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A liberdade no egoísmo: a sociedade civil-burguesa

4. O DIREITO DE TER E SER: O CONCEITO DE DIREITO

4.2. A liberdade no egoísmo: a sociedade civil-burguesa

A relação ética da unidade familiar fundamentada no amor ético e na relação recíproca deste sentimento dissolve-se e dá espaço às relações movidas pelo mundo do trabalho, da produção, dos conflitos e das contradições inerentes à nova realidade que se constitui, a sociedade moderna. As considerações desenvolvidas por Hegel sobre o

164 FD, §177. 165 FD, §180.

65 conceito sociedade civil-burguesa visam “apreender a emergência de uma nova relação ética entre os homens166”.

Hegel busca compreender como na moderna sociedade as relações de direito entre os indivíduos se constituem enquanto seres economicamente livres, visto que a função da sociedade civil-burguesa reside na proteção e na segurança da propriedade e da liberdade individual exclusivamente através das leis. Direito, liberdade e vida econômica se relacionam mutuamente167, e é por causa dessa relação que Hegel nos instiga a compreender como o indivíduo enquanto ser de direito, que almeja ser livre plenamente, mantém sua vida econômica sem interferir, prejudicar, ou eliminar a liberdade do outro.

A estrutura dialético-especulativa da sociedade civil-burguesa tem com fundamento dois princípios: a particularidade e a universalidade168 que, embora separados, são conceitos reciprocamente ligados e condicionados. Na sociedade civil- burguesa, a pessoa concreta é o particular, fim para si mesmo, que busca satisfazer suas múltiplas carências pela relação de interesse para com outro particular.

A sociedade civil-burguesa é, portanto, o laboratório da particularidade, que se desenvolve plenamente, visto que seu objetivo essencial é satisfazer a pessoa privada nas suas carências, necessidades naturais e de arbítrio. No entanto, o particular depende necessariamente do universal, pois, para satisfazer suas carências, precisa da mediação com outros indivíduos que igualmente se relacionam a fim de satisfazer-se.

Desde modo, o outro é meio da realização dos fins, formando um sistema de dependência recíproca que tem como base um fim egoísta de cada um, pois ninguém atinge seu fim se não for pela mediação do outro, mesmo que esta mediação ainda seja involuntária. Assim, as pessoas autônomas na sociedade civil mantêm relação de dependência mútua objetivando a realização dos seus carecimentos particulares:

Na sua realização efetiva, o fim egoísta, assim condicionado pela universalidade, funda um sistema de dependência unilateral, tal que a subsistência e o bem-próprio do singular, bem como o seu ser-aí jurídico, estão entrelaçados com a subsistência, o bem próprio e o direito de todos,

166 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 160. 167 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 159. 168 FD, §182.

66 estão fundados nestes e só nesta conexão são efetivamente reais e assegurados. Pode-se encarar esse sistema, num primeiro momento, como o Estado externo, o Estado de necessidade constringente e do entendimento169. A satisfação das carências exige um ordenamento entre os indivíduos, pois, enquanto pessoas privadas, estes indivíduos almejam exclusivamente a sua satisfação particular. Para tanto, são obrigados a relacionarem uns com os outros, relação na qual a satisfação de um implica na realização dos carecimentos do outro. Este momento expressa a efetividade do sistema de carências, visto que é constituído pelas carências de todas as pessoas que estão em relação umas com as outras. Os carecimentos das pessoas para serem satisfeitos precisam de uma mediação universal que possibilite essa satisfação, ou seja, precisa do contexto social.

Hegel, no final da citação acima, refere-se à sociedade civil-burguesa como “Estado do entendimento”, uma vez que o conceito de entendimento é próprio da filosofia hegeliana. O entendimento é a faculdade negativa que separa o que está imediatamente unido, a força do entendimento constitui esta atividade de separar e de analisar170. Por isso, a sociedade civil-burguesa é um Estado do entendimento, em virtude da separação dos membros da família, pois os membros que viviam nessa unidade substancial, na sociedade civil-burguesa, são tratados como pessoas autônomas e independentes aparentemente e se relacionam pela necessidade que têm de satisfazer seus carecimentos, pois se “não necessitasse dos outros, não precisaria do Estado, isto é, da sociedade civil171”.

