transcendentalismo responsável também por uma série de paradoxos gerados pela ambiguidade entre o ser e o ter. Essas observações comprovam novamente Blau na sua função de mito responsável pela “narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social e mesmo a exigências práticas.” (ELIADE, 2002, p. 23)

Quanto ao caso, destacamos o caráter de crítica ao presente decadente daquele modelo original e seu universo em Os casos de Romualdo. Sobre isso diz Regina Zilberman:

A crítica ao presente determinou a criação de Romualdo, exemplo do gaúcho despojado do poder, que conta apenas com sua verve narrativa para assegurar a atenção e o interesse do grupo social. Extensão e contrapartida de Blau, porque conta histórias inacreditáveis, Romualdo é igualmente o desdobramento do processo de desmistificação que o contador de Contos gauchescos já deixava na sua denúncia do presente, fator que impediu a configuração de uma epopeia local (ZILBERMAN, 1992, p. 60).

Há, portanto, nos casos narrados por Romualdo, a desmistificação do tipo presente nos Contos gauchescos e Lendas do Sul, revelando não só a degradação do modelo regional, mas também a dessacralização dos feitos magníficos e grandiosos de pretenso herói. Nos Casos, o foco não é mais no peão e sim no gaúcho e sua experiência como homem da cidade no convívio com membros representantes de outros povos: imigrantes italianos, alemães. Ao mudar o espaço, a representação do homem, antes rural, passa a ter ênfase no conflito com as diferentes culturas e adaptação ao novo meio onde busca inserir-se. As resistências são múltiplas, assim como são várias as reações que esse homem rural irá provocar num ambiente onde muitas vezes não se sente bem-vindo.

Assim como em Lendas do Sul, há em Casos do Romualdo uma nota que visa a esclarecer o leitor sobre o conteúdo do livro. A respeito dele o autor diz:

Leitor!

Entendemo-nos desde já:

É possível (o autor ignora-o), que haja coletânea semelhante, anterior, nacional; se existe, para melhor bem, que supere a atual no conteúdo e na forma!

Em assunto de populário (folk-lore diz-se, elegantemente, nas altas letras...), o registro comporta o pueril do conto, o esborcinado do dizer e a ingenuidade do ouvinte.

O merecimento deste livro subsiste na paciência com que foi ele coligido; falta-lhe relevância artística; é certo; fora porém crueza destroçá-lo por esse pecado.

Destinado à leitura entre golpes de cousas sérias, aos homens graves entediaria: pois – e lhes não advirá mal, por isso –, demo-lo então aos frívolos e, destes, aos mais elevados: as crianças.

Patranhas por patranhas... que se não diga que até nisso falta-nos prata em casa!...

Fica entendido, pois não? (Grifo do autor)

(SIMÕES LOPES, 1988, p. 195)

Embora a figura de Blau Nunes como narrador fique tangenciada nesses livros, a temática que o colocou como protagonista de Contos Gauchescos não perde seu fio condutor. Assim, notamos que Blau apenas toma outras configurações, como se estivesse em processo de mutação e assumisse o papel dessas outras figuras, mas sem perder a essência do campeiro que de alguma forma está ainda presente nessas outras representações. Por isso, entendemos que os aspectos que compõem Os casos de Romualdo muito falem ainda da representação do homem gaúcho, por via da inversão dos valores enfatizados nos livros anteriores.

Simões Lopes nos revela então, como foi dito inicialmente, um trabalho minucioso na construção de sua obra, que apesar de curta é intensa, e procura abranger as transformações observadas num percurso histórico do seu Estado, sempre de forma associada às ocorrências que envolvem também o país, apesar do histórico de isolamento das regiões interioranas.

Percebemos nesta apresentação da obra simoniana o percurso da personagem Blau Nunes, que se movimenta no espaço social, atribulado pelo cenário de guerras que compõe as relações sociais apreendidas no mundo das personagens. Dos limites de seu depoimento pessoal, engendrado de forma meticulosa com a própria história das personagens, o narrador Blau Nunes, “genuíno – crioulo – riograndense”, garante a sobrevivência de seu discurso no registro

detalhado e comprometido de seu interlocutor, que lhe assegura ouvintes para os casos de seu “trotar sobre tantíssimos rumos; das pousadas pelas estâncias; dos fogões a que se aqueceu; dos ranchos em que cantou; dos povoados que atravessou; das cousas que ele compreendia e das que eram-lhe vedadas ao singelo entendimento; do pêlo-a-pêlo com os homens; das erosões da morte e das eclosões da vida”, tudo através de um singelo apelativo: “Patrício, escuta-o”. (Op. Cit., p. 34)