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A razão no processo de cognição

CAPÍTULO II- A SOLUÇÃO SCHOPENHAUERIANA AO PROBLEMA DO

2.5. A razão no processo de cognição

É pela reflexão, já que a razão não tem acesso direto ao conteúdo trabalhado ou

referenciado por ela, que surgem no indivíduo as “perguntas, dúvidas, erros”162

, arrependimentos, insatisfações com o presente, preocupações com o futuro e, principalmente, prudência com as ações e atitudes a serem tomadas na vida. Por isso que tudo aquilo que tem origem na razão pode, ao longo dos anos, ser demonstrado como afirmações falsas, descabidas ou contraposta a opiniões diversas. Em outras palavras, a razão, como reino dos juízos, está sempre sujeita a falhas e erros, pois não tem como referência o conteúdo em si mesmo, mas apenas sua cópia, que não é fiel ao original da intuição, não permite a razão sentenciar seus juízos de forma definitiva e eternamente como tal, uma vez que aquilo que hoje é verdadeiro, amanhã poderá ser afirmado como falso.

Contudo, pode acontecer o contrário acerca dos juízos falsos da razão, isto é, seus erros podem durar séculos e em consequência disso eles podem impor “seu jugo férreo a povos inteiros, sufocando as mais nobres disposições, e, mesmo quem não é por ele enganado,

é acorrentado por seus escravos ludibriados”163

a concordarem com tais juízos para não sofrerem penalidades que coloquem em risco a própria vida. Sendo assim, a razão não é unicamente fonte de luz, mas de trevas também, porque se seus juízos falsos e errôneos nascem de quem tem grande poder em mãos e se tais juízos tornam-se de fato efetivos, então,

161

CACCIOLA, M.L.M.O. Schopenhauer e o dogmatismo, 1994, p.36.

162

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 2005, p.81.

em consequência, o mundo presenciará grandes tragédias com a humanidade. Em relação aos equívocos da razão cito algumas belas palavras de Schopenhauer:

Todo erro traz veneno em seu interior. Se é o espírito, o conhecimento que faz do homem o senhor da terra, então não há erros inocentes, muito menos respeitáveis e sagrados. E, para consolo daqueles que, de algum modo e em alguma ocasião, despendem força e vida no nobre e difícil combate contra o erro, não posso eximir- me de acrescentar: quando a verdade ainda não existe, o erro pode jogar o seu jogo, como as corujas e morcegos o fazem à noite; porém, pode-se até esperar que as corujas e os morcegos empurrem de volta o sol para o leste, mas não que a verdade conhecida e expressa de maneira clara, plena, seja de novo reprimida, e o antigo erro de novo ocupe, imperturbável, o seu amplo espaço. Eis aí a força da verdade,cuja vitória é dura e trabalhosa, mas, uma vez alcançada, é definitiva.164

A faculdade da razão, de todos os seres presentes na terra, aparece meramente no homem e justamente por isso o torna um ser muito poderoso diante dos demais animais terrestres, já que ela “é a única coisa que confere ao homem aquela clareza de consciência que

tão decisivamente diferencia a sua da consciência do animal”165. Em razão disso, a faculdade

reflexiva faz com que o homem tenha uma vida e um modo de viver extremamente antagônicos aos do animal. Em relação a este antagonismo, destacam-se no homem duas coisas: a) o seu poder de subjugar todos os outros animais; b) sua capacidade de sofrer demasiadamente por algo que já aconteceu, está vivenciando ou poderá, em um futuro bem distante, acontecer. Nesse sentido, em virtude da falta de uma faculdade de conceitos, que o animal irracional apenas vive o presente, isto é, sente, intui e age espontaneamente ao momento vigente. O homem, por sua vez, sente, intui, pensa e aprende.

É justamente em função destes dois últimos aspectos que a razão concede ao homem a linguagem racionalizada. É por ela que o homem consegue se comunicar ou se expressar, ou mesmo ocultar, aos demais da mesma espécie, aquilo que pensa. “Assim, se em termos de comunicação, o animal manifesta-se por meio de gestos e de sons, o homem, ademais, não

164

SCHOPENHAUER, op. Cit., p.82.

