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CAPÍTULO III QUEM FALA NO UNIVERSO DA FICÇÃO

3.1 BLAU NUNES: O NARRADOR E O MITO

“À diferença da palavra autoritária exterior, a palavra persuasiva interior no processo de sua assimilação positiva se entrelaça estreitamente com “a nossa palavra”.” (BAKHTIN, 2003, p. 145).

A composição do narrador é uma das tarefas mais complexas na arquitetura de uma narrativa, pois é ele, aliado aos outros elementos composicionais, como personagem, tempo e espaço, que vai de fato dar vida ao mundo ficcional elaborado pelo autor. É ele efetivamente o eleito para dar unidade e voz à narrativa, pois ele é “essencialmente o homem que fala” e traz, juntamente com o seu, os outros discursos para dentro da narrativa. Podemos dizer, ainda, sobre quem fala no universo ficcional que, segundo Bakhtin, o narrador, com sua palavra, é a figura central através da qual os outros discursos são, não somente transmitidos ou reproduzidos no texto literário, mas representados, escapando “de se tornar um jogo verbal abstrato”. Desse modo, a elaboração de sua fala torna-se complexa porque não se trata apenas de uma representação verbal, mas fundamentalmente artística e literária, e para tanto exige uma abordagem diferente em relação ao que é dito como palavra verbalizada, no sentido do discurso que veicula.

Porém, a pessoa que fala e seu discurso constituem um objeto específico enquanto objeto do discurso: não se pode falar do discurso como se fala dos outros objetos da palavra – os objetos inanimados, os fenômenos, os acontecimentos, etc. O discurso exige procedimentos formais especiais do enunciado e da representação verbal. (BAKHTIN, p. 135)

Os procedimentos formais aos quais se refere Bakhtin devem, portanto considerar que o sujeito que dá voz à narrativa é constituído de um caráter social, situado historicamente e veiculador de uma linguagem também social. Assim, quando fala não fala somente de si, e ao dar voz às personagens temos o que se configura uma difusão social, pois mesmo o que parece particular e individual “aspira uma significação social” na narrativa. Essas vozes juntas compreenderão uma visão

de mundo que é desvendada a partir não dos elementos formais encerrados em si, tais como a escolha de um discurso direto ou de uma descrição das ações e sentimentos das personagens, mas do que deles ressoa, de sua significação evidenciada no discurso que deles emana e que estará sempre presente no texto, mesmo que virtualmente, e que irá revelar uma construção ao lado de outras vozes que possam ou reafirmá-la ou confrontá-la em múltiplas perspectivas. Isso faz do texto literário um conjunto de discursos nem sempre convergentes e nem sempre personificados pelos protagonistas, mas às vezes expressos pelos julgamentos acerca das suas condutas reforçadas pelas imagens de sua linguagem e do que se cria em torno delas. “Mas para que esta linguagem se torne precisamente uma imagem de arte literária, deve-se tornar discurso das bocas que falam, unir-se à imagem do sujeito que fala.” (Op. Cit., p. 137)

Assim sendo, podemos evidenciar vários tipos de narradores compostos por seus criadores, os autores, e entender sua função como elemento composicional dentro da narrativa.

Sendo o narrador uma peça da engrenagem do mundo narrado – mesmo quando não é um personagem da narrativa – ele será necessariamente também uma construção do autor da obra literária. Nesse sentido, o autor será sempre a natureza criadora e o narrador sua criatura. É o primeiro, o gerador dos discursos, a consciência das consciências, por isso pode ou não interferir nas experiências das personagens, enquanto o segundo é o mediador dos discursos criados, uma ponte a aproximar os enunciados das narrativas aos leitores. (LIMA, 2009, p. 19)