Sendo assim, os indivíduos particulares com suas múltiplas carências se relacionam com a universalidade objetivando seu bem-próprio. Observe-se que esta relação ainda não designa uma identidade ética, pois cada princípio subsiste por si, logo esta relação “não é enquanto liberdade, mas sim enquanto necessidade, a de que o

169 FD, §183. 170

O entendimento é, com efeito, para Hegel, a faculdade negativa por excelência; é a inteligência que diferencia por análise, que põe um estado separado aquilo que se apresentava imediatamente como unido. LEFEBVRE, Jean Pierre & MACHEREY, Pierre. Hegel e a Sociedade. Tr.: Thereza Christina Ferreira Stummer e Lygia Araújo Wantanabe. São Paulo: Discurso Editorial,1984, p.26.

67 particular se eleve à forma da universalidade e nessa forma procure e tenha o seu subsistir172”.

Hegel afirma que as carências dos indivíduos são subjetivas; em contrapartida, a satisfação delas depende da exterioridade e por meio dela se realiza. Diante disso, Hegel demonstra que há duas maneiras de satisfazer as carências:

A particularidade, inicialmente como aquilo que está determinado em face do que é universal na vontade em geral (§60), é uma carência subjetiva, que alcança a sua objetividade, isto é, a sua satisfação α) por meio das coisas externas, que são agora, igualmente, a propriedade e o produto de outras carências e vontades e β) pela atividade e pelo trabalho, enquanto [elemento] mediador de ambos os lados. Visto que o fim da carência é a satisfação da particularidade subjetiva, mas que na relação Às carências e ao livre arbítrio dos outros a universalidade se faz valer, segue-se que este brilhar aparente da racionalidade na esfera da finitude é o entendimento, que é o lado que importa nesta consideração e o que constitui o próprio elemento- reconciliador no interior dessa esfera173.

Objetivamente, o indivíduo tem duas maneiras de satisfazer suas carências: por meio das coisas exteriores e pelo trabalho. Hegel, desde o direito abstrato, pontua que o homem se satisfaz nas coisas exteriores e para tanto precisa do outro para essa aquisição (contrato, por exemplo), porém, agora, esta satisfação encontra-se na perspectiva integral das relações sociais.

Em contrapartida, o indivíduo possui diversas outras carências que se sobrepõem à materialidade da coisa exterior, ou seja, a natureza, e diante disso não pode ser satisfeita imediatamente; trata-se das carências sociais produzidas pelo homem, este que exige uma mediação social: o trabalho.

Para Hegel, o trabalho permite ao homem superar o aspecto instintivo e passar a refletir sobre suas ações. O filósofo lança mão pela primeira vez da figura do homem, com a intenção de mostrar este como sendo o único capaz de superar os limites naturais e agir racionalmente com o intuito de satisfazer suas carências.

O homem é superior ao animal irracional pela capacidade de estimular, pensar, criar e realizar atividades, para além do que a natureza propicia, diferentemente

172 FD, §186. 173 FD, §189.

68 das atividades atomizadas daquele. Por isso, o trabalho é liberdade, e somente o homem pode aqui ser apresentado como figura dessa realização.

Pelo trabalho, o homem satisfaz suas necessidades sociais, é capaz de transformar a exterioridade natural em interioridade humana174, pois insere e cria várias maneiras de realizar as suas diferentes necessidades. O processo de evolução do trabalho aperfeiçoa as atividades econômicas, no âmbito do desenvolvimento das habilidades produtivas, ampliando as técnicas de trabalho, da qual transforma a matéria natural em matéria social, objetivando satisfazer suas carências imediatamente.

“Pode ser chamado de hábil o trabalhador que produz a coisa como ela deve ser e que no seu fazer não encontra nada de esquivo face ao fim175”. Isso afirma que o trabalho é uma atividade que se torna atividade cultural, pois ele é produto da cultura humana. Para Hegel, a cultura expressa a manifestação do progresso de um povo, e o aprimoramento das técnicas de trabalho produz uma forte expressão dessa cultura “tanto intelectual, pela criação das técnicas, como prática, por suas aplicações com a finalidade de suprir as carências sociais176”.

