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A liberdade guiando o povo?

No documento República e Liberdade (páginas 198-200)

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1. A liberdade guiando o povo?

Silvestre Pinheiro Ferreira vive em Paris no tempo das trois glorieuses (27, 28, 29 de Julho de 1830) exaltadas na tela de Delacroix, A Liberdade guiando o povo. Nesses dias e durante toda a década, embora dedicado ao ensino e ao publicismo, em Paris, o pensador não deixa de participar, interessadamente, na legitimação do poder representativo em Portugal envolvendo-se em acesa polémica (ao lado do seu amigo de sempre Filipe Ferreira de Araújo e Castro) com José Ferreira Borges, emigrado em Inglaterra1. Mas, o mais significativo do labor silvestrino

será, sem dúvida, a imensa obra filosófica, jus-política, social e económica que terá uma repercussão europeia ímpar como, recentemente, se tem conseguido comprovar melhor pela consideração que ainda merece, nomeadamente, no contexto de textos fundadores da ciência jurídica moderna e contemporânea2.

No nutrido suplemento ao seu Cours de Droit Publique Interne et Externe que será desenvolvido, de modo dialogal, no Manual do Cidadão em um governo

representativo, Silvestre Pinheiro Ferreira procede a minucioso crivo crítico não

só no que diz respeito à Carta Constitucional outorgada por Luís Filipe de Orleans, em 7 de Agosto de 1830 mas, também, às que foram decretadas pelo

* Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa.

1 Cf. José Esteves Pereira, «As propostas de Silvestre Pinheiro Ferreira e Filipe Ferreira de Araújo e Castro sobre

a restauração do governo representativo apresentadas, em 1831, a D. Pedro de Alcântara», in Actas do Congresso Internacional “D. Pedro, Imperador do Brasil, Rei de Portugal”, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, pp. 469-479; José Henrique Rodrigues Dias, José Ferreira Borges – Política e Economia, Lisboa, INIC, 1988, pp. 57-68.

2 Cf. Y. Kerbrat (coord.), Liste raisonnée d´ouvrages de droit publiés avant 1945 établie pour la Bibliothèque Nationale

de France et ses portails «Gallica» et «Europeana», onde figura o Cours de Droit Publique Interne et Externe de S. P. Ferreira. http://www.bnf.fr/documents/liste_kerbrat.pdf

Congresso da Bélgica em Fevereiro de 1831 e da que foi promulgada para o Reino de Saxe em Setembro desse mesmo ano. Estas constituições, comentadas por Pinheiro Ferreira, foram, também, publicadas em edições autónomas mas serviriam, sobretudo, como anexo destinado à aplicação dos princípios gerais desenvolvidos na sua obra.

A ideia de representação ganhará especial relevo no momento em que Silvestre Pinheiro Ferreira se torna uma voz ouvida na Europa e se revelaria fundamental para o efectiva salvaguarda dos direitos dos povos e dos cidadãos3.

Na situação política europeia de 1830 se pode inscrever, também, em parte, a crise política portuguesa de 1828-1834 que, como sabemos, não terá um des- fecho superador. Mas, Silvestre Pinheiro Ferreira aparece, então, convicto, em todo o caso, de que «le siècle oú un roi a pu dire l´Etat c´est moi, est fort loin derrière nous»4.

A liberdade dos povos, que consagra a ideia de que a origem do poder é a Nação, nunca significaria, todavia, em Silvestre Pinheiro Ferreira um democra- tismo exaltado.

Silvestre Pinheiro Ferreira foi um teórico de compromissos. É natural que meditasse, com alguma detença, sobre as possibilidades e os obstáculos à gene- rosa Liberdade, essa filha do Povo, que desfraldando a bandeira tricolor avança, resolutamente, com mártires aos seus pés, arrastando uma sociedade na busca de um resgate. Como sabemos, a hipoteca da liberdade começaria logo pela repre- sentação pictórica de Delacroix atendendo a que os bons costumes e o poder só tardiamente permitiriam exibir publicamente o quadro.