Aos narradores são, por conseguinte, conferidos poderes dentro da narrativa, e esses poderes podem ser limitados ou ilimitados, pois dependendo de sua perspectiva os leitores poderão ter acesso livre às personagens e encontrar um universo sem grandes mistérios. Às vezes essas criaturas incorporam uma terceira pessoa “olímpica”, munida de uma visão privilegiada, capaz de adentrar os pensamentos mais íntimos de suas personagens, antecipar suas ações e revelar secretas informações ao leitor. Podem ser também detentoras das informações, mas ou as mascaram ou não as expõem de maneira objetiva e, conscientemente ou não, manipulam os dados veiculados. Outras, porém, nos enredam em seus depoimentos, suas confissões, relatos ou declarações, pois se valem de sua própria memória ou de fragmentos dela e, portanto, delegam ao leitor as conclusões. Aquelas garantem um distanciamento seguro do objeto narrado, o que

aparentemente as preserva da parcialidade e do envolvimento sentimental. Estas, geralmente participantes da trama e habitantes do universo narrado, oferecem sua versão dos fatos, do vivenciado ou testemunhado onde tudo se vê e se sabe sob sua suspeita ou convincente perspectiva. De qualquer forma, o ponto de visão escolhido para a criatura narradora, pela pessoa criadora da obra, implicará na interpretação que se atingirá do narrado, uma vez que será por intermédio desse olhar que teremos acesso ao universo ficcional e, a um ponto de vista particular, portanto revelador dos discursos das personagens.

Podemos dizer numa analogia, portanto, que na diversidade dos discursos do mundo ficcional, o narrador é o maestro que rege a orquestra e com sua batuta determina o ritmo a ser executado, principalmente quando a massa orquestral toma grandes proporções. Os nossos ouvidos, é claro, reterão e se deleitarão com o que acham, vem dos instrumentos, mas na verdade, o que estamos ouvindo, é o que o maestro deseja que ouçamos. Assim, a música pode até ser a mesma, bem como os instrumentos e os músicos, mas a mão de quem conduz a batuta irá fazer a diferença para interpretação.

Em Contos Gauchescos quem inicialmente faz a condução é um narrador culto, que na sequência de um bloco de informações passa a voz da narrativa para um velho vaqueano conhecido e conhecedor do local. Todavia, o narrador culto, criação de Simões Lopes Neto, inclui-se como membro da sociedade que narra. Ele mesmo atesta isso quando apresenta um resumo de suas viagens por toda a extensão do Estado. Declara que participou de várias incursões e por isso pode afirmar que conhece bem as tradições do Rio Grande e seu povo. Além disso, ressalta seu orgulho de ter tido como guia durante suas viagens o tapejara Blau Nunes, para quem em seguida passa a tarefa de narrar as memórias que, segundo ele, eram de “rara nitidez brilhando através de imaginosa e encantadora loquacidade servida e floreada pelo vivo e pitoresco dialeto gauchesco.” (SIMÕES LOPES, 1988, p. 33)

O leitor é colocado, portanto, diante de pelo menos duas instâncias narrativas; uma que se vale da outra para confirmar e atestar as proezas do povo gaúcho, tema das histórias narradas. Assim, temos arquitetado o seguinte procedimento formal: um narrador, criado pelo autor e que, embora também seja denominado gaúcho, não compartilha dos conhecimentos do outro, narrador de segundo grau, resultado já da própria enunciação e, portanto, em função privilegiada

para assumir a voz da narrativa. Logo, o tapejara Blau Nunes ganha autoridade para narrar não somente os contos, mas também na sequencia, as lendas locais, ou por meio de seu próprio testemunho, pois nasceu, viveu e trabalhou nas cercanias, ou ainda porque ouviu contar as histórias e aventuras vividas por amigos e parentes. Portanto, Blau se vale não somente de sua memória individual, como também de uma memória coletiva, representada pelas diversas vozes que aparecem nas aventuras que narra, legitimando-as.

As aventuras geralmente são sobre gaúchos valentes que tiveram que enfrentar e vencer uma série de contratempos e desafios, mas também são de homens rústicos, ou militares ou trabalhadores que viveram nos Pampas, como evidenciamos na segunda parte desse trabalho. Vimos também, que Blau, no ato da enunciação, conta com a idade de oitenta e oito anos, mas tem uma memória privilegiada e narra os detalhes dos episódios de seu passado para o seu interessado interlocutor que, além de tê-lo escutado atentamente, registrou suas histórias no seu material de anotação.

Embora graficamente não encontremos a marca da fala de seu companheiro na narrativa de Blau Nunes, não perdemos de vista a presença do amigo viajante pelas constantes referências que Blau faz a ele através de interpelações, ou ainda, através da pontuação, dados que impulsionam a percepção da atuação do interlocutor de Blau, como podemos observar nas seguintes passagens:

Que foi?...