O estímulo incessante provocado pelas necessidades de satisfação e a busca por novas técnicas produtivas tornam o trabalho mais hábil e sofisticado, o que instiga o homem a alimentar seu espírito inovador para encontrar facilidades para tudo que considera dispendioso, isso implica na criação de produtos que não visam exatamente a satisfação das carências imediatas de sobrevivência, mas incita ao supérfluo, negligenciando a miséria e as más condições dos menos favorecidos, que não têm condições de possuir nem mesmo o que lhe é digno e básico para a sobrevivência.

O contexto social com isso representa a fragilidade das relações, pois “a relação mercantil, em seu desenvolvimento, perseguirá os seus próprios fins, que não coincidem necessariamente com o bem-estar de todos177”. Sendo assim, com a expansão

174 ROSENFIELD, Denis L. Política e liberdade em Hegel. São Paulo: Brasiliense, 1983. p, 178. 175

FD, §197.

176 SOUSA, Roberta Bandeira de. O itinerário da liberdade na Ciência filosófica do direito.

Dissertação (Mestrado) Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará. 2009, p.119.

69 das carências produzidas pelas particularidades, pelo acréscimo da produção e do desenvolvimento das técnicas, fazem surgir de um lado o luxo e do outro a miséria.

A miséria e o luxo caminham juntos, porém com vieses distintos, pois quanto mais luxo, no caso oriundo da riqueza produzida pelo universal, mais a miséria se solidifica, visto que a riqueza se concentra na mão de poucos. Ricos e pobres: é assim que podemos entender o contexto atual da sociedade moderna, que enquanto tal cada indivíduo depende exclusivamente de uma única atividade: o trabalho.

No parágrafo §196, Hegel expõe que o trabalho é a mediação entre a “natureza” e o “homem”, pois o homem atribui valor e utilidade para as coisas naturais conforme suas carências e habilidades de transformação destas. Desta maneira, “o homem no seu consumo se relaciona precipuamente a produções humanas, e o que ele consome são precisamente tais esforços”.

Noutras palavras, o homem ao consumir o meio, relaciona-se com as produções humanas e o que de fato consome são exclusivamente os esforços da atividade humana. Marly Carvalho, na sua compreensão deste parágrafo, acresce que todo este processo culmina na “humanização do material para o serviço dos carecimentos” e que, neste ponto, escreve mais a frente, “a Sociedade Moderna é mais humana, pois possibilita a realização do trabalho178”.

O trabalho, portanto, norteará a realização dos carecimentos, bem como a nova ordem social, suas implicações positivas e negativas fazem surgir no curso da história expressão cultural de um povo. As exigências sociais instigam novas técnicas produtivas a fim de que se adéque a vida social moderna. Daí, Hegel partindo das carências múltiplas do indivíduo defende a necessidade da divisão do trabalho, para satisfazer de forma eficaz as carências individuais.

A mediação que consiste em preparar e obter para as carências particulares meios adequados, igualmente particularizados, é o trabalho que, através dos mais variados processos, especifica para esses múltiplos fins o material imediatamente fornecido pela natureza. Este dar forma (Formierung) confere, então, ao meio o valor e a sua conformidade ao fim, de sorte que o homem no

178 SOARES, Marly Carvalho. Sociedade Civil e sociedade política em Hegel. Fortaleza: EDUECE,

70 seu consumo se relaciona precipuamente a produção humana, e o que ele consome são precisamente tais esforços179.

A exigência da especificação do trabalho culmina na divisão dele, que para Hegel seria uma forma de manter a organização da estrutura econômica da sociedade civil-burguesa, visto que este é seu fim. A divisão do trabalho surge a partir das carências desenfreadas criadas socialmente, que produzem a necessidade de setores e atividades econômicas para satisfazer estas variedades de carências. Isso fica claro quando Hegel diz:

Pela divisão do trabalho do singular torna-se mais simples e graças a isso se torna maior a sua habilidade no trabalho abstrato, bem como o conjunto das suas produções. Ao mesmo tempo, essa abstração da habilidade e do meio tornam completas até (serem) uma necessidade total a dependência e a relação recíproca entre homens em vista da satisfação das demais carências. A abstração do produzir torna o trabalho, além disso, sempre mais mecânico e, com isso, ao fim, apto para que o homem dele se retire e a máquina possa entrar em seu lugar180.

