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CAPÍTULO III QUEM FALA NO UNIVERSO DA FICÇÃO

3.2 A SALAMANCA DO JARAU

“A Salamanca do Jarau”8

conta a lenda da princesa moura e a fortuna que guardava no Cerro do Jarau. Augusto Meyer, em seu estudo sobre folclore gaúcho, ressalta que Simões Lopes Neto inspirou-se em Daniel Granada para compor “A Salamanca do Jarau”, conduzido primeiramente pela leitura do tema utilizado pelo Padre Teschauer na “Reseña Histórico-Descriptiva de Antiguas y Modernas Superticiones del Rio de la Plata”. Segundo Meyer, foi Daniel Granada, pois, quem forneceu a Simões Lopes todos os elementos de que se valeu o autor para compor “A Salamanca do Jarau”, através dos capítulos de sua obra intitulados “Salamancas”, “Cerros Encantados” e “Cerros Bravos”, além de outras informações folclóricas. (MEYER, s/d, p.116).

Simões Lopes Neto, todavia, conferiu aos elementos originais da lenda sugestões que redimensionaram o sentido histórico e lendário de A Salamanca do

Jarau. Sendo assim, o escritor na sua adaptação de outras versões não perdeu o

vínculo com os temas originais, mas atribuiu um toque regional com a utilização das superstições locais, a linguagem e costumes gaúchos. Desta forma, no seu texto “A Salamanca do Jarau” encontramos as referências às diversas variações da lenda tais como: A moura encantada; A rosa dos tesouros escondidos; A Serpente ou Lagartixa Mágica; O Carbúnculo; A Boicininga; A Teiniaguá; A Anhangá-pitã; A

8 Algumas partes desse texto sobre “A salamanca do jarau” são uma adaptação do texto presente na

Furna; e O Sacristão, que derivam das mais diversas versões do tema. Alguns desses elementos são originais da lenda, enquanto outros são criação exclusiva do autor de Lendas do Sul.

“A Salamanca do Jarau” é a segunda lenda do livro Lendas do Sul. Nela se conta um fato ocorrido com Blau Nunes, gaúcho campeiro “contador de causos”, antigo furriel da Revolução Farroupilha, narrador revivido de Contos Gauchescos. O que diferencia Lendas do Sul de Contos Gauchescos, todavia, é a configuração do narrador e a introdução do sobrenatural na história narrada. A presença do narrador que se identifica com o peão da estância, representado ainda pelo velho Blau Nunes, desta vez tem a voz mediada por um narrador em terceira pessoa, embora em algumas partes da narrativa Blau assuma o papel de narrador em primeira pessoa.

Aqui, a personagem Blau vive um momento de crise e pouca sorte, pois, sendo pobre, ainda perdeu a força, a coragem e o poder de cultivar. A utilização do sobrenatural na história fica por conta do próprio Blau Nunes que deve seu momento de crise ao encontro que teve na hora de agouro com o Caipora, ente mágico pertencente às matas. Chamado à aventura, o velho peão sai à procura do “boi barroso” e na sua viagem de busca, encontra a Salamanca (caverna) do Jarau, onde fica sabendo, por um vulto branco, da história de um sacristão encantado por uma lagartixa mágica, a teiniaguá, que o seduziu, metamorfoseada numa princesa lindíssima, e que o mantém cativo há duzentos anos. Para libertar o sacristão de seu encantamento, Blau entra então nesse espaço mágico, onde passa por sete provas tendo que enfrentar: as espadas, os jaguanés e pumas, ossamentas de criaturas, as línguas de fogo, a boicininga, as lindas mulheres, os anões cabeçudos. Chega então à presença da encantada que lhe fala oferecendo prêmios, representados pela sorte, poder de sedução, sabedoria, coragem, autoridade, riqueza e sensibilidade artística, mas o campeiro se dá conta de que ele quer muito mais. E “tendo oferta de tudo não lograra nada por querer tudo”, Blau retorna à presença do sacristão que lhe oferta uma onça de ouro, moeda mágica que quanto mais é utilizada por Blau para pagar suas compras, mais se multiplica, contudo, quem é pago por ele perde em seguida a mesma quantia em algum novo negócio. E assim, todos começam a olhar desconfiados para ele que vai, pouco a pouco, enriquecendo, mas perdendo os amigos – ficando muito rico, mas infeliz. Desatinado, Blau volta para a entrada da caverna, devolve a moeda e retorna para casa de posse de uma grande descoberta:

a importância da amizade e da paz de viver. Preferiu "a pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa o dono dos outros donos de onça!...” (SIMÕES LOPES, 1988, p. 162).