Ah! Quebrou-se a ponta do lápis?

Amanhã vancê escreve o resto: olhe que dá para encher um par de tarcas!... (SIMÕES LOPES, 1988, ATIGOS DE FÉ DO GAÚCHO, p. 124)

- Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda. [...] Ah!... esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. (TREZENTAS ONÇAS, p. 35)

Escuite.

Até hoje me intriga, isto: como uma morena, tão linda, entregou-se a um negro, tão feio? (O NEGRO BONIFÁCIO, p. 45)

Está vendo aquele umbu, lá embaixo, à direita do coxilhão? (NO MANANTIAL, p. 47)

Ala fresca!... que demorou a tal fritada! Vancê reparou?

Vancê sabe que eu tive e me servi muito tempo dum buçalete e cabresto feitos de cabelo de mulher?... Verdade que fui inocente no caso. (OS CABELOS DA CHINA, p. 77)

Vancê pare um bocadinho; componha seus arreios que a cincha está muito pra virilha. E vá pitando um cigarro enquanto eu dou dois dedos de prosa àquele andante... que me parece que estou conhecendo... e conheço mesmo!... É o índio Reduzo, que foi pastoreiro dos Costas, na estância do Ibicuí [...] Vancê me desculpe a demora: mas quando se encontra um conhecido do outro tempo – e então do tope desse! A gente até sente uma frescura na alma!... Coitado, está meio acanhado... mas, bonzão, ainda! (MELEANCIA-COCO VERDE, p. 87).

Após apresentar Blau Nunes, o primeiro narrador, que introduz Os Contos

Gauchescos, delega a Blau o papel de narrador de segunda instância dentro da

narrativa e toda a responsabilidade pelo que será narrado:

Patrício, apresento-te Blau, o vaqueano. [...]

Querido digno velho! Saudoso Blau!

Patrício, escuta-o. (Op. Cit., p.34)

Por meio dessa apresentação, percebemos que o primeiro narrador, companheiro de viagem de Blau, encontra-se em uma época posterior à viagem, divulgando os episódios que ouviu de Blau e que havia registrado em seu material de anotações, saindo do nível oral para o escrito e apresentando-as ao enunciatário (leitor), a quem se refere como patrício. Blau Nunes não está mais presente, mas é revivido por meio dessas anotações, assim como os episódios que narrou são recontados.

Essa técnica narrativa, minuciosamente elaborada por Simões Lopes Neto, permite nos reportarmos a diferentes momentos espaciais e temporais na narrativa. Primeiro ao do período da viagem aos locais que os viajantes visitaram quando Blau serviu de guia para seu jovem amigo; segundo, às diferentes épocas e lugares aos quais se reporta Blau para narrar os episódios presenciados; e, terceiro, ao momento da divulgação desses episódios por meio da publicação das anotações coletadas pelo primeiro narrador, durante a viagem com seu guia e amigo Blau, mesclando, assim, os três momentos, configurando o que Bakhtin denomina cronotopo.

Quando o narrador da introdução dos contos passa a voz para o narrador Blau Nunes, ele inverte os papéis, e de enunciador passa a enunciatário dos casos relembrados por Blau, fazendo também o papel de ouvinte, como ele mesmo havia assinalado na introdução, “escuta-o”. Assim, os dois narradores não são confundidos, cada um assume seu momento na narrativa.

Outro recurso que auxilia na identificação dos narradores é a linguagem regional. Embora ambos sejam gaúchos, o narrador que introduz Os Contos é culto e citadino, já Blau, tem a fala marcada pelo dialeto do gaúcho do campo, o que lhe confere naturalidade às palavras ao utilizar sua linguagem local. Observe-se a diferença, tanto do vocabulário, quanto da cadência da fala do narrador apresentador, em relação à fala de Blau Nunes, citada anteriormente:

