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A liberdade da coisa em si segundo a filosofia transcendental de Kant

CAPÍTULO III- A COISA EM SI SEGUNDO A METAFÍSICA DE

3.1 A coisa em si é ausente de necessidade

3.1.1 A liberdade da coisa em si segundo a filosofia transcendental de Kant

Não há como pensar a possibilidade de uma coisa em si livre246, sem, primeiramente,

levantarmos duas teses antagônicas presentes na História da metafísica tradicional. A primeira tese é defendida pelos filósofos de tradição dogmática, estes afirmam que “a causalidade segundo as leis da natureza não é a única de onde podem ser derivados os fenômenos do mundo. Há ainda uma causalidade pela liberdade que é necessário admitir para os

explicar”247

. Em outras palavras, nem tudo o que acontece no mundo seria resultado das leis inflexíveis da natureza, pois, se assim fosse, nunca seria encontrada uma causa suficiente para toda a série de eventos temporais no mundo fenomênico.

243

KANT, I. Critica da razão pura, 2013, A 536/ B 564.

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Se, por um lado, essa citação expressa de modo especulativo que a ideia de liberdade, além de poder ser real, é compatível com o determinismo do mundo fenomênico. Por outro, ela é essencial para Kant abrir as portas do mundo inteligível (garantindo-se assim a existência de Deus e a imortalidade da alma) e fazer a razão alcançar seu fim último, qual seja, estabelecer leis à vontade por meio da obrigação moral. É na doutrina da ação moral kantiana que se encontra um conceito muito peculiar na filosofia de Schopenhauer, a saber, o de vontade autônoma. Contudo, diferente do nosso filósofo, essa vontade, para Kant, quando age de acordo com a razão, conduz o homem ao bem e à felicidade, porque ele é livre. Vale ressaltar que ser livre não significaria escolher fazer ou não fazer alguma coisa, exprimiria o fato de ser capaz de declinar-se de todos os estímulos sensíveis, seja eles internos, seja externos, através do uso da razão. Em outras palavras, conforme Kant, ser livre é ser racional, é ter a capacidade de submeter-se à razão e agir pelo dever, não pelo prazer. Com relação ao conceito de liberdade, Schopenhauer destaca que Kant “deu um passo grande e desbravador (...) na medida em que expôs a inegável significação moral da ação humana como completamente diferente, e não dependente, das leis do fenômeno, nem explicável segundo este, mas como algo que toca imediatamente a coisa-em-si (sic)”. Schopenhauer, A. Critica da filosofia kantiana, 2005, p. 531.

245

SCHOPENHAUER, A. Crítica da filosofia kantiana, 2005, p.529. Grifo do autor.

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Ainda que a filosofia de Schopenhauer “brote” da de Kant, ele não acata a tese de que a coisa em si seja a causa do fenômeno, mas este funciona como sua exteriorização ou manifestação.

Já os filósofos empiristas, por sua vez, defendem a seguinte antítese: “Não há liberdade,

mas tudo no mundo acontece unicamente em virtude das leis da natureza”248, ou seja, toda

causa é somente o efeito de uma causa precedente, e assim, segue-se infinitamente no tempo, sem a menor possibilidade de um primeiro começo para toda a série temporal. O que realmente existe para esses pensadores é, segundo Kant, “sempre apenas um começo

subalterno”249

, uma vez que admitir uma causalidade pela liberdade seria o mesmo que contrariar o que ensina a própria lei de causalidade sobre os eventos temporais.

Contudo, aderir à tese de que todas as coisas e seres estão subordinados à causalidade natural seria o mesmo que aceitar que, no mundo, não há liberdade (causa livre), isto é, que não existiria um fundamento que explicasse a existência desse mundo, visto que ele, em sua totalidade, está absolutamente determinado por leis da natureza, e que os indivíduos, por conseguinte, padecem de autonomia. Sendo assim, é preciso ter atenção quanto à escolha de uma determinada concepção filosófica, pois há a possibilidade “de se entregar a um desespero cético ou de firmar-se numa obstinação dogmática, persistindo teimosamente em

determinadas afirmações, sem dar ouvidos nem prestar justiça aos argumentos contrários”250

, observa Kant.

Além disso, a concepção de uma causalidade que seja livre acarreta um grande problema ao pensamento crítico, a saber, ela é literalmente inconciliável com a lei natural, a qual é universal e necessária; nada escapa à sua abrangência. Ora, existe aqui uma contradição. Ademais, não há nenhuma solução ao problema da liberdade e da necessidade na ordem do mundo, uma vez que ambas, tese e antítese, parecem, por um lado, certas, mas, por outro, possuem limitações, não podendo assim, nenhuma delas, ser negada ou afirmada veementemente. Desse modo, qual seria a solução para o problema apresentado acima? Em outros termos, como poderíamos pensar a possibilidade de um começo absoluto para uma série de eventos causais no mundo sem contradição?