O termo Besonnenheit, o qual Jair Barboza traduz por “clareza de consciência”, também pode ser traduzido por discernimento, palavra adotada pelo professor Rubéns Rodrigues Torres Filho em suas traduções da língua alemã para o português. No entanto, se tratando da obra schopenhaueriana, a professora Maria Lúcia Cacciola o traduz em sua tese de doutoramento por reflexão, tradução que se aproxima mais a de Torres Filho que a de Barboza. Cf. Schopenhauer e a questão do dogmatismo, 1994, p.27.

pode se desvencilhar da linguagem. Vemos, então, porque a razão, em Schopenhauer, ainda

pode ser apreendida como portadora de uma função determinante”166.

Dentre as melhores realizações feitas pela linguagem estão, segundo Schopenhauer, o consenso e a cooperação de muitos ou milhares de indivíduos entre si, a civilização, a formação do Estado, a ciência e a transmissão do pensamento e da verdade. Por outro lado, dentre as piores realizações da linguagem, podem ser citadas “a propagação do erro (...), os

dogmas e as superstições”167

. Contudo, o homem realiza tudo isso, através do pensamento e da linguagem, porque a faculdade da razão ocupa-se exclusivamente com a formação de conceitos e são eles, na verdade, os responsáveis por fazerem do homem um animal racional e, portanto, diferenciá-lo dos demais animais, os quais, por não terem uma faculdade que maneja e aplica conceitos, são denominados de irracionais.

Os conceitos também são representações, porém representações que, diferentes das intuitivas, originam-se unicamente nos homens. Em virtude disso, o conhecimento trazido por este tipo de representação nunca será claro, indubitável, já que não se trata de um conhecimento evidente, como as representações intuitivas, mas de um conhecimento abstrato. Nesse sentido, “seria, pois, absurdo exigir que eles fossem comprovados pela experiência (...)

ou devessem ser trazidos perante os olhos, ou perante a fantasia como os objetos intuíveis”168

, uma vez que as representações abstratas, os conceitos, são apenas ideias do pensamento humano. Mais precisamente, os conceitos são uma espécie de efeito do entendimento, o modus operandi da razão que permite o surgimento de coisas tais como a linguagem, a reflexão, o planejamento, o saber instruído. Todas essas produções da razão só são entendidas

porque, para Schopenhauer, “é a razão que fala para a razão”169

, posto que quando um homem se comunica com outro através de conceitos abstratos “o sentido do discurso é imediatamente

intelectualizado, concebido e determinado de maneira precisa”170

por este outro homem, ou seja, a razão quando fala, por ocupar-se somente com representações abstratas, não sai de seu domínio. Assim, o que uma cabeça pensante produz, outra é capaz de compreender, assimilar ou mesmo corrigir para que o produto dos conceitos possa, enfim, ser propagado sucessivamente ao longo do tempo para mais cabeças pensantes.

Todavia, os conceitos, por não estarem submetidos ao tempo e ao espaço, não podem ser classificados como representações individuais, mas, pelo contrário, de representações

166

DEBONA, V. Schopenhauer e as formas da razão: o teórico, o prático e o ético-místico, 2010, p.42.

167

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 2005, p.84.

168

SCHOPENHAUER, op. Cit., p.86.

169

SCHOPENHAUER, op. Cit., p.86.

universais. Em razão dessa universalidade é possível que os conceitos abarquem, a partir de uma única ideia abstrata, um número incontável de seres, orgânicos ou inorgânicos, mediante características e qualidades que tais serem possuam. Por exemplo, imagine-se o conceito “pedra”, a quantos tipos de materiais sólidos este único conceito se refere ou abarca? Ora, existe a pedra que se refere à extração mineral ou rochosa (como o diamante, a esmeralda, o rubi, a safira, o quartzo, o cascalho, o mármore, o basalto), a pedra que na medicina se refere à concreção que se forma em certos órgãos do corpo (como bexiga, rins e vesícula biliar), a pedra que se refere às peças dos jogos de tabuleiro (como dama, gamão e bingo) e a pedra que, não sendo literalmente um material sólido e palpável, na literatura aparece em sentido figurado, já que se refere ao fundamento ou a base de algo. Nesse sentido, o conceito tem, como representação abstrata da razão, a capacidade de compreender e representar “todos os

incontáveis objetos do mundo efetivo”171

, visto que uma única palavra pode se referir a várias coisas ou seres diferentes através das qualidades ou características que tais objetos

apresentam172.