− Eu tenho cruzado o nosso Estado em caprichoso ziguezague. Já senti a ardentia das areias desoladas do litoral; já me recreei nas encantadoras ilhas da lagoa Mirim; fatiguei-me na extensão da coxilha de Santana; molhei as mãos no soberbo Uruguai; tive o estremecimento do medo nas ásperas penedias do Caverá; já colhi malmequeres nas planícies do Saicã, oscilei sobre as águas grandes do Ibicuí; palmilhei os quatro ângulos da derrocada fortaleza de Santa Tecla, pousei em São Gabriel, a forja rebrilhante que tantas espadas valorosas temperou, e, arrastado no turbilhão das máquinas possantes, corri pelas paragens magníficas de Tupaceretã, o nome doce, que no lábio ingênuo dos caboclos quer dizer os campos onde repousou a mãe de Deus... (SIMÕES LOPES, p.33)

Aqui, além de termos uma sintaxe comum à variante culta, observamos que o autor não exagerou no uso da pontuação como faz na fala de Blau como marca do ritmo do dialeto gauchesco. Lígia Chiappini ao comentar o uso que Simões Lopes Neto faz da vírgula, ponto e vírgula, exclamações e principalmente das reticências esclarece que:

A fala de Blau é a fala do excesso, a bela e primitiva fala que faz saltar à superfície do enunciado, por todos os recursos ao alcance do autor, tudo aquilo que a lógica da linguagem recalca – o grito, o riso, o próprio silêncio – e que a poesia tenta resgatar, suprindo, assim, a impossibilidade de ouvir os Blaus de antigamente [...] (CHIAPPINI, 1988, p. 16)

Assim, é frequente na representação da fala de Blau Nunes, à diferença da fala de seu apresentador, o uso dessa pontuação que lhe confere a marca de narrador popular com seu ponto de vista simples de homem do campo sobre as coisas de seu Estado.

Notamos, ainda, por diversas vezes, que nas suas conversas com o companheiro de viagem, Blau se certifica de que está sendo compreendido e, muitas vezes, refaz suas frases ou mesmo explica com mais detalhes um termo ou uma expressão para garantir a compreensão do que está narrando e assim ajustar a comunicação.

- Foi depois da batalha de Ituzaingo, no passo do Rosário, pra la´de São Gabriel, do outro lado do banhado de Inhatium. Vancê não sabe o que é inhatium?

É mosquito: bem posto nome!

Banhado de Inhatium... Virge’Nossa Senhora!... mosquito, aí, fumacea no ar! (O ANJO DA VITÓTIA, p. 95)

— Vancê não sabe o que é um ligar? Não é só, não sr., o couro de terneirote pra fazer carona; é também uma tira de guasca, chata, assim duma meia braça, com um furo dum lado e uma meia ponta do outro. Conforme boleava um animal e ele caia, o campeiro chegava-se e passava- lhe o ligar em cima do garrão e apertava, acochava, à moda velha; hom!... era mesmo como botar uma liga de mulher, com perdão da comparação! Vancê compr’ende, não! (CORRER EGUADA, p. 68)

Nessas diversas passagens, notamos a diferença de origem de ambos pela variação linguística captada no ajustamento do registro utilizado por Blau. Esses elementos juntos – a pontuação, o vocabulário e inclusive a ortografia – ressaltam os recursos e estratégias do autor para destacar não somente a distinção da época e espaço aos quais ambos pertencem, como também os grupos sociais aí representados.

É por meio, portanto, desse narrador Blau, criação do narrador culto, que as histórias presentes nos Contos Gauchescos ganham legitimidade e passamos a ter uma visão privilegiada da cultura dos Pampas. Além de sua fala repleta da coloquialidade gaúcha, temos acesso aos hábitos, gostos, valores do povo representado e as leis que os regem, como já observamos anteriormente.

Nesse sentido, é relevante destacar que Simões Lopes Neto, como vários críticos de sua obra ressaltam, conseguiu ultrapassar as barreiras da representação de um regionalismo sem comprometer sua verossimilhança, pois a cultura e linguagem às quais temos acesso não derivam de um olhar exterior, mas sim de um representante original delas. O pitoresco e a hipérbole, que geralmente marcam as obras que buscaram representar a vida rural, não comprometem a obra simoniana, uma vez que as identificações presentes na voz narrativa estão na medida certa.