Acontece, que quando o sacristão é saudado por Blau pela terceira vez e o nome do “Senhor” é pronunciado, o encantamento se quebra. O Jarau fica transparente e Blau Nunes vê as labaredas devorando “os brigões, os jaguares, os esqueletos, os anões, as lindas moças, a boicininga”. Foi então que finalmente a teiniaguá “velha carquincha” transformou-se em moça formosa e “o Sacristão, por sua vez, num guasca desempenado"... (Op. Cit., p. 163). E depois de quebrado o encantamento, “aquele par, juntado e tangido pelo Destino, foi descendo a pendente do coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde [...] Blau Nunes deu de rédea e despacito foi baixando a encosta do cerro, com o coração aliviado... era pobre como dantes, porém que comeria em paz o seu churrasco... e em paz seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz sua vida” (Op. Cit., p. 163).

Note-se o último parágrafo do texto: “Anhangá-Pitã, também, desde aí, nunca mais foi visto. Dizem que desgostoso, ainda escondido, por não haver tomado bem tenência que a teiniaguá era mulher...” (Op. Cit., p. 164).

Na introdução da lenda da Salamanca, o narrador já manifesta o aspecto sobrenatural da história com a expressão “era um dia...”, que marca o que será narrado como predominantemente maravilhoso, preparando o leitor para os elementos fantásticos que diferentemente dos contos gauchescos, terão predominância no contexto da lenda.

No todo da obra simoniana, todavia, essa lenda pode adquirir a significação de um mito de formação de uma nova mentalidade, pois ela resume todas as angústias de Blau Nunes, destacadas ao longo dos contos, tornando-se o marco de transição da cultura gaúcha representada por Blau. Essa transição, todavia, não se dá sem conflitos e impasses, é o que se pode inferir dos dilemas vivenciados pelo protagonista da lenda, quando se vê exposto às provações e tentações da salamanca.

Simões Lopes, ao propor sua versão para a lenda da Salamanca, fornece, então, uma série de analogias sobre o que já vinha sendo apresentado em Contos

Gauchescos no tocante às transformações sociais decorrentes da ganância que se

salamanca, o autor ousa questionar os novos valores que são impostos pelo progresso e traz à baila, no discurso do guasca, as consequências que essa imposição representa para a sociedade gaúcha.

Uma análise detida de “A Salamanca do Jarau”, por conseguinte, pode nos fornecer subsídios que evidenciam que apesar de João Simões Lopes Neto inserir no desenvolvimento da lenda outros discursos além do discurso de seu protagonista, a voz de Blau Nunes e sua visão do universo gaúcho continuam sendo o eixo central, pois tudo gira em torno dele, o enredo, as aventuras, o desencadear da ação, bem como o seu desenlace. É necessária sua presença para o início e desfecho da lenda, mesmo que em certos momentos outras vozes alternem-se para a composição, como Chaves (1982) enfatiza na divisão que faz da narrativa da salamanca.