Como tais concepções filosóficas dizem respeito à possibilidade de haver ou não haver uma causalidade por liberdade, ou seja, uma causalidade autônoma às leis que regem a natureza, a solução seria talvez, de acordo com o filósofo de Königsberg, não tomar nenhuma espécie de causalidade em detrimento de outra. Pelo contrário, a solução seria, porventura, aceitar a existência das duas espécies de causalidades no mundo, tanto a causa natural, que tem sua origem nas leis da natureza, quanto a causa livre, a qual tem origem a partir de si

248

KANT, I. Crítica da razão pura, 2013, A 445/ B 473.

249

KANT, op. Cit., A 444 - A 446/ B 472 - B 474.

mesma, mediante uma autoprodução. Apenas desse modo poderia ser pensada “uma espontaneidade absoluta das causas, espontaneidade capaz de dar início por si a uma série de

fenômenos que se desenrola segundo as leis da natureza”251

. Para tanto, o que realmente está em questão, segundo Kant, é a possibilidade da existência de uma causalidade transcendental que seja responsável por toda uma série temporal de eventos fenomênicos. Acerca da liberdade transcendental consideremos o seguinte:

Suponhamos que há uma liberdade no sentido transcendental, uma espécie particular de causalidade, segundo a qual pudessem ser produzidos os acontecimentos no mundo, ou seja, uma faculdade que iniciasse, em absoluto, um estado e, portanto, também uma série de conseqüências (sic) dele decorrentes. Se assim fosse, não só se iniciaria em absoluto uma série em virtude desta espontaneidade, mas também deveria começar absolutamente a determinação dessa espontaneidade a produzir a série, isto é, a causalidade, de tal sorte que nada haveria anteriormente que determinasse, por leis constantes, essa ação que acontece252.

Diferente de dogmáticos e empiristas, na filosofia crítica é o sujeito que tem a autonomia de buscar e forjar as condições do conhecimento, o que já é o suficiente para encontrar uma saída para a conciliação entre causalidade por liberdade e causalidade natural, posto que, não pensar o incondicionado como algo dado, mas como algo que pode ser forjado, permite à filosofia crítica não “se comprometer nem com um infinito atual de causas, nem

com uma causa primeira espontânea”253

. Nesse sentido, consoante Kant, “é possível conceberem-se duas espécies de causalidade em relação ao que acontece: a causalidade

segundo a natureza ou a causalidade pela liberdade”254. Pois a causalidade por liberdade é

pensada como algo intrínseco à razão humana, como algo indissociável desta. Assim, a causalidade por liberdade seria uma invenção da razão pura, não podendo, por isso, ser determinada por nenhuma causa natural.

A saída encontrada pelo idealismo transcendental para a causalidade por liberdade, ou simplesmente, liberdade transcendental, não contradiz a causalidade natural, visto que a liberdade transcendental é somente pensada como sendo númeno, e a causalidade natural, por outro lado, é de fato aplicada ao reino dos fenômenos. Nesse sentido, no reino dos fenômenos, a liberdade transcendental será somente um conceito crítico e de uso prático. Sendo assim, a

251

KANT, op. Cit., A 446/ B 474. Grifos do autor.

252

KANT, op. Cit., A 445/ B 473. Grifos do autor.

253

SILVA, F.Q. De Kant a Schopenhauer: análise da terceira antinomia da razão pura e de sua solução. In: Revista Voluntas: estudos sobre Schopenhauer – 1º semestre 2010 – Vol. 1 – nº1 – p.41.

causalidade por liberdade não é nem aplicada como explicação da natureza como faziam os dogmáticos, nem é negada sua existência como queriam os empiristas.

Portanto, a causalidade por liberdade estaria, desde que considerada como uma ideia pura da razão, a salvo das determinações fenomênicas, pois não é algo derivado da experiência. Nessa perspectiva, a liberdade passa a ser entendida como algo pleno de existência e de efetiva aplicabilidade exclusivamente dentro do âmbito da moralidade, uma vez que a razão pura não se refere diretamente aos objetos, mas sim aos conceitos. Desse modo, a causalidade por liberdade, na condição de princípio racional, não se torna o primeiro começo dos eventos naturais, mas, em contrapartida, torna-se o primeiro começo incondicionado das ações humanas, algo de grande utilidade na vida moral dos seres humanos.

Entretanto, cabe ressaltar, como já deve ter notado o caro leitor, que “não se trata aqui

de um começo absolutamente primeiro quanto ao tempo, mas sim quanto à causalidade”255.

Isso significa que a razão tem a capacidade de permanecer a mesma independentemente das circunstâncias que são promovidas pelo tempo, e ela nunca é afetada por este para transformar-se em algo diferente do que já é. De outro modo, como a razão pura não está submetida às leis naturais do fenômeno, a liberdade torna-se a capacidade racional humana de dar início a uma nova série de eventos no mundo sem a necessidade de haver uma causa anterior, sendo considerada, por isso, uma causalidade incondicionada, ou seja, autônoma. Com base nisso, os efeitos da causalidade por liberdade referem-se à possibilidade do homem mudar suas ações no mundo, não obedecendo mais de forma absoluta e sem exceção às leis de determinação do fenômeno. Consequentemente, abre-se a possibilidade das ações humanas tomarem sempre um novo caminho, dado que elas nunca estão de fato determinadas.