A crítica enfatiza, inclusive, que o autor conseguiu resolver o problema da mimese, para que ela não parecesse apenas mais uma caricatura do homem do campo e um arremedo de sua linguagem local. Isso é possível porque João Simões Lopes Neto utiliza a técnica do diálogo evocativo, ou seja, o encontro de duas gerações permite ao Blau velho reconstituir o Blau moço através do ato de recontar suas memórias e oferecer sua versão de determinados fatos, como foi possível conferir no capítulo que versa sobre o universo simoniano. Dessa forma, Simões Lopes conseguiu resguardar seu narrador tanto da onisciência e impessoalidade quanto do contraste ruidoso com a linguagem de seu mediador, ao lançar mão de um narrador em primeira pessoa com um elevado grau de participação e envolvimento na situação narrada revelando sua completa inserção na cultura do universo narrado.

Na outra esfera da narração, ocupada pelo deslumbrado narrador visitante, temos reforçada a importância da narrativa de Blau Nunes, como forma de reviver do mito do gaúcho, uma vez que esse narrador resgata através de suas anotações e, mais adiante, da divulgação delas, as tradições de um Rio Grande, agora distante de sua realidade, como ele mesmo afirma na introdução dos Contos Gauchescos.

− Vi a colméia e o curral; vi o pomar e o rebanho, vi a seara e as manufaturas; vi a serra, os rios, a campina e as cidades; e dos rostos e das auroras, de pássaros e de crianças, dos sulcos do arado, das águas e de tudo, estes olhos, pobres olhos condenados à morte, ao desaparecimento, guardarão na retina até o último milésimo da luz, a impressão da visão sublimada e consoladora: e o coração, quando faltar ao ritmo, arfará num último esto para que a raça que se está formando, aquilate, ame e glorifique os lugares e os homens dos nossos tempos heróicos, pela integração da Pátria comum, agora abençoada na paz. — (SIMÕES LOPES, p. 33)

Blau Nunes, como narrador, reforça esse discurso do narrador culto em diversas passagens, tal como no conto “Correr eguada”, e assim justifica a necessidade de narrar sua história afirmando:

Si vancê fosse daquele tempo, eu calava-me, porque não lhe contaria novidade, mas vancê é um guri, perto de mim, que podia ser seu avô... Pois escuite. (Op. Cit., p.67)

Desse modo, percebemos no discurso de Blau a preocupação em transmitir a cultura local para as outras gerações, como meio de garantir que ela não morra, atitude endossada pelo narrador/interlocutor ao reverenciar as palavras de Blau

Nunes e lhe confiar integralmente a voz narrativa. Avalio, portanto, que o autor de

Contos gauchescos toma seu narrador Blau Nunes como principal representante da

cultura narrada e deposita nele todo o peso do mito do gaúcho, unindo na voz que narra, a imagem do vaqueano e sua linguagem, para que da unificação de ambas o narrador adquira autoridade para falar de seu universo social.

Sobre o mito do gaúcho, Chaves ressalta que o conceito é derivado de pelo menos três momentos históricos, - já observados nas referências aos relatos de guerra presentes nos contos – mas que na verdade há uma confluência de toda a história do Rio Grande do Sul para reafirmação desse mito, que nem sempre teve como positivas suas características, pois se encontravam ligadas ao banditismo e violência e às atividades associadas com as charqueadas, além da postura de moral questionável e nada idealista do gaúcho, longe de uma linhagem nobre, como também destaca Augusto Meyer no seu estudo Gaúcho: história de uma palavra. (PROSA DOS PAGOS, 1979).

Nessa conjuntura, o mito do gaúcho alimentado pela literatura desde Alcides Maya, Apolinário Porto Alegre, Caldre e Fião, José de Alencar, entre outros, enfatiza um tipo idealizado, austero, guerreiro, bravo, viril, honesto e herói, sendo reforçado pelo fato histórico por sua divulgação das relações de conflito e dominação nas quais o gaúcho assume postura de resistência, lealdade, honra e ética que compactua com o ideal oligárquico dominante vigente.

Pode-se observar que essa premissa também transita pela obra simoniana. No levantamento feito a respeito das características atribuídas às personagens que povoam o universo relatado por Blau, identificamos todas essas características que revelam a adesão de Simões Lopes Neto a certos aspectos do mito, mas