A primeira e a quarta partes pertencem ao narrador, cujo discurso em terceira pessoa apresenta a aventura vivida por Blau; a segunda e a terceira partes constituem uma suspensão na sequencia episódica desta aventura, abrindo espaço para dois outros discursos nos quais se conta a lenda da teiniaguá – o discurso do próprio Blau (que apenas reproduz aquilo que escutara de sua avó) e o discurso do guardião (que esclarece sobre a origem do cerro encantado). (CHAVES, 1982, p.79)

Assim, embora nessa narrativa a utilização do sobrenatural mude a perspectiva factual e histórica presentes nos Contos Gauchescos, a lenda da Salamanca dá continuidade à crise demonstrada por Blau Nunes, como foi possível evidenciar nas descrições das personagens. Destarte, a estratégia narrativa encontrada em “A salamanda do Jarau” não rompe com a unidade entre a imagem e a voz que narra, muito pelo contrário, pois Simões Lopes cerca a sua obra de todos os discursos: o histórico, na comprovação dos casos narrados; o depoimento pessoal, fundamentado no testemunho do narrador/personagem; e o discurso derivado de uma terceira pessoa localizado na lenda d’A salamanca do jarau, cujo principal objetivo é dá suporte à subjetividade do discurso em primeira pessoa veiculado por Blau Nunes. Todos esses elementos, portanto, confirmam o discurso de Blau e a sua visão da decadência do mito do gaúcho já apontada nos contos, mas que de maneira contundente culmina na lenda da Salamanca simbolizada no seu momento de crise.

A personagem Blau Nunes já demonstra nos Contos Gauchescos uma reflexão sobre a perda das qualidades essenciais do gaúcho. Não obstante, a lenda

torna-se o ponto estratégico do autor, para inserir Blau Nunes novamente nas aventuras e resgatar as características que compunham o mito do gaúcho. Seja em forma de estilização ou interpretação pessoal, como observou Augusto Meyer sobre os acréscimos de Simões Lopes às lendas, seja apropriação, invenção ou recriação, como defende Chaves, Blau Nunes em “A salamanca do jarau” retoma o motivo do gaúcho simples e exemplar encontrado nos contos e lhe acrescenta as características do mito: a coragem, a honra, a honestidade, a bondade e liberdade. A narrativa “A salamanca do jarau” não só coloca esses elementos juntos, ou seja, o humano e o mítico, como também os confronta, numa luta de resistência, onde apenas um restará: o mito ou o gaúcho pobre, descrito no início da lenda.

O discurso de Blau Nunes também já revelava desde os textos de Contos

Gauchescos, a preocupação com as rupturas e consequente apagamento das

tradições que viveu. É óbvio que todo o depoimento pessoal do narrador enfatiza a adesão ao mito, porém também constata seu esvaziamento de sentido para as gerações que se formavam. Na lenda da salamanca é possível, então, mais uma vez reviver os elementos do mito, rememorá-los e restaurá-los.

O peso do mito é sofrível para Blau e em “A salamanca do Jarau” seu dilema encontra-se agravado, pois nem mesmo ele consegue resistir às seduções do novo que se insurge e que oferece soluções tão imediatas para sua crise como já havia denunciado em “o contrabandista” afirmando que “entrou nos homens a sedução de ganhar barato [...] quanta gauchagem leviana aparecia, encostava-se”, (SIMÕES LOPES, p.101). É necessário, portanto, restituir o mito para que mais uma vez lhe sejam feitas as honras e assegurado o devido lugar na história: a lenda. Assim, a utilização do discurso da lenda não se dá gratuitamente, como compilação, mas na resignificação do seu conteúdo, dando sentido outro, mas coerente com o original.

A luta travada na salamanca é de Blau com seus próprios fantasmas. Sua resistência à metamorfose revela o medo e insegurança com que visualiza o amanhã, e novamente é a prudência que o domina. A lógica é a seguinte: quanto mais ele desliga-se de suas origens mais se afasta da natureza de seu caráter ético. Quanto mais próximo dos interesses individuais e particulares que compõem o processo civilizatório, mais domesticado ele fica e distancia-se de suas qualidades originais de homem livre.

A explicação apontada por Blau em Contos Gauchescos: “Cuê-pucha!... é bicho mau o homem”, era sua maior preocupação, isto é, admitir que o homem

gaúcho houvesse se rendido às seduções do progresso e à ganância causada por ele. O que destaco aqui, portanto, é que o mito é rompido, justamente porque Blau Nunes também se encontra fragilizado e distante do arquétipo usualmente proposto do homem rural gaúcho. Já no início da lenda temos essa comprovação. Blau estava em crise, pois havia perdido as características do mito.

Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora: mas, quando cruzava o facão com qualquer paisano, o ferro de sua mão ia mermando e o do contrário o lanhava...

Domador distorcido e parador, que, por só pabulagem gostava de paletear, ainda era domador, agora: mas quando geneteava mais folheiro, às vezes, num redepente, era volteado...

De mão feliz para plantar que lhe não chocava semente nem muda de raiz se perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia...; e o arvoredo do seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava frutas, era mixe e era azeda... (Op. Cit., p.141)

Sua essência ainda era mantida, mas agora enfrentava a dura realidade da privação, uma vez que ele era apenas “um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais” (Op. Cit., 140). Este novo contexto o obrigaria a lançar-se no mundo sedutor do lucro fácil como ele mesmo revela quando encontra a representante dos tesouros do mundo: “Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo que eu não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim, superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!... (Op. Cit., p. 158). Sua missão é a de resistir à sedução dessas ofertas fáceis e que significariam o fim de sua essência que ainda conseguia preservar, apesar da crise que vivia.

Na sua difícil tarefa de ser homem comum, Blau encontra, portanto, a oportunidade de novamente fazer parte do mito. No seu encontro com o Sacristão, este identifica logo em Blau o Messias que chegava para cumprir a profecia de sua libertação por ter-se deixado seduzir pela teiniaguá e renegado sua fé. Muitos haviam tentado salvá-lo, mas somente motivados pela “ânsia da cobiça e dos vícios”, Blau foi o único que se mostrou de “alma forte e coração sereno” combinação exigida para vencer as provas da furna encantada. Mesmo em sua condição, de guasca pobre, Blau foi reconhecido como esse messias, pois além de ser o único que se aproximou sem interesses, foi também o único a saudar o sacristão como filho de Deus, critério para que o perdão fosse concedido ao cativo.

Há críticos que defendem que a tarefa de messias atribuída a Blau Nunes reforça o mito do gaúcho, porém se atentarmos para os dilemas e conflitos vislumbrados na unidade dos contos gauchescos e nas características das personagens apresentadas pelo narrador Blau, percebemos uma tendência a desconstruir o mito, pois ao mesmo tempo em que o narrador revela suas qualidades míticas, as questiona na apresentação de tipos que fogem ao protótipo.

Essas questões nos levam a uma mirada na narrativa simoniana na perspectiva ressaltada por Mikhail Bakhtin sobre as concepções da diversidade do mundo representado em “uma série de provações das personagens centrais, de provações de fidelidade, de bravura, de coragem, de virtude, de nobreza, de santidade, etc.” (Op. Cit., p. 207) Sendo exatamente isso que encontramos na “Salamanca do Jarau”, isto é, o campeiro Blau inserido em uma série de aventuras, à primeira vista poderíamos ser conduzidos a uma falsa pista sobre o significado da lenda inserida na narrativa, pois para a comprovação do ciclo mítico, o mundo onde está alocada a personagem central “é dado sempre como acabado e inalterável”, assim, todas as qualidades da personagem desde o início da narrativa são apenas verificadas e experimentadas ao longo dela. Assim sendo, com a personagem Blau Nunes esse elemento estático não existe nem nos contos nem na lenda, pois desde sua primeira transformação, ocorrida após a morte de seu padrinho, relatada em “O anjo da vitória”, a sua identidade foi sendo construída de forma que “a vida interior da personagem, seu habitus, torna-se elemento substancial da sua imagem” e a sua natureza aventuresca funde-se com a sua problematicidade e psicologia. (BAHKTIN, p. 209). Portanto, ao longo do desenvolvimento da lenda notamos o rompimento com “o ideal pronto e dogmaticamente aceito”, onde não há movimento ou processo de formação, uma vez que para Blau Nunes, as provações pelas quais passa na furna encantada tornam-se uma experiência transformadora, ou seja, o inverso do que ocorre com o padrão da personagem mítica.