Pinheiro Ferreira talvez soubesse, demais, o que poderia ser a ilusão da liberdade no momento em que foi testemunha presencial dos acontecimentos parisienses de 1830. Fora eleito, entretanto, em 1826, para as Cortes, em Por-

3 A propósito do sistema e processo eleitoral (que, aliás, consubstanciava um poder, o poder eleitoral) diz Silvestre

Pinheiro Ferreira: «O que porém distingue essencialmente o nosso método do que vulgarmente está recebido, é que nós exigimos em cada deputado a especialidade de conhecimento requerida para bem representar cada uma das três sortes de interesses relativos às três secções de que se deve compor o Congresso Legislativo; enquanto nos métodos vulgares cada eleitor escolhe sem saber que condições deve reunir o candidato. Por isso vemos que os interesses dos diferentes estados (comércio, indústria e serviço público) são mui imperfeitamente representados nos congressos de quantas nações se presumem viver debaixo do regime constitucional; pela simples razão de que a lei não dirigiu a atenção do eleitor a fim de que ele se concentrasse no círculo de seus conhecimentos e procurasse entre as pessoas de seu mesmo estado as mais capazes de representar os respectivos interesses» – Manual do Cidadão em um Governo Representativo, Paris, Rey & Gravier, 1834, t. I, p. 123; Cf. António Paim, História do Liberalismo Brasileiro, S. Paulo, Ed. Mandarim, 1998, pp. 52-53.

4 Observations sur la Charte Constitutionnelle de la France, Paris, Paris, Rey & Gravier, 1838 p. 28 (aparece incorporado

tugal, que teriam de deliberar sobre a Carta Constitucional (1826), outorgada por D. Pedro, mas não tomaria o seu lugar parecendo advinhar o que sobre a crise de 28-34 nos virá a esclarecer:

«(...) nem ousávamos repudiar uma proposta que reconhecíamos ser a mais liberal de quantas até hoje tem emanado dos príncipes obrigados a pactuar as reclamações dos povos, nem nos podíamos resolver a anuir em nome da nação a um acto que, debaixo de enganosas aparências duma justa liberdade, trazia em si os germes da guerra que a poucos meses se acendeu, e tarde se extinguirá, entre o despotismo e anarquia”5.

É de um modo pouco, ou mesmo nada, romântico que Silvestre Pinheiro Ferreira entenderá, de facto, o mundo social e político em que lhe foi dado viver. Com uma assumida posição, fora de sequelas de Antigo Regime no que ao exercício do Poder respeita, Silvestre Pinheiro Ferreira aplica as suas análises a uma viabilidade harmonizadora no plano social e de sentido utilitarista. Não estava distante do clima ideológico reinante em inícios da década de 30, na Europa e, particularmente, em França. Como disse Nora Hudson, nos idos de 1936, em obra clássica de referência: «The revolution of 1830 marked not only the triumph of liberalism over legitimacy, of individualism over tradition, but the beginning of a new era»6. Mas não é menos verdade que essa nova era implicaria

fatais desencontros e compromissos em todo o processo liberal europeu.

2. «De que serve a vida ao homem sem a liberdade?»

No plano mais sereno de considerações sobre a utilidade dos princípios ideológicos ou, mesmo, sobre a arquitectura constitucional, Pinheiro Ferreira compreendera que «le but de la révolution française était en 1830, ainsi qu´il l’avait étè en 1789 de fonder une monarchie réprésentative»7. À sombra dos

mesmos princípios liberais e constitucionais podemos lembrar a afirmação da Liberdade que, entusiasmado, Garrett cantara em Agosto de 1820, que Castilho endeusara, em clima vintista ou, até, Silvestre interrogativamente exaltará mais tarde: «De que serve a vida ao homem sem a liberdade?»8. Mas também pode-

5 Prólogo ao III tomo do Manual do Cidadão, p. vi.

6 Nora Hudson, Ultra Royalism and French Restoration, Cambridge, Cambridge University Press, 1936, p. 198. 7 Observations, p. I.

No documento República e Liberdade (páginas 198-200)