Este parágrafo, além de esclarecer a exigência dos setores de mediação da divisão do trabalho, também expõe a compreensão de Hegel sobre o “trabalho abstrato”, ou seja, trabalho que se fundamenta na especificação da atividade produtiva. Com a divisão do trabalho, o homem foi impelido a se especializar em determinada atividade, a fim de tornar a produção mais hábil e lucrativa, segundo Hegel “quanto mais singular o trabalho, mais ele se torna mecânico181”.

O “trabalho abstrato” assim se distancia do elemento de libertação intrínseco ao trabalho, pois o homem só domina uma parte da totalidade da produção do objeto. Ele não se reconhece mais no produto final, isso demarca a perda do “elemento espiritual do trabalho, que é um apreender em conjunto, um estar atento e dominar várias coisas, a consequência dessa perda é que, por fim, a máquina pode entrar no lugar do homem182”.

Neste aspecto, percebemos que a sociedade civil ao mesmo tempo em que propicia um “espaço” de emancipação e de realização da liberdade do homem,

179 FD, §196. 180 FD,§198. 181 Ib.,§198. 182 Ib.,§198.

71 condiciona e limita parte dos mesmos de efetivar-se como tal, em virtude de seu “trabalho abstrato”.

Em contrapartida, Hegel expõe que o antagonismo produzido pelo “trabalho abstrato” é ultrapassado quando se volta os olhos para compreensão de que com a divisão do trabalho, atividade produtiva não se limita exatamente à satisfação do particular, mas comunga na realização do todo social. A divisão do trabalho produz uma organicidade na ordem econômica da sociedade civil-burguesa, para que cada indivíduo desempenhe uma determinada atividade e, assim contribuir para manter esta ordem.

Nesta dependência e nessa reciprocidade do trabalho e da satisfação das carências, o egoísmo subjetivo se inverte na contribuição para a satisfação das carências de todos os outros, na mediação do particular pelo universal como movimento dialético, de sorte que, ao mesmo tempo em que cada um adquire, produz e frui para si, justamente com isso produz e adquire para a fruição dos demais. Esta necessidade, que reside no entrelaçamento multilateral da dependência de todos, é, doravante, para cada um, a riqueza permanente, universal (veja-se §170), que contém para cada um a possibilidade de nela participar pela sua formação e sua habilidade, a fim de estar assegurado de sua subsistência, - assim como esse rendimento mediado pelo seu trabalho conserva e aumenta a riqueza183.

A atividade produtiva realizada promove a participação de todos na riqueza universal, que versa pela satisfação particular e ao mesmo tempo universal. Esta participação, porém, não camufla as contradições próprias da sociedade civil-burguesa, pois a via da riqueza universal é estimulada pela busca da riqueza particular. Em contrapartida, a participação na riqueza universal está condicionada a dois fatores: ao patrimônio herdado e as habilidades. O patrimônio herdado é a riqueza imediata, “fruto de uma realidade histórica, familiar, social de cada indivíduo184”, e a riqueza proveniente das habilidades subjetivas depende das contingências, de modo que a multiplicidade:

(...) produz a diversidade no desenvolvimento das disposições naturais, corporais, e espirituais, já por si desiguais – uma diversidade que, nessa esfera da particularidade, se salienta em todas as direções e em todos os níveis e que, junto com a contingência, e o arbítrio restante tem por consequência necessária a desigualdade da riqueza e das habilidades dos indivíduos185.

183 FD, §199.

184 SOARES, Marly Carvalho. Sociedade Civil e sociedade política em Hegel. Fortaleza: EDUECE,

2006, p.131.

72 Mesmo que coexista esta relação na participação na riqueza universal, o que é inerente à sociedade civil-burguesa é propriamente a busca pela satisfação particular. No, entanto as habilidades dos indivíduos configuram uma igualdade entre os mesmos constituindo os estamentos sociais. Estes possuem interesses distintos e visam seu próprio interesse particular:

Os meios infinitamente variados e o seu movimento de entrecruzamento igualmente infinito na produção e na troca recíproca reúnem-se graças à universalidade ínsita no seu conteúdo e diferenciam-se em massas universais, de sorte que toda essa conexão se desenvolve resultando em sistemas particulares de carências, de meios e trabalhos correspondentes, de espécies e modo de satisfação e de formação teórica e prática – sistemas entre os quais os indivíduos estão repartidos, em diferentes dos estamentos186.