Dessa forma, embora adentremos em um tempo lendário, como o que ocorre desde o início da narrativa de “A Salamanca do Jarau”, é a vida biográfica de Blau Nunes que entra no curso dos eventos narrados, tendo seu percurso inicial modificado pelas condições mutáveis da vida e não pelo condicionamento do universo lendário. Assim, tanto o espaço, quanto o tempo onde essas aventuras ocorrem são transformados, pois embora haja o resgate de uma ordem ao final da

lenda, o foco é na metamorfose, na transformação e recomeço, em que as novas gerações vão ocupando seus lugares.

Segundo Bakhtin, “As gerações inserem um elemento absolutamente novo e sumamente essencial no mundo representado, introduzem os contatos de vidas de tempos diferentes”, o que aplicado ao conjunto da obra simoniana reafirma sua duração histórica e não lendária. No bojo, estes elementos utilizados por Simões Lopes Neto em “A salamanca do jarau” reafirmam a continuidade ao percurso de Blau e colaboram para o todo vital da personagem. Dessa forma, a dispersividade presente nas narrativas de viagens e exotismo e a idealização abstrata, comuns às narrativas de provação, são superados e “Graças ao vínculo traçado com o tempo histórico, com a época, viabiliza-se uma representação realista mais profunda da realidade.” (BAKHTIN, p. 215)

Portanto, acredito, que a trajetória das personagens narradas por Blau em

Contos Gauchescos e agora na lenda da Salamanca perdem o teor de natureza

aventuresca superficial e ganha uma essencialidade definidora de vida, confirmando o que observa Bakhtin sobre as narrativas biográficas em seu estado ainda embrionário:

Aqui, a heroificação desaparece quase que inteiramente (mantém-se apenas parcialmente e em forma modificada nas hagiografias). Aqui a personagem não é um ponto em movimento do romance de viagens e desprovido de características essenciais. Em vez da sucessão abstrata da heroificação do romance de provação, aqui o herói se caracteriza por traços tanto positivos quanto negativos (ele não se experimenta, mas visa a resultados reais). (BAKHTIN, p. 215)

Ora, não foi exatamente isso que nos revelou o narrador Blau Nunes ao longo do seu relato de Os Contos Gauchescos? Assim, encontramos a possível resposta para a descrição de tipos tão opostos representados pelas personagens dos contos narrados por Blau, revelando não apenas virtudes, mas também imperfeições, assemelhando-as ao homem comum e escapando de uma natureza pronta e inalterável em que “os acontecimentos não formam o homem mas seu destino.” (BAKHTIN, p. 215)

O estudo de Nortrop Frye (1973) também pode contribuir para a verificação do distanciamento da caracterização da personagem Blau Nunes em “A salamanca do jarau” como uma figura mítica. Atentando para o que Frye destaca em seu texto O Mythos do Verão, notamos que quando um mito é abordado, em caráter geral, a

classe social ou intelectual dominante tende a ser projetada nos ideais do herói, no sentido de que virtuosos heróis e belas heroínas representam os ideais dessa classe, enquanto os vilões representam ameaça à supremacia dos heróis.

Haveria ainda nesta composição uma espécie de nostalgia presente na busca de algum tipo de idade de ouro imaginativa no tempo e espaço. Logicamente que muito dessa tradição também pode ser associada ao texto de Simões Lopes Neto, porém se considerarmos que Simões Lopes Neto selecionou para representar o herói da narrativa um campeiro, guasca e vaqueano, já é possível evidenciar algumas rupturas com o elemento tipicamente mítico. Embora um narrador anônimo e culto, introduza o velho gaúcho como protagonista, é Blau quem está autorizado a narrar as histórias ocorridas nos Pampas. Além disso, nenhum dos narradores presentes na lenda representa a classe social dominante, isto é, os estancieiros. Sendo assim, ao dar voz ao gaúcho pobre, Simões Lopes Neto, rompe com a função ideológica da narrativa, pois Blau não representa a classe do poder, nos levando a concluir que os ideais representados por ele subvertem àqueles tradicionais esperados do herói.

Assim, embora exista uma aparente harmonia entre os peões e os proprietários de terra, e o conflito na narrativa não surja em decorrência da desigualdade social, como verificamos em Contos Gauchescos, Blau não se mostra