Em razão disso, os conceitos, representações abstratas da razão, podem ser divididos em duas classes, a saber, conceitos estritamente abstratos e conceitos concretos. A primeira classe, os conceitos absolutamente abstratos, são aqueles conceitos que não se referem imediatamente ao conhecimento intuitivo como seu fundamento, pelo contrário,

fundamentam-se através “de um ou muitos outros conceitos”173. Alguns exemplos de

conceitos estritamente abstratos são “relação, virtude, investigação, princípio”174

entre outros de mesma estirpe. Como podemos perceber, tais conceitos não possuem um correspondente imediato nas representações intuitivas, mas se fundamentam especificamente em outros conceitos para serem o que são. É o caso, por exemplo, do conceito virtude, ele adquire o valor que tem não porque se refere imediatamente a uma intuição empírica, mas porque primeiramente se fundamenta no conceito de moral. Este, por sua vez, tem sua origem fundamentada no conceito de costumes, o qual, para finalizar, se fundamenta diretamente em

171

SCHOPENHAUER, op. Cit., p.87.

172

SCHOPENHAUER, op. Cit., p.87.

As representações abstratas têm no conhecer ou no fundamento de conhecimento a figura do princípio de razão que as rege, porque toda a essência dos conceitos consiste em uma relação de dependência, ou seja, as representações abstratas dependem da existência de uma outra representação, seja ela abstrata ou intuitiva, para que tenham um fundamento, o qual consiste no de conhecimento da causa, abstrata ou empírica, que deu origem a tal conceito. No entanto, ressalta Schopenhauer que “a série de fundamentos de conhecimento tem de findar num conceito que tem seu fundamento no conhecimento intuitivo” (SCHOPENHAUER, 2005, p.88), visto que se assim não o for o conceito perde seu valor de verdade, tornando-se assim um conceito falso que, por sua vez, poderá dá origem a juízos também falsos, mas juízos falsos sobre a realidade empírica.

173

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 2005, p.88.

uma intuição que tem como representação empírica o modo de agir ou de se comportar dos homens em suas relações com seus semelhantes. Para ilustrar o que foi explanado observe-se o seguinte organograma:

Por outro lado, a segunda classe de conceitos, os conceitos concretos, são aquelas representações abstratas “que possuem seu fundamento imediatamente no mundo

intuitivo”175

, isto é, nas representações intuitivas do entendimento176. Como exemplo dessa

classe de conceitos podemos citar “homem, pedra, cavalo”177

etc. Observe-se, como objeto de análise, o conceito homem, seu fundamento está diretamente ligado, sem a necessidade de qualquer intermediário, à representação empírica de indivíduo bípede dotado de faculdade racional.

Desse modo, a razão, em virtude de seus conceitos abstratos, confere ao homem,

175

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 2005, p.88.

176

Contudo, para Schopenhauer, “esta última denominação combina muito inapropriadamente com os conceitos por ela descritos, visto que também estes sempre ainda são abstracta e de modo algum representações intuitivas”.

segundo Schopenhauer, o terceiro de seus maiores privilégios178, qual seja, o saber (ou a ciência), o qual pode ser definido como “o ter-fixo em conceitos da razão aquilo que foi

conhecido em geral de outra maneira”179, sendo “outra maneira” o conhecimento intuitivo,

que alicerça os juízos de certeza da ciência180. Nesse sentido, o saber, ou conhecimento

científico, não amplia conhecimento algum adquirido de maneira intuitiva, ele apenas lhe dá uma nova roupagem, isto é, uma forma abstrata.

No entanto, este “não ampliar” o conhecimento intuitivo não significa que o conhecimento abstrato não seja útil na vida prática. Pelo contrário, o fato de a razão mostrar um outro viés para se conhecer aquilo que foi dado primeiramente pela intuição ou pela experiência permite que o conhecimento, de modo geral, se fixe tanto na razão do indivíduo quanto na história da humanidade. Ou seja, a razão tem a capacidade de conservar, na memória ou por séculos, o conhecimento adquirido por um único indivíduo e transmiti-lo a milhares de outros indivíduos, ultrapassando, assim, a barreira do espaço e tempo locais, coisa impossível de ser feita pelo conhecimento intuitivo.