Embora Hegel nos apresente os estamentos como momentos que buscam seus interesses distintamente, estes constituem a segunda base do Estado. Nas palavras de Rosenfield, “os estados sociais são as determinações substanciais da totalidade ética”, isso porque a articulação do indivíduo nos estados sociais o “torna membro da sociedade civil-burguesa, porque pertence a um estado social”. Assim, a sociedade pode ser entendida como constituída de estados sociais que “expressam o movimento de constituição187”. Por isso, Hegel afirma:

Nos estamentos está a raiz pela qual o egoísmo se vincula ao universal, ao Estado. Para que esta conexão seja firme, o Estado tem de instituí-la, conservá-la, de tal maneira que o cuidado das pessoas privadas consigo também contenha a satisfação do Estado. Portanto, a vantagem privada tem de ser considerada, pois à pessoa privada são impostos trabalhos para o Estado188.

Desde modo, os estamentos implicam na satisfação dos carecimentos do universal. Cada estamento representa uma totalidade que realiza uma função específica, sendo eles: o substancial ou imediato, o formal ou reflexivo e o universal.

A organicidade do estamento substancial está intrinsecamente ligada à natureza, no sentido de que os indivíduos dependem do solo para satisfazer suas carências. Os produtos dela retirados estão voltados para essa satisfação e não para o acúmulo de riquezas. A natureza como determinante promove uma dependência que

186 FD. §201.

187 Rosenfield traduz estamentos por estados (ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p. 184).

73 justifica o caráter de eticidade imediata189 do estamento substancial, visto que objetiva manter sua estrutura simples e natural, com base na confiança e na segurança familiar.

Assim, o indivíduo compreende que a natureza, enquanto fonte de vida e de sua subsistência, acolhe o que lhe é dado por ela, bem como é grato a Deus por lhe proporcionar condições favoráveis ou não para manutenção da vida, tal atitude repousa no ato muito mais moral (fé) do que econômico190.

O estamento substancial tem sua riqueza nos produtos naturais de um solo que ele trabalha – de um solo que é suscetível de ser propriedade privada exclusiva e que exige não só uma exploração indeterminada, mas que se lhe dê forma objetiva. Em face da vinculação do trabalho e do seu rendimento a épocas naturais fixas e singulares e a dependência da colheita das características mutáveis do processo natural, o fim presente na carência converte-se em uma previsão para o futuro, conserva, porém, devido às condições, o modo de uma subsistência menos mediada pela reflexão e pela vontade própria e conserva nisso, em geral, a disposição de espírito substancial de uma eticidade imediata, que repousa na relação familiar e na confiança191.

A relação de dependência que surge com a determinidade da natureza, versa por um dinamismo da qual o homem através do seu trabalho retira seu sustento em meio aos ciclos produzidos por ela, isso implica que “ a tensão que aí está inscrita opõe o trabalho produtor do movimento da reflexão e uma natureza que interiorizando progressivamente o trabalho humano, permanece de alguma forma estrangeira à atividade humana.[..] Logo, o estado substancial não é um estado bruto, mas veio a ser um estado reflexivo, próprio da sociedade moderna”,192

que só efetiva-se verdadeiramente no estado reflexivo, terreno próprio da vida industrial.

O estamento reflexivo é o espaço da sociedade industrial com seus conflitos e contradições que determinam as relações socioeconômicas da modernidade. A tarefa principal deste estamento consiste na transformação dos produtos naturais para satisfazer as necessidades dos indivíduos, esta transformação acontece graças ao

189 ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p.

184.

190

SOARES, Marly Carvalho. Sociedade Civil e sociedade política em Hegel. Fortaleza: EDUECE, 2006, p.133

191 FD. §203.

192 ROSENFIELD, Denis L. Introdução ao pensamento político de Hegel. São Paulo: Ática, 1983, p.

74 trabalho e a reflexão dos integrantes do estamento industrial: “ O estamento da indústria tem por ocupação o dar forma ao produto natural e, para adquirir os meios da sua subsistência, ele está remetido ao seu trabalho, à reflexão e ao entendimento, assim como, essencialmente, a mediação com as suas carências e os trabalhos dos outros193”.

A compreensão do estamento reflexivo condiz com a estrutura da